José António Nobre, Escultor
“À procura da tradição e da modernidade”
Nasceu em Sendim, Miranda do Douro. Como foi a sua infância e juventude?
A minha infância é uma infância comum a todos os garotos de um outro tempo não do nosso tempo de hoje. Quando comparo o meu tempo de garoto com o tempo de criança de agora eu costumo dizer que o paraíso do nosso tempo era um paraíso diferente com um gozo diferente. O nosso mundo de brincadeira não tinha nada a ver com o mundo de hoje.
Há muitas mais coisas…
Há muitas mais coisas e há muito menos coisas, ou seja, enquanto nós fazíamos, individualmente, a nossa própria descoberta hoje, os miúdos de hoje, os garotos de hoje, se assim lhe queiramos chamar, a descoberta está feita. Eles enredam-se na mecanização de uma outra contextualização. Nós tínhamos que fazer tudo. Nós fazíamos os moinhos com as bolhacas quando íamos regar as hortas. Recordo que a minha mãe mandava-me tapar os sulcos e a primeira coisa que eu fazia era arranjar uma bolhaca ou cortar um bocado de uma raba para fazer um moinho e a minha mãe: “Muda os sulcos!” e a mim o gozo que me dava era ver, ou a rodela da raba ou a bolhaca, a rodar e ia mudando os sulcos.
Ia-se trabalhando e brincando ao mesmo tempo?
Ia-se descobrindo um pouco a realidade que nos envolvia. Hoje também se descobre, só que hoje a qualidade está toda concebida por nós, altamente criativos e no nosso tempo não. Éramos nós que íamos criando as coisas ou como as víamos ou por o nosso amigo do lado, da descoberta, é que era assim formalizada.
Foi aluno do Liceu Nacional de Bragança. Que recordações guarda desses tempos?
Foi aluno do Liceu Nacional de Bragança. Que recordações guarda desses tempos?
Fui aluno do Liceu de Bragança. Recebi uma grande marca. Todos nós estamos marcados numa determinada fase etária. A primeira vez que eu vim fazer exame à escola e ao liceu. Fiquei fascinadíssimo com reclames luminosos. Eu nunca tinha visto um reclame luminoso. Era um fascínio. Andávamos, eu e o meu pai, junto à Praça da Sé e os reclames era a coisa que mais me encantava. Com a mudança de cores, azuis, verdes e amarelos… era um fascínio a ponto de eu me perder do meu pai. Isto é uma realidade. Distraidamente, olhava para a frente e para os reclames luminosos e de repente perdi o meu pai e foi o fim do mundo para encontrar o meu pai. A sorte era que eu, ao olhar para os reclames, não saia do sítio e o meu pai vinha à minha procura e lá estava eu a olhar para os reclames novamente. Foi uma das coisas que mais me marcou, um fascínio. Ainda hoje digo aos meus filhos muitas vezes: “Os reclames luminosos foram das coisas que mais me fascinaram ao longo da minha vida.”
Foi uma descoberta.
Foi uma grande novidade para mim. A cor, o acender e o apagar, as ruas largas para quem vinha da aldeia, depois de uma trilha, de mover a palha, depois de uma vida extremamente agressiva, de um serviço medonho. A cidade para nós era um paraíso viam-se as pessoas em pé, conversavam, descansavam. Na aldeia era uma vida totalmente de labuta. Depois, no espaço académico de liceu tenho grandes amigos do tempo de liceu. Acho que é uma altura soberba quando se fazem grandes amigos e alguns amigos que hoje são pessoas com uma marca especial na sociedade. Pessoas que saíram, que foram, que se afirmaram com uma realidade. Já na altura, em termos de desabrochar, deixavam marcas. O Ernesto Rodrigues já editava livros éramos garotos. Eu, com quinze, dezasseis anos fiz a minha primeira exposição. Fiz outra depois no sétimo ano do liceu, eu e o professor Luís Cangueiro que na altura era uma pessoa altamente dotada, um indivíduo com registos fotográficos soberbos, expõe-me como aluno. Uma coisa rara, raríssima. Outro indivíduo que no meu tempo, o Fernando Pacheco hoje é médico neurologista editou, também, um livro “Maria milagre” e tinha uma paixão grande por uma ciganita. Lá foi tirar essas fotografias. Coisas fascinantes. Pessoas que hoje continuam novamente a escrever, pessoas com uma afirmação em termos sociais, na literatura e na poesia. Que eu digo-lhe uma coisa a cidade de Bragança devia honrar esta gente. Para nós, Bragança continua a ser uma grande marca, uma grande matriz em termos, essencialmente, da formação que nos foi possível daqui levar e recolher.
Depois de acabado o liceu ingressou na escola Superior de Belas Artes do Porto. O que o levou a seguir esse caminho?
Estas coisas acontecem como tudo naturalmente acontece. Eu tinha algum jeito e na aldeia nós fazíamos… isso acontece, naturalmente, como qualquer pessoa. Há apetências que se desenvolvem e há apetências que se atrofiam. Íamos para o liceu, uma pessoa faz mais ou menos o liceu, na altura tanto íamos para o liceu como íamos para a técnica, e a mim disseram-me: “Vais para o liceu”. E eu não sei porque é que vim para o liceu mas eu gostava muito da técnica. Eu tinha um amigo aqui que nunca mas voltei a ver que andava na escola técnica. E esse meu amigo estava comigo no lar da Gulbenkian e então, na altura, eles na escola técnica e industrial, trabalhavam muito em serralharia e fez-me um anel que eu ainda hoje guardo religiosamente aquele anel. Para mim é um fascínio, uma peça, uma preciosidade, um anel em aço extremamente polido de uma beleza fascinante. Para mim foi um grande fascínio e uma grande prenda que eu tive do meu grande amigo que nunca mais o vi. Não sei se depois seguiu as áreas das engenharias. Perdi-lhe o rasto e nunca mais o voltei a encontrar. Isto é para se compreender como era a realidade na altura.
