sábado, 2 de junho de 2012

Entrevista: Dr. Júlio da Costa Carvalho


Diga-nos, por favor, onde nasceu?

Nasci numa terra da Beira, mais concretamente na freguesia de Castelo de Penalva, no concelho de Penalva do Castelo, distrito de Viseu.

Voltemos atrás no tempo. Recorde-nos a sua meninice, a sua juventude?

Uma meninice simpática, difícil como na época. Nasci em 1941 em plena guerra mundial, com a família envolvida nesse problema, com várias pessoas na guerra e, tudo isso contribuiu para que houvesse restrições. A alimentação, o vestir, enfim, com dificuldades, mas uma infância de carinho, num ambiente de família genuíno, mas com muitas dificuldades. Tinha que deslocar vários quilómetros a pé para ir à escola, no meio de matas, pinhais… Uma vida dura mas, que se gosta e se recorda com saudade.
                                                                              
A sua vida não tem nada de monótona. Diria mesmo que tem um percurso impressionante. O que o levou a percorrer tantos caminhos diferentes?

Sempre a busca da realização. Na altura, a vida era difícil, as pessoas não tinham grandes possibilidades. Nasci numa família simples e humilde e a saída para as pessoas, muitas vezes com o auxílio do professor, que aconselhava que se estudasse, que se trabalhasse… a saída para essa gente era o seminário. Eu fui para o seminário de Fornos de Algodres onde andei cinco anos e depois fui para o seminário Maior de Viseu onde fiz o sexto ano e sai. Naturalmente, que as pessoas marcadas pelo seminário, tinham uma qualidade, uma virtude pelo menos, que era uma grande capacidade de trabalho, uma grande autodisciplina, um grande auto domínio, uma grande autoconfiança na luta pelo sucesso e, portanto, muito bem preparados. E portanto, saí. Foi com facilidade que lidei, na altura, com uma situação complicada - eu saí com o sexto ano do seminário e deram-me apenas a admissão à matrícula do quarto ano do liceu - só que no ano seguinte eu fiz o quinto e o sétimo anos e, curiosamente, vim fazer a Bragança, coisa que poucas pessoas conhecem e fiz nesse ano, precisamente, o quinto e todo o sétimo ano. Dispensei no quinto ano, na altura com catorze valores, fiz cinco disciplinas do sétimo ano em Julho e completei o sétimo ano em Outubro. Curiosamente, lembro-me que o reitor do liceu de Bragança, que era o Dr. Rijo, me chamou à sala de professores e fui ali apresentado: “Olhem este indivíduo. Fez o quinto e o sétimo num ano. Dispensou, não sei quantas cadeiras, no sétimo e dispensou no quinto das provas orais.”
Depois tirei o curso do Magistério Primário, a trabalhar e matriculei-me na universidade de Coimbra em letras, portanto, eu só fui completar o curso de Filologia Românica ao Rio de Janeiro onde tenho a família, os meus pais, onde irei no próximo dia quinze. Portanto, cheguei ao Rio de Janeiro, não com o intuito de ficar lá, mas com o intuito de ver qual era a qualidade do ensino. Matriculei-me numa universidade considerada então e ainda hoje, a melhor universidade da América Latina, onde gostei de estar pelo nível de ensino, pela qualidade excepcional dos professores, grandes mestres que eu tive no campo da literatura, linguística, filologia e, ainda hoje, fonte de referência para quem estuda e pesquisa nessa matéria, os professores Celso Cunha, Matoso da Câmara Júnior, Evenildo Bernard, foram meus professores de literatura. Curiosamente lá, na altura, já funcionava um pouco o sistema dos Estados Unidos da América que era, quando se queria um bom professor pagava-se, como se paga um bom jogador de futebol, para que a cidade tivesse nome, tivesse projecção, tivesse sucesso, fosse respeitada mundialmente e, curiosamente, pagava-se uma propina excepcionalmente cara, muito cara que eu não tinha capacidade de pagar e, então fui trabalhar. De tarde trabalhava no centro de turismo de Portugal, embaixada de Portugal, onde fui assessor de imprensa mas, mesmo assim, não me dava para pagar as propinas. Já nessa altura, em 1967, funcionava no Brasil aquilo que, ainda hoje, não funciona em Portugal, que é o mecenato. Eu não tinha dificuldades em pagar as minhas propinas, eles não me exigiam o pagamento das propinas mês a mês, bastava então quando eu fosse fazer as provas escritas, exibisse uma caderneta com dez mensalidades, que na altura era muito dinheiro mensal, muito dinheiro mesmo. Então se eu não tinha dinheiro para pagar as minhas propinas, como fazia? Tinha sempre alguém, o pai, o tio ou algum familiar que andava atrás de mim. Eu até ganhava dinheiro com aquilo, pois era descontado em impostos de rendimentos, nos impostos, como o nosso IRS. Era, pois, o início de uma serenata a funcionar. O Brasil não é aquilo que ainda hoje muita gente pensa.
O Brasil é um país onde eu aprendi muito, sobretudo naquela universidade e creio que teve alguma repercussão na minha função de professor no liceu em 1970 quando para aqui vim. Ainda hoje estão cá muitos alunos meus e figuras de destaque com quem mantenho a minha amizade e ainda hoje reconhecem que, de facto, fui inovador, sobretudo no ensino da literatura portuguesa.

