Ernesto Rodrigues
Os amores de Pedro e Inês ondearam por esta cidade, onde
lhes nasceu o segundo filho, D. João de Portugal e Castro. Os historiadores da
terra não o reivindicavam, por ignorância; mas, fazendo de Fernão Lopes bíblia
(mal interpretada), contestam o casamento do mítico par, acto que não passaria
de mera tradição. Na dúvida, um romancista casa quem bem entende; mal não lhe
fica, todavia, fundar-se em documentos, como fiz em A Casa de Bragança (2013),
resumindo no Mensageiro de Bragança (20 e 27 de Junho de 2013) quanto penso
sobre esse sacramento e filho que urge resgatar. Vejamos novos elementos sobre
tão falada união.
Nas 600 páginas do indispensável A Crise Nacional dos Fins do Século XIV. I. A
Sucessão de D. Fernando (1960), Salvador Dias Arnaut começa por lembrar quanto
escrevera em A Batalha de Trancoso (1947): «[…] cioso da independência, o povo
aclamava rei em pensamento D. João, filho de D. Pedro e de D. Inês de Castro,
infante que estava em Castela.» O meio-irmão D. João, mestre de Avis,
«governaria o reino enquanto dele não pudesse tomar posse o infante D. João,
preso em Toledo». Fernão Lopes não o nega; até veicula uma das versões para que
o rei castelhano não o soltasse, sabendo «que os portugueses o mandaram chamar
para lhe darem o trono» (1960, p. 1).
Menos as cortes de Coimbra ou acusações de invasor (quando reinava a odiosa
Leonor Teles ou, após 1386, se sentia no direito de reinar sobre o que era seu)
do que os feitos de Nun’Álvares impuseram um rei de facto ‒ que pensara
retirar-se para Inglaterra… ‒ contra um rei de direito, que a propaganda dizia
tão bastardo quanto o mestre, aliás, amicíssimo do irmão mais velho. As
crónicas de Lopes, criado de D. João I, não poderiam asseverar o contrário; a
negação do casamento ia de si.
Esse filho de Bragança é protagonista das partes centrais (p. 71-216) da
dissertação de Arnaut, interessando-nos, agora, a «discutida união de D. Pedro
e D. Inês de Castro (p. 5), à luz de novas sínteses. Não evoco a tradição, nem
o romanceiro castelhano, João Baptista de Castro, José Hermano Saraiva, entre
muitos que defendem casamento na igreja de S. Vicente ou noutra morada (Abade
de Baçal), contra maioria indiferente ou passiva, que se limita a um digest de
Fernão Lopes, por mim resumido nos artigos de Junho: «Na Crónica de D. João I,
Fernão Lopes duvida da palavra do rei, que isso mesmo declarara, e fizera
exarar, em Junho de 1360, em Cantanhede, perante a nobreza; e duvida, porque
estranha que o monarca não soubesse a data certa de um momento tão importante
na sua vida. […] estranhe-se que Fernão Lopes ignorasse a grande indiferença ao
tempo na Idade Média.» Era este, já, o pensamento de João das Regras, a que
responde Arnaut, após afirmar que «o infante quis casar com D. Inês»: «[…] não
será natural que um homem esqueça a data do casamento quando este não marca o
início de vida em comum? A ausência de datas precisas não militará antes a
favor da veracidade do casamento?» (p. 102)O grande Historiador escreve sobre essa relação mais de oitenta anos depois e
não pode consumá-la em casamento. Já documento anterior a 1383 ‒ ainda sem as
perturbações da sucessão fernandina ou de Aljubarrota ‒ é taxativo. No índice
dos Portugaliae Monumenta Historica. Nova Série. Volume II / 2 / Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro (1980, p. 250), diz-se que Inês de Castro «cc.»