Fui para o liceu e lá andamos como garotos que éramos, de uma maneira ou de outra, e eu sempre tive muito jeito para determinado tipo de objectualidades. Íamos com as vacas, íamos com as burras, pegávamos nuns paus, começávamos a fazer as redes nos paus, rendilhados nos paus, comecei mais ou menos a representar figuras. Quando vim para o liceu, naturalmente, fruto de algum diálogo com algumas pessoas, recordo-me que tive aqui uma pessoa que também foi imprescindível para mim, que depois voltei a estar com ela novamente no Porto que foi o arquitecto Araújo que tinha vindo por razões políticas para Bragança, ele e a mulher que era pintora e eu voltei a encontrar esta pessoa nas Belas Artes no Porto. Foi ele que me impulsionou que me ensinou como se trabalhava no gesso, o trabalho no gesso, novas tecnologias. Uma vez saiu um concurso para jovens “Os jogos florais do ultramar” em que eu ajudado pelo arquitecto Araújo tentei moldar uma figura de um postal ilustrado que um rapaz da minha aldeia me tinha dado, com uma preta com uns seios muito proeminentes com um garoto nas costas e eu tentei fazer então a imagem da preta mas na altura concorri com essa historia da preta aos florais do ultramar e concorri também com outra coisa que também me agradava muito. Nós lá em casa tínhamos os jornais do exército que traziam essas coisas da guerra, dos mortos e então fiz uma peça lindíssima. Ainda hoje tenho essa escultura comigo, a outra perdeu-se. Essa ficou e tenho-a comigo porque acho que é um grande monumento onde desenvolvi um pedestal e na parte de cima do pedestal desenvolvi uma espingarda com uma bainha a penetrar num crânio. Levei então essas duas peças aos florais do ultramar. Essa veio-me devolvida a da preta foi admitida.
Agora imagine como estas coisas são para um garoto que andava no sexto ano do liceu, o facto de me ter sido admitida uma peça. Isso foi para mim uma honra. Agora imagine que era o contrário. Que me tinham rejeitado as duas peças. Se calhar, o meu percurso terminava por aqui, tinha que ir para outra área qualquer. Estas coisas, às vezes, são simples mas a realidade é essa. A partir daqui começou a desenvolver-se… eu era uma pessoa que tinha muito jeito para o desenho, desenhava muito bem e as pessoas convidavam-me para fazer tudo na escola, no liceu, nos jornais… fazer desenhos para o jornal do seminário. Fazer os cenários do liceu nas festas da academia, eu e o arquitecto Ferreira. Éramos gente que nos desenvolvíamos no mesmo contexto.
O arquitecto Ferreira, sendo meu professor na altura, era uma pessoa distinta ainda hoje é. É uma pessoa muito distinta e uma pessoa por quem eu nutro uma certa admiração, um certo respeito. Bragança tinha gente de alto nível académico. Isto tem que ser dito porque é verdade. Bragança tinha excelentes professores e lá está, excelentes professores fazem bons alunos.
Depois de acabar o curso universitário regressou às origens ou pelo contrário deixou-se seduzir pelos encantos do Porto?
Não. Nós lá em baixo no Porto somos uns emigrantes. Uns vão para França, outros vão para Inglaterra, outros vão para outro lado. Nós fomos para o Porto porque não tínhamos nada aqui em Bragança. Naquele tempo nós éramos adolescentes e para mim foi uma tortura. Isto é para começar a explicitar a realidade. Quando vim para Bragança foi um tormento. Chegávamos a uma cidade onde não conhecíamos alma. Imagine o que é um garoto de treze anos, idade com que ingressei em Bragança. Um garoto sem conhecer ninguém, andávamos perdidos, depois não tínhamos dinheiro, não tínhamos nada. Éramos garotos perdidos na totalidade. Isto para mim foi uma afronta.
Eu chorei imensas vezes. À noite lembrava-me da aldeia e dizia cá para mim: “O meu pai não me deixa andar com as vacas e com os burros. Aquilo é o que eu gosto”. Fechava o dia, fechava a noite, uma atmosfera totalmente diferente, esta, da cidade. Tínhamos que estudar mas o que é que nos diziam a nós os estudos? Nada.
Compreendo hoje os adolescentes quanto lhes custa progredir na aprendizagem em determinados níveis etários. Nesses tempos foi uma tortura. Depois, quando passávamos para o nível do ensino superior não era bem similar porque já tínhamos outra maturidade, já tínhamos outro sentido de estar, mas a realidade é algo próxima também. Chegávamos ao Porto… eu nunca tinha visto o Porto na minha vida. Fui fazer exames de aptidão e fui com o peixeiro da minha aldeia. Deixou-me na rotunda da Boavista e fui até às Belas Artes sempre a pé a procurar onde ficava a Escola das Belas Artes.”Isso é muito longe, apanhe autocarro”. Mas eu, para apanhar autocarro, era uma aflição, não sabia muito bem manusear os autocarros. Lá fui a pé até que lá cheguei e parecia uma distância muito curta. Apesar de ser uma distância bastante acentuada pareceu-me que era um espaço muito curto. Nós, praticamente, andávamos sempre sós. Foi uma descoberta a sós. Depois feito o percurso académico em termos superiores e depois a maneira como se encaixa a vida de um lado e doutro.