O Dr. Júlio estudou em dois países diferentes. Porquê o Rio de Janeiro, para além do facto de ter lá os pais, e quais as diferenças que encontrou ao nível da educação entre o Brasil e Portugal?

Olhe, eu fui ao Rio de Janeiro casualmente. Fui lá a título de visita. Eu era professor primário na Pampilhosa e era aluno do terceiro ano da Faculdade de Letras de Coimbra como estudante trabalhador, portanto, tive saudades dos meus pais e fui visitá-los ao Brasil, como agora tenho e vou lá no dia quinze. Preocupei-me em saber como era o ensino, pois estava de férias, as férias lá não coincidem com as daqui e então, matriculei-me. Perguntei a um sacerdote que tinha estado aqui em Bragança, que era amigo dos meus pais e tinha ido para o Brasil, qual era a melhor universidade do Rio de Janeiro e ele disse-me “Há boas universidades aqui no Rio de Janeiro mas, também, há más universidades. A melhor universidade daqui e, talvez, da América Latina é a Universidade Católica. Agora, é uma universidade muito cara, muito selectiva. Quanto às propinas não há problema porque aqui funciona o regime do mecenato”. E assim foi, fui lá matricular-me e, curiosamente, cheguei a ir lá para ver a diferença de cultura e mentalidades. Cheguei lá, eu tinha levado os meus documentos da matrícula e dirigi-me à Directora da Faculdade de Letras e recordo esse momento como se hoje fosse. Uma sala grande, sem vidros nem cabines. Entro nessa sala onde estavam várias mesas com vários estudantes à volta a tratarem de vários assuntos com vários professores. Ela ouviu-me, deve ter achado piada à minha forma de falar portuguesa, pois eles simpatizam muito, assim como nós, com as línguas de cada pais e diz-me ela “Sou eu pá!”, ao que eu disse “A Sr.ª Dr.ª Amélia…”, ao que ela me disse “Não, não eu sou a Mémé, deixa lá a Sr.ª Dr.ª para Portugal”.

Estava a pô-lo à vontade.

Exacto, estava a pôr-me à vontade e, perguntou-me “O que é que tu queres?” Eu respondi que queria matricular-me na faculdade, que vinha da Universidade de Coimbra, que tinha ali os documentos e, se faltasse algum apresentá-lo-ia em momento oportuno. Ela analisou os documentos e, disse-me “Falta aqui uma certidão que tem de estar autenticada pela Universidade de Coimbra.” Perguntou-me as cadeiras que eu frequentava, deu-me o currículo do terceiro ano e disse-me “Tens que fazer uma coisa. Se quiseres começas já. Vais preencher este papel e começas já a frequentar as aulas para ver a diferença de tratamento e vais ter que começar a fazer a cadeira de teologia, porque são cinco anos de faculdade e tu já tens aqui uma série de cadeiras feitas, dez ou doze, mas vais ter de fazer pelo menos dez cadeiras de teologia que são as correspondentes a cada semestre.” O sistema lá era o semestral e, portanto, disse-me “Não te damos a licenciatura enquanto não fizeres todas as cadeiras de teologia.” Assim fiz, com gosto e sempre a aprender muito. Simplesmente, o sistema era um sistema totalmente aberto, sistema de debates, de pesquisa, um sistema ao contrário do nosso, que era um sistema em que a memória predominava, portanto, era um sistema em que a abertura era privilegiada, um sistema aberto.