[casou com] Pedro I, porque o título 21B14 reza: «Casou outra vez este rei dom
Pedro com a ifante dona Enês, filha de dom Pedro de Castro, e fez em ela / o
ifante don Johan / e o ifante dom Dinis / e a ifante dona Beatriz.» (volume II
/ 1, p. 217) Há segunda referência no título 21M13: «E filhou-a el Rei dom
Pedro de Portugal em seeendo ifante, […].» (p. 217) Não se vê onde haja, neste
«filhar», recusa da «categoria de esposa», como sugere Arnaut (p. 97).
Documento latino de 1 de Novembro de 1388 (que Arnaut dá em extratexto, ao lado
da p. 72), devido a Frei Vicente Gonçalves, confessor de D. Dinis, diz que seu
pai teve duas mulheres, Constança e Inês.
Antes do final de Trezentos, Pero López de Ayala
(1332-1407), no cap. XIV da Crónica de Don Pedro Primero, ‒ contemporâneo do
nosso D. Pedro I, a quem requer os assassinos de Inês ‒, justifica a morte
desta «por quanto le decían [a D. Afonso IV] que el infante Don Pedro su hijo
quería casarse con ella. […] E este Infante Don Pedro de Portugal amaba tanto a
la dicha Doña Inés de Castro, que decía a algunos de sus privados que era
casado con ella; e por esto el Rey Don Alfonso su padre fízola matar […].»
Reacção de D. Pedro: «[…] e luego quisiera matar a los que fueron en el consejo
de la muerte de Doña Inés, la cual decía entonces que fuera su muger legítima,
que él avía casado con ella, aunque non lo osara decir por miedo del rey su
padre: […].» (Ed. de Madrid […], s. d. [1931?], p. 114-115) Ayala pode aludir à
declaração régia de Cantanhede; ou a um núcleo restrito de «privados». É
evidente a conclusão de António Resende de Oliveira (“As vidas de D. Pedro e de
D. Inês de Castro na historiografia medieval portuguesa”, online): «A presença
constante da referência ao casamento do infante com D. Inês assegura-nos, pelo
menos, que ele seria tido como facto adquirido nos círculos da corte portuguesa
após a declaração do rei nesse sentido.» (p. 117) Ayala reforça esse
sentimento, ele que, tendo lutado em Aljubarrota, ficou preso por um ano em
Portugal.
Vem Fernão Lopes. Antes de, no cap. XXIX da Crónica de D. Pedro, lançar
«razooens» contra casamento declarado pelo rei (cap. XXVII) e corroborado pelo
bispo da Guarda e Estêvão Lobato (cap. XXVIII), declara, no cap. I, que D.
Pedro «nom quiz mais casar, depois da morte de Dona Enes em sendo Iffante, nem
depois que reinou», aceitando o em que Arnaut, Resendes e eu concordamos, a
saber, que o casamento se efectuara. Resendes lembra como Fernão Lopes aduz «a
semelhança do facto com o que ocorrera com o rei de Castela e Maria Padilha. Na
realidade, se imitação houve, o imitador terá sido o rei de Castela, que elevou
a amante a rainha apenas cerca de dois anos depois de D. Pedro o ter feito!»
(p. 118)
A negação do casamento, retomando argumentação jurídica de João das Regras nas
cortes de Coimbra, aprofunda-se na Crónica de D. João I, cuja legitimação tem
de anular a do irmão mais velho, D. João de Portugal e Castro, e demais. A
palavra de D. Pedro, até ao testamento ante mortem de 17 de Janeiro de 1367,
onde declara que Inês «foy nossa molher», pouco lhe importa, talvez porque não
cita sequer o filho mestre de Avis; a trasladação (em 1360? 1362? 1363?) para o
soberbo monumento alcobacense nada significa; o sermão de exéquias do arcebispo
de Braga, comparando-os a Abraão e Sara (união que aquele, por medo, escondia
do faraó; o sermão é analisado em António Brásio, “Duas notas marginais ao
problema do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro”, Anais. Academia
Portuguesa da História, 12, 1962, p. 97-103), é tido por retórica inútil e
rasurada.