segunda-feira, 4 de junho de 2012

Apresentação do livro "Tempo de Fogo" de Amadeu Ferreira

Ex.ma Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Mogadouro, Eng.ª Tereza Sanches,
Minhas senhoras e meus senhores,

No princípio era a Palavra

E é a "Palavra" de Amadeu Ferreira que hoje nos traz aqui, a este prestigioso palco da vigésima quinta Feira do Livro de Mogadouro

E é, para mim, um tremendo orgulho pessoal poder estar neste palco, ao lado dele, para falar do seu “Tempo de Fogo”.
Quem é este autor que me incumbiu de apresentar em terra de Trindade Coelho o seu primeiro romance?
I. O Autor
O nome Amadeu Ferreira remete-nos para um vasto universo da cultura portuguesa da actualidade. É certo que a incansável promoção da Língua Mirandesa lhe tem proporcionado com mais afinco a luz dos holofotes. Porém, reduzi-lo a essa imensa dimensão (reparem no aparente paradoxo), seria, apesar de tudo, muito penalizador.
Penalizador para o poeta, para o ensaísta, para o historiador, para o investigador, para o linguista, para o jurista, e, agora, para o romancista.


Muito gostava eu de o poder apresentar em Língua Mirandesa! Mas o rudimentar conhecimento que possuo dela, infelizmente não mo permite. Apesar de me encantar a sua sonoridade, desde que há cerca de quarenta anos vivi em Bila Tchana, nunca me opus a estudá-la com afinco. Daí que me tenha socorrido desta maravilhosa ferramenta que é a internet e tenha conseguido aceder ao currículo on line de Amadeu, escrito por ele, em mirandês e de que passo a citar pequenos excertos onde, propositadamente omiti as referências à sua vasta obra, realçando outrossim a personalidade, a determinação e o carácter do Homem:
Naci an Sendin (29 de Júlio de 1950) i stou a bibir an Lisboua zde 1981.

Deç pequeinho siempre tube la manha de screbir, subretodo bersos.

Fago por poner an prática la seguinte eideia que a mi mesmo m'ampus: nun deixar passar un die sin FAZER algo pula lhéngua mirandesa.

Ende l más amportante ye l'atitude que ancarna an pequeinhas cousas, cousas mesmo mui pequeinhas que hai que fazer todos ls dies, an qualquiera sítio i delantre de qualesquiera pessonas. Cousas tan pequeinhas cumo falar, registrar, oubir, nua atitude de star siempre a daprender, a çcobrir. Cousas tan pequeinhas cumo trasmitir l que daprendimos. Cousas tan pequeinhas cumo tener pacéncia para cumbencir de l que achamos que stá cierto, sin tener que oufender.
Mais palavras para quê. Estamos na presença de um homem com uma cultura invulgar, mas, também um homem com uma personalidade igualmente fora de série. Pequenas provas disso já as tive em pequena troca epistolar. Outros que com ele têm o privilégio de conviver no dia-a-dia poderão aferi-lo melhor do que eu. Mas, vamos à “Palavra”. Vamos ao “Tempo de Fogo”.
II A Obra:
“Tempo de Fogo”… “La Bouba de La Tenerie”. Dois títulos. Uma obra. Duas Línguas, uma só “Palavra”. A “Palavra” que Frei António da Santíssima Trindade usou para se aproximar de Laurinda, a tola da Teneria. A mesmíssima “Palavra” que o professor João Gabriel há-de descobrir, alguns séculos depois, para nos transmitir as suas angústias e as suas incertezas acerca da verdadeira pedagogia.
No “Tempo de Fogo”, Sendim é o centro do Mundo. “Pelo meu povo, se vê o Mundo todo”, já diz o ditado popular. E o autor faz dessa máxima o seu guião. Amadeu pega no quotidiano ronceiro de uma pequena comunidade rural e preenche-o com personagens prenhes de humanidade. Nem Hieronymus Bosch com a sua paleta magnífica, almejaria pintar de forma tão convincente o quotidiano da época.
Uma época de fogo, como bem sugere o título. Uma época de inquietação, onde se cruzam os terrores obscurantistas da Santa Inquisição com os anseios de gente simples. Uma época de choque entre as mentalidades tacanhas da pequena comunidade rural, asfixiada por uma Igreja dominadora, e o cosmopolitismo de Frei António que estudou em Salamanca e de António Tolês que viajou e conheceu uma boa parte da Europa.