E o que o trouxe, posteriormente, a Bragança?

Posteriormente, curiosamente, eu acabei a minha licenciatura em 1969 e, fui convidado para ficar de assistente na Universidade Católica do Rio de Janeiro e estava como assistente da cadeira de literatura brasileira e como bolseiro da Gulbenkian para me doutorar. A Gulbenkian, não sei como, deu-me uma bolsa para estudar, tirar a especialidade com grandes mitos da literatura brasileira e, entretanto, estava um bocado cansado no fim do primeiro semestre. Foi uma actividade intensíssima de dar aulas, de pesquisa do curso de mestrado, que foi o primeiro curso de mestrado que se fez naquela universidade em literatura brasileira e literatura portuguesa. Estava cansado e resolvi ir a Portugal passar férias. Cheguei a Portugal e fiz o mesmo que fiz no Brasil, ou seja, verificar como estava o nível de ensino no país. Já tinha passado o prazo dos concursos, meti os papéis e, apresentei-me como professor ao liceu de Viseu, onde estavam os meus padrinhos, para o liceu de Aveiro, Coimbra, Bragança, a título de descargo de consciência. O primeiro liceu a chamar-me para dar aulas, porque não tinham ninguém especializado em românicas para dar literatura, foi o liceu de Bragança e ai expliquei-me “Sr. Reitor, eu tenho aqui uns problemas, vou pensar no assunto e, daqui por dois ou três dias digo-lhe alguma coisa.” Entretanto, chamou-me o reitor do liceu de Viseu para dar aulas. Telefonei para Bragança a dizer: “Afinal Sr. Reitor, eu não posso ir para ai, já estou comprometido com o liceu de Viseu.” O reitor do liceu de Viseu deu-me um horário na quinta-feira para começar a trabalhar na segunda-feira. Segunda-feira cheguei lá para começar a dar as aulas e, ao entrar no liceu, diz-me um contínuo “Olhe Sr. Dr., o Sr. Reitor quer falar consigo.” Cheguei ao gabinete do Sr. Reitor e ele disse-me “Olhe, tem aqui o seu horário para começar a trabalhar hoje só que, existem dois candidatos, um deles é a esposa de uma figura, que também quer dar aulas, não é licenciada, de maneira que o Sr. vai dar aulas, mas vai dá-las na segunda-feira.” Eu virei-me para ele com o meu espírito rebelde e disse “Sr. Reitor, muito obrigado. Nunca andei a pedir a ninguém para trabalhar, de maneira que já não aceito o seu horário, vou para outro sítio dar aulas.” Ao que ele se virou e disse-me: “Então o senhor vem mal habituado.” Ele sabia que eu tinha vindo do Brasil e eu respondi “Não, não venho não. Se aqui for este o sistema eu volto para o Brasil, pois tenho o meu lugar assegurado na Universidade Católica do Rio de Janeiro.” Então sai dali e vim directamente para o escritório do meu padrinho, onde telefonei para o liceu de Bragança. Atendeu-me o Sr. Reitor e, eu perguntei “Sr. Reitor, o meu lugar já está ocupado?” Ao que ele respondeu “Não, não temos ninguém licenciado em românicas.” Ao que eu disse “Então, eu, amanhã, estarei aí para dar aulas.” Naquele mesmo momento o meu padrinho pediu ao motorista para me levar à Régua, da Régua apanhei o comboio até ao Tua e do Tua vim para Bragança de comboio e demorei quatro horas e por cá fiquei, mas sempre com intenção de regressar ao Brasil, só que cheguei ao Liceu de Bragança e encontrei quem me tem aturado desde 1970.

Está casado com a Dr.ª Olema Mariano, que desempenhou durante muitos anos, funções de responsável distrital na área da educação e é caso para dizer que ao lado de um grande homem, está uma grande mulher. É assim?

