sábado, 30 de março de 2013

Ladainha da primavera

Há dois dias, ao fim da tarde, estava com os meus pais e falávamos das tradições da Páscoa na minha aldeia, Brito de Baixo, concelho de Vinhais.
Falou-se da corrida das roscas, do folar, do almoço de Páscoa, da missa, da bênção das casas, enfim, destes nossos usos que se vão perdendo, porque já não se lhe dá o valor merecido. Hoje só se gosta do pronto a vestir, do pronto a comer, do que se copia do resto do mundo...
De repente, a minha mãe falou-me da Ladainha da Primavera. Nunca tinha ouvido falar dela, não me lembrava de nada parecido até que encontrei este relato fantástico em Miguel Torga, nos seus "Contos da Montanha" que, mais coisa menos coisa, foi o que a minha mãe me contou.
Servia para que os campos cumprissem a sua missão de prover ao sustento de todos e para que a bicharada não destruísse o que, com tanto trabalho, se cultivava. Aqui deixo uma pitada de saudade e a lembrança de mais uma das tradições que se perderam.

Mara Cepeda


"A Ladainha
Mal o pessegueiro da horta do Manuel Rosa se cobriu de flores e a sineta da capela se derreteu a chamar, jurjais despegou dos campos e foi responder às rogações do padre Lourenço.
- Sancta Dei Genitrix...
- Ora pro nobis...
- Sancta Vírgo Vírginum...
- Ora pro nobis...
Era a ladainha da primavera. A voz do abade, grossa, sonora, sozinha, saía do caminho, metia-se às matas, enrodilhava-se na rama dos pinheiros, passava, e ia perder-se ao longe numa encosta de centeio. E atrás dela, torrencial, a cilindrar o que resistira à passagem da primeira levada, a do povo, feita de quantas bocas de caldo havia no lugar.
- Santa Maria Magdalena...
- Ora pro nobis...
Lenta, a mole de gente arrastava-se pela serra acima a esmoer a corte celestial. E deixava atrás de si uma densa atmosfera de som, de paz, de coisa purificada.
- Sancta Agatha ...
- Ora pro nobis...
Os montes era um gosto vê-los. Cobertos de urze, roxos, tinham perdido a força bruta que o Janeiro lhes dera. O céu, sem nuvens, varrido, cobria-os como um tecto de cetim. E os ribeiros, que os sulcavam de frescura, pareciam veias fecundas dum grande corpo deitado.
- Saneta Lucia...
- Ora pro nobis...
Ao ritmo cadenciado de cada invocação, o cortejo ia seguindo. E a atrasar um passo aqui e além, no meio dele, alheios àquele rol de bem-aventurados que gozavam no paraíso, tolinhos de amor um pelo outro, cegos, o filho da Etelvina, o Carlos, e a filha do Zebedeu, a Rita.
- Sancta Caecilia...
- Ora pro nobis...
O rio de povo, como um Doiro de som, continuava a subir. Depois do moinho dos Seixos, a mata da Lamarosa; passada a bouça do Infantado, os amieiros da Fonte Fria.
- Sancta Catharina...
- Ora pro nobis...
As primeiras casas de Arcã, cobertas de colmo, surgiram subitamente na volta do talefe.
- Sancta Anastasia...
- Ora pro nobis...
O badalo frenético que os reunira calara-se há muito. Mas acordava de novo, agora a ladrar alarmado no campanário da terra visitada. A avalanche entrava na povoação.
- Per sanctam ressurrectionem tuam...
- Libera nos, Domine...
A voz do padre mudou de tom.
- Ut fructus terrae dare et conservare digneris...
Qualquer coisa que adormecera, embalada pela melopeia benta, estremeceu. Foi preciso o coro subir dois pontos para a harmonia voltar.
- Te rogamus, audi nos...
A ladainha chegava ao fim. A sineta parecia doida. Aos que vinham, juntavam-se os que esperavam. E o mar humano invadiu a igreja.
- Agnus Dei, qui toffis peccata mundi...
- Miserere nobis...
Seguiu-se um salmo de David. E ao cabo dele, e de algumas orações complementares, no momento em que todos se dispunham a voltar pela serra abaixo à procura de pútegas, quem é que tinha visto o filho da Etelvina, o Carlos, e a filha de Zebedeu, a Rita, que o Amarante encontrara dias antes no caminho de Alcaria, uns fedelhos, ele ainda a pintar, a sair da casca, ela com dois ovinhos no lugar dos seios, tontos, tontos, que até dava vontade de rir?
Ninguém. Por alturas de Santa Inês, reparara neles o Lapadas. Depois...
Depois, muito sorrateiros, esgueiraram-se por detrás duma fraga, e quando foram a dar conta estavam entre duas giestas floridas, tão chegados, tão alheados do mundo, que só mesmo um milagre...
Descobriu-os o Jaime, por acaso. Ela chorava, ele chorava, mas que se lhe havia de fazer?

Miguel Torga, Contos da Montanha"

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