Como realça a investigadora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Teresa Martins Marques, este é um romance em trânsito, em que o autor aproveita para descrever superiormente a paisagem rural e os usos e costumes da época: as pequenas peregrinações, as romarias, as feiras, as levas de presos a caminho dos cadafalsos da Inquisição.

Frei António faz a sua viagem espiritual e revê a vida diante de si, enquanto caminha para o castigo pelos pecados cometidos por amor. Sim, este também é um romance em que os amores ganham o epicentro da meada. Amores proibidos, amores platónicos, amores carnais.
António Tolês vai à Feira do Naso vender plantas do renovo. Perseguido pelos fantasmas do sangue mau (“levava a impureza de sangue colada à pele, como um destino”, refere o narrador a dado passo) e de sua avó queimada em Toledo. Haverá de atravessar as vidas de Frei António e de Ludovina como um furacão que deixa atrás de si um rasto perene. Viajou por Itália, França e pela Flandres, mas é ali, em Sendim, que o destino o vai largar.

Amadeu aproveita as personagens para colocar questões fulcrais ao leitor. O Tolês pergunta: “se existem, não deveriam os deuses matar-se uns aos outros, em vez de porem as pessoas a morrer por eles?” e ainda, na mesma linha de humor fino e extremamente cáustico, ataca o edifício religioso, como se observa através desta soberba passagem: “os que são fanáticos da religião ficam doidos a ponto de serem capazes de se entregar ao demónio e mergulhar nos Infernos, apenas com medo de que Deus, por engano, os recebesse no céu com tantos pecados”. Mas a religião não é apenas causticada. Ela também é encarada como o cimento da vida social, como uma espécie de garante do cosmos por oposição ao caos: “por isso há muito criámos um deus que fosse como um polícia sempre presente para nos vigiar em qualquer lugar onde estivéssemos(…)”.

Mas, voltando às personagens que enriquecem esta obra, falemos agora de Henrique Peres, de Manuel Miguel e de Maria Castra que têm como único denominador comum a feira de Mogadouro. No entanto, os seus caminhos haverão de entrecruzar-se numa malha superiormente tecida e ornamentada pela pena do escritor, com desfechos inesperados. Não cabe aqui dizer-vos qual. Cabe-me apenas abrir-vos o apetite. Ludovina e Baltasara, os frades dominicanos, o Vigário Geral e outros que tais, completam um rico enredo que nos transporta, como se de uma máquina do tempo se tratasse, para uma época específica da nossa História, que ficou gravada nos anais com a marca do fogo.


Pelo meio, Amadeu vai-nos dando algumas pinceladas entre o realista e o burlesco. Não há nada mais delicioso do que a autocrítica jocosa. O autor fala dos sendineses como uma espécie de raça maldita. Fazendo jus ao dito popular que afirma que é mais fácil encontrar um melro branco do que um sendinês bom. “Alma do diabo de sendinês malarês”, exclama Frei António.
Como se adivinha é incontornável a relevância da Palavra em mirandês neste romance. A propósito desta estranha língua, frei Agostinho adverte frei António: “tem cuidado, António, porque as línguas são uma coisa perigosa”. Então, como agora, e como bem frisa o professor primário João Gabriel, o conhecimento é inimigo do Poder.

Parafraseando frei António: “as palavras atiram-se a mim como lobos e vão-me comendo a alma em fatias. Novo castigo de Sísifo, porque a alma me volta a crescer entre cada interrogatório” e “quando me levarem à fogueira, hão-de encontrar-me já sem pinga de alma porque, tanto quanto possa, hei-de espalhá-la por aqui, presa a palavras no laço azul da tinta.”
Em jeito de conclusão e seguindo as sábias palavras do já mencionado João Gabriel, apetece-me dizer: afinal de contas, em cinco séculos, o que é que verdadeiramente mudou?
E mais não digo. Leiam o romance. É uma viagem fantástica ao nosso passado comum. Particularmente para os que conhecem as nossas terras do Planalto Mirandês, há nomes, topónimos e descrições que nos enchem a alma. Mergulhem nele e deixem-se embrenhar pela luz da Palavra que rasga as trevas do obscurantismo.

Parabéns ao Amadeu. Que as mãos nunca lhe doam. Que continue a enriquecer o espólio da literatura portuguesa. Que continue a pugnar pela lhêngua. Que continue a levar o nome destas terras esquecidas aos quatro cantos do mundo.
Muito obrigado.
Antero Neto
 
Retirado do blogue mogadouro (ho mogadoyro) de Antero Neto

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