Sempre foi e tem sido uma grande mulher e uma grande mãe. Eu vou-lhe recordar só este episódio para expressar a minha admiração por ela. Eu, em determinado momento, estava no liceu de Bragança como professor e resolvi tirar direito. E porquê? Porque tinha uma turma de alunos, todos eles brilhantes, todos, agora, bem colocados. Eu posso citá-los quase todos, todos meus amigos e, um deles, já foi secretário da justiça. Por exemplo, a Dr.ª. Amélia. Enfim, uma turma de pessoas excepcionalmente brilhantes e muitos deles iam para direito, tendo começado a entusiasmar-me no sexto e sétimo anos para tirar direito com eles e eu, curiosamente, não tinha tirado direito porque quando fiz o sétimo ano aqui em Bragança, estava a dar aulas em Lamego e não arranjei um professor de alemão que era obrigatório nesse ano de escolaridade e, como não arranjei professor de alemão, fiz grego e foi por isso que fui para filologia românica. Resolvi então ir fazer o curso de direito a Coimbra. A minha mulher, com quem tinha casado nesse ano, encheu-se de coragem e disse-me “Se é essa a tua vontade, vai”. Nessa altura havia um princípio, quem tirasse um bom primeiro ano de direito, acabaria o curso com facilidade, por outro lado quem andasse a empatar o primeiro ano e eu conheci alguns, não conseguiam fazer o curso chegando mesmo a ir para outros cursos. E continuou a dizer-me “Vais, mas tens que fazer um bom primeiro ano, se queres tirar direito.” A minha mulher ficou a dar aulas no liceu, enquanto eu estive a estudar como aluno ordinário, à custa dela, em Coimbra.

Em 1971, na Preparatória Augusto Moreno, fez-se uma exposição sobre Alves Redol, que foi uma descoberta para muitos e onde o Dr. Júlio fez uma palestra. Porquê esse escritor?

Olhe, eu era professor de literatura e, como professor de literatura tive alguns problemas. Na altura, quando cheguei aqui, uma das obras de base, de apoio aos meus alunos e que eu considerava fundamental, era a história da literatura portuguesa do Óscar Lopes, mas que era proibida nos liceus e eu afrontando o poder, indiquei sempre aos meus alunos como ponto de referência para as pesquisas, para a investigação, para o estudo, a obra do Óscar Lopes, que ainda hoje é referência da literatura portuguesa. E, portanto, dei sempre uma visão um pouco sociológica da análise estrutural da obra literária. Toda a gente sabia. Na altura havia a PIDE. Fui abordado várias vezes. Tive um aluno que era o Inácio, que foi um dos homens fortes do governo de Angola que, depois, veio a ser liquidado, precisamente por ser um apoiante, a quem eu paguei o passaporte, levei a Alcanices para fugir de Portugal e partir dali para a Argélia. O Inácio que morreu recentemente num atentado, numa teia que lhe armaram em Angola, fazendo explodir o barco de recreio onde estava com a família e, portanto, dei sempre uma visão crítica da literatura portuguesa e nunca me preocupei, apesar de avisado.
Insisti sempre na minha postura de professor de literatura com base no Óscar Lopes. Como sabe, ele foi um homem excepcional e sabendo que eu tinha essa visão da literatura portuguesa, houve uma exposição trazida aqui a Bragança pelos homens da oposição ao governo em 1971 e para essa exposição do Alves Redol na escola Augusto Moreno convidaram-me para ser o orador. Fui para lá com consciência do que ia acontecer. Fui mesmo avisado que provavelmente sairia dali preso e não tive medo. Fiz essencialmente uma análise crítica, o mais rigorosa possível, da obra e lembro-me que estava lá o Marcolino Cepeda, enquanto aluno e outros, estava repleta a sala. Havia o grupo do poder e o grupo da oposição que me apoiou bastante. Fiz a palestra. Era um escritor neo-realista, um dos pioneiros do neo-realismo em Portugal, na sequência do realismo de Eça de Queirós e outros, um homem que denunciava a opressão, a exploração, a desgraça, a miséria deste país, um homem que se afundava na lama, enfim, um homem que denunciava a realidade portuguesa.
No fim da palestra, houve um debate e surgiu uma pessoa ligada ao poder que perguntou aos organizadores “Porque razão trazem aqui o Alves Redol que é um do contra, um esquerdário?” Lembro-me que há uma voz que se levanta indignada com essa pergunta, que era o Dr. Eduardo Carvalho e afrontou essa pessoa. “Você é um…” e, estava a ver que tudo aquilo ia descambar. Enfim, depois, as perguntas, surgiram com toda a correcção e tudo acabou bem, com muita elevação crítica.

Conforme disse, sofreu um pouquinho com “eles”. Viveu no conturbado período do 25 de Abril. Fale-nos brevemente desses tempos e da sua relação com a política.

Eu tinha tido uma experiência muito grande no Brasil no campo político. Tinha estado preso várias vezes. Eu fui Presidente da União Portuguesa dos Estados do Brasil, que era uma organização de estudantes universitários de esquerda e de oposição ao poder, na altura. Vivi sobre uma ditadura militar e, portanto, tive imensos problemas lá. Na altura devorávamos, entre 1967 a 1970, toda a obra do Marxismo, sobretudo a obra dum homem que marcou a minha geração, que foi Herbert Marcus, um anarca, que fez parte da tese que estava a preparar para o doutoramento, subordinado ao tema “Aristóteles e Marcus separados pelo tempo.” Marcus tinha sido um homem que influenciou a geração francesa do Maio de 1969, como a nós nos influenciou e foram esses movimentos que fizeram tremer o Brasil. Portanto, uma obra era publicada em Paris e no dia seguinte já nós a tínhamos traduzido no Brasil e lido, e devorado. Aquilo era uma coisa impressionante, com uma velocidade diabólica. Portanto, marcou-me. Sabe, eu tinha uma sólida formação, sobretudo, filosófica do que devia ser a política, do que era um estado, uma nação e um país como eu gostava de ver e, portanto, não fui para o Marxismo.
Fui convidado para organizar o partido socialista. Tive mesmo uma reunião com um grupo de Lisboa que aqui veio para eu fundar o partido socialista em Bragança e eu só não aceitei porque fugi do Marxismo e fugi num dia em que fui assistir a uma palestra do Marcus no Brasil, em que nós lhe perguntámos - ele dizia que a sociedade ocidental era uma sociedade degradada, uma sociedade a destruir, que tinha de acabar - e eu perguntei “Mas, afinal, qual a solução?” Ao que ele respondeu que a solução passava pela liquidação. E, perante isso, nós associámos essa ideia ao Marxismo. Numa obra, também, fundamental, em que há um diálogo entre ele e outro grande filósofo da actualidade e lhe pergunta: “Mas, afinal, queres acabar com as cadeias mas, alguém te garante que no lugar desse prédio não irá surgir outra cadeia?” Enfim, o Marxismo não é nenhuma companhia de seguros, não garante nada. Nós, influenciados por isso, repudiámos, começámos a repudiar o comunismo na sua “praxis” política, não na sua teoria, não nos seus princípios que o informam, mas na sua “praxis” política.

Foi, também, vereador do Pelouro da Cultura da câmara municipal de Bragança já lá vão vinte e quatro anos. O que mudou a nível cultural em Bragança?

Estou bastante preocupado com o que se está a viver em Bragança e, sobretudo, não entendo, não compreendo. Lembro-me que quando era professor do liceu, foi publicado um livro sobre a história do Liceu de Bragança. Por acaso fazia lá referência a uma obra que eu dirigi no liceu sobre Camões, no Centenário de Camões. O autor desse livro refere o meu nome dizendo que foi nessa altura que foi publicada uma obra notável no liceu sobre Camões. E com o que é que nós nos preocupávamos? Preocupávamo-nos em incentivar os alunos a publicar os seus trabalhos, as suas pesquisas, as suas investigações em obras de divulgação cultural no liceu e essa obra que está aí, acessível marca, precisamente, a história do novo ciclo de análise literária em que os próprios alunos, em grupo, faziam trabalhos preciosos que estão lá e, que eram um estímulo para eles. Hoje, confesso que vejo aqui, ou seja, não vejo aqui, por exemplo, uma ligação entre escolas, politécnico e escola superior e a própria sociedade. Cada vez mais vejo as pessoas mais preocupadas com a noite. Há dias, foi lá um grupo de estudantes do politécnico a pedir informações sobre uns assuntos de engenharia e eu disse que não entendia como é que no politécnico não existe uma escola, um centro que faça projectos para o exterior, que se integre na sociedade.
Já em 1972 fui passar as minhas férias, era estudante aqui e ia para França ganhar dinheiro para o resto do ano e estive a trabalhar num campo de trabalho em Nancy onde existia uma grande universidade e eram os alunos de arquitectura que faziam quase todos os projectos para aquela cidade com o apoio dos professores. Eu nunca vi isso num aluno aqui. Lembro-me que no Brasil, os meus colegas de engenharia estavam já integrados na sociedade. Os alunos do terceiro ano de medicina iam pelos hospitais, inclusivamente, os da periferia, prestar assistência. Eu só entendo uma escola assim. Uma escola que não esteja desligada da realidade, que esteja integrada em pleno na sociedade, para que o aluno saia de lá e não lhe aconteça o que nos acontecia a nós, estudantes de Direito, que nem uma procuração sabíamos fazer quando saíamos da faculdade e nunca tínhamos ido a um tribunal. Eu só vi um tribunal depois de estar a fazer o estágio.

E que recordações guarda da sua experiência como governador civil?

Uma experiência excepcionalmente agradável, agradável e triste. Agradável pelo contacto com a população, com a comunidade, com os problemas, com os interesses muitas vezes convergentes, a nossa preocupação em sanar, em resolver os problemas da terra, apresentar soluções, fazer relatórios, pressionar quando era possível, exercer uma função onde nos sentíamos úteis. O Governador Civil, por natureza, é um representante do Estado Português e, eu nunca quis que isso fosse assim. Quis, essencialmente, ser um representante da população junto do governo. É claro que isso me trouxe dissabores e saí no momento em que tive uma intervenção violenta junto do governo por causa de assumir a representação da população para que fossem sanados os vários problemas.

Muito se tem falado da justiça em Portugal nestes últimos anos e, nem sempre pelos melhores motivos. Na sua opinião a que se deve este estado de coisas?

Olhe, eu tenho ouvido muita coisa, mas também tenho ouvido muita asneira. Sou advogado há muitos anos, vinte e muitos anos, confesso-lhe que nunca vi a justiça muito diferente do que é agora. O que aconteceu nestes últimos anos foi um excesso de processos nos tribunais, pois hoje há muita mais facilidade de acesso aos tribunais. Primeiro pelas condições económicas das pessoas, segundo porque existem meios e mecanismos que permitem ao tribunal, o apoio judiciário que existe e funciona. Depois a vida das pessoas mudou completamente, as pessoas trabalham, têm uma vida económica muito mais desafogada, as empresas multiplicaram-se, os carros aumentaram, hoje os problemas são muito maiores do que há vinte anos, portanto, os tribunais entupiram, ficaram saturados de processos e o números de juízes não aumentou significativamente. Portanto, o que acontece é que, de facto, a justiça, às vezes, é mais lenta mas não é por causa das estruturas judiciárias. Não pode ser imputada aos magistrados essa responsabilidade, aos funcionários, aos advogados. A situação mantém-se e acho que, muitas vezes, há muita injustiça quando se atacam magistrados. Eu conheço muitos magistrados e na sua generalidade são pessoas que trabalham dia e noite para terem os seus assuntos em dia.

Então, do seu ponto de vista, o que deverá ser feito para devolver à justiça a credibilidade que ela deve ter?

A credibilidade é precisamente essa. Há muita coisa, muita bagatela penal e civil que tem de ser banida dos tribunais. As pessoas não imaginam como as coisas se processam. O juiz tem que dar o despacho e há coisas que podem sair da zona do juiz. Eu não entendo, não compreendo como é que tantos serviços que não têm nada para fazer, têm tudo à sua disposição, inclusivamente situações caricatas: pessoas que não têm a mínima dignidade para terem sequer um gabinete próprio e que têm secretárias por todo o lado. Qualquer serviço hoje em dia tem carro próprio, um juiz nem isso tem. Porque é que o gabinete do juiz não há-de ter um grupo de funcionários como assessores, pois o juiz preocupar-se-ia essencialmente com o julgamento e as suas sentenças.
Há coisas que não têm nada que passar pelo juiz, pois o juiz perde horas com o despacho de um simples processo. Tem que se apetrechar as coisas, tem que ser o juiz a passar as suas sentenças. Eu recebo muitos acordos da relação feitos manualmente. Portanto, o juiz tem que fazer tudo, há bagatelas que não se justificam, problemas de contra-ordenação, recursos, etc. Tudo vai parar ao juiz, um simples furto. Recordo, por exemplo, que neste momento já se libertaram os tribunais, mas não ainda o suficiente.
O problema, por exemplo, das comissões arbitrais. Eu sou o representante para acidentes de pequena monta aqui no distrito de Bragança, um acordo que fizeram as companhias de seguro a nível de vários países. Sou eu que tenho essa função. Existem as duas companhias, vamos ao local e liberta-se os tribunais, enfim, há muito mais coisas que podem libertar-se dos tribunais, mas até hoje ninguém teve coragem de o fazer.

Passemos, agora, para outro tema que lhe é muito querido, a caça, que é uma presença importante na sua vida. Fale-nos brevemente desse tema.

A caça é uma paixão. A gente tem que ter umas paixões na vida, como é a lavoura, a música apesar de só tocar umas coisitas e, portanto, a caça é uma actividade excepcionalmente bela. Primeiro porque somos capazes de viver em permanente contacto com a natureza, protegendo-a, ao contrário do que muita gente pensa. Os destruidores são os ambientalistas, ou a maior parte deles, que falam de cor, sem saber, sem sair da cidade, mas que impedem que se tire um gato do monte. Somos nós que fomentamos a caça, somos nós que dirigindo as associativas, dizemos por exemplo, que aqui há mil coelhos, mas só matamos quinhentos, para ficarem para reprodução, porque sabemos que o coelho é fundamental para o sistema ecológico. Muitas aves de rapina vivem dele, o lince e outros animais vivem porque existe o coelho e somos nós que o protegemos. Segundo porque é uma libertação. Nós vamos para o monte para uma jornada de convívio, de solidariedade, de experiências… e terceiro, porque estamos a contribuir para a riqueza do país ao contrário do que muita gente pensa.
Hoje, a caça representa, e devia representar muito mais, uma fonte de receitas para Portugal. A Espanha tem uma receita astronómica e nós não temos cuidado suficientemente da caça. Veja o que acontece em Trás-os-Montes. É uma vergonha o que se está a fazer, pois tem que sair urgentemente da alçada do Parque Natural de Montesinho, que não sabe gerir, que só sabe falar, que só sabe destruir. Ninguém imagina a riqueza que temos aqui e que não está a ser explorada. Preferem deixar um veado a morrer de velho, de podre e a transmitir doenças aos da espécie, preferem não fazer nada, a fazer turismo e receitas para o estado. O ano passado fui caçar a algumas zonas do parque e, não há caça! A caça tem que ir para o Ministério da Agricultura que é quem sabe de caça e mais nada.

A falta de acessibilidades acentua a descriminação desta região. Estaremos condenados a desaparecer do mapa?
           
Eu tenho uma outra visão. Já tive uma visão diferente. Na altura em que os investimentos vinham para aqui, lembro-me de amigos meus a dizerem que não tinham resposta aos pedidos de colocação de indústria. O IP4 não se fez oportunamente, perdeu-se essa oportunidade. Hoje começo seriamente a pensar se nós não deveremos ser diferentes dos outros e transformar Trás-os-Montes numa reserva ecológica de excepcional qualidade e investir ai, porque os investimentos já não vêm para cá. É tarde de mais.

A solução estará na criação de uma região norte?

Não, nunca. Aí de nós que estejamos dependentes dos do Porto, que são egoístas.

Na sua opinião em que estratégias temos de apostar para que esta região se torne menos periférica, menos esquecida pelo poder central?

Na regionalização, que devia ter sido feita oportunamente e lamento que o meu partido e outros tenham recuado em relação à regionalização. Tiveram medo de nós, da nossa capacidade de iniciativa.

Para terminar que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Heidegger foi um filósofo que me marcou na minha juventude e Cristo que me tem acompanhado.

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