(Escrito para o filho mais novo, no dia em que este fez
22 anos)
[A imensa honra que eu tenho por ter este HOMEM entre os
meus mais próximos AMIGOS]
«Tratado sobre linhas rectas e outras falsidades
semelhantes»
I.
Estudei há muito tempo, bem antes dos anos que hoje fazes a teoria das linhas
rectas, mas mais de cinquenta anos depois ainda não fui capaz de as descobrir,
essas malandras das linhas rectas que bom jeito me teriam dado; ao mesmo tempo
ensinaram-me que um segmento de recta era o caminho mais curto entre dois
pontos, mas se não há rectas também não pode haver segmentos de recta e ninguém
sabe o caminho entre dois pontos antes de o fazer, mas não te preocupes que não
seja curto desde que te leve aonde apontaste os teus passos.
II.
Ainda que haja quem não a queira ou quem a tire, fica a saber que a vida é uma
maravilha e nada há melhor do que vivê-la:
é óbvio que a morte lhe vai saindo ao caminho com as suas dores, os seus suores
e os seus medos, e dizem-nos que acabará por nos ganhar a guerra, mas a
respeito disso pouco te sei dizer a não ser que lhe podemos ganhar batalhas sem
fim e bater-lhe a um ponto tal que nos deixa de bem connosco próprios: atira-te
a ela e para isso basta que vivas até que um dia, ainda muito distante, te
canses.
III.
não procures coisas grandiosas, pois isso, digo-to eu são miragens: a força e o
valor estão nas pequenas coisas, a tua vantagem é que sejas capaz de as
entrelaçar em corda que ninguém possa partir: miudezas como por exemplo um som
que apenas dura um instante, mas que, multiplicando-se por milhões se
transforma em música que pode embalar os teus dias.
IV.
não tenhas medo ao silêncio, aprende a ouvi-lo bem e a medir-lhe os passos,
pois não é apenas um intervalo entre dois sons, mas coluna que lhe aguenta a
estrutura e lhe dá o ser: não ficam expostas ao vento as sementes ainda ao colo
da terra antes de rebentarem.
V.
quando ficares triste, não te preocupes porque os dias também têm que deitar a
sua sombra, apesar disso não te deixes ficar durante muito tempo agarrado ao
seu frio: não deve passar do descanso que mereces para no fim poder agarrar
balanço e subir de novo à claridade do sol.
VI.
que não te enganem os amigos e outros que gostam de ti, até mais do que tudo:
ninguém pode gostar mais de ti do que tu próprio, mesmo ninguém, e é aí que
começa, serena, a tua saúde e o teu equilíbrio com o mundo: se te disserem que
isso é vaidade ou egoísmo atira-lhes uma risada contra o seu bom senso, antes
que te virem contra ti próprio.
VII.
se ouvires cantar um pássaro, cala-te e ouve-o, ainda que saibas que nunca o
compreenderás: esse trabalho de aprender a ouvir é tarefa que nunca tem fim.
VIII.
não vês que a água corre sempre para baixo? então, aproveita o balanço dos
dias, mas nunca te esqueças de que o ribeiro já encontrou a encosta feita, mas
apenas tu poderás decidir para que lado corre a tua água e de que lado fica o
que sobe e o que desce.
IX.
nunca desaprendas as canções que te nascem, pois de toda a vida podes fazer
musica bonita, nem que seja um requiem: e onde a música se cala, nunca
saberemos as tempestades e guerras que se podem fazer.
X.
a Verdade não existe, e digo-te que muito essa verdade me custou a aprender:
procura-a, mas fica a saber que apenas uma parte da verdade encontrarás: aí
temassento todo o respeito e liberdade; as verdades únicas, sejam quais forem,
são fonte de morte e destruição, pois onde as quiserem meter já mais nada e
ninguém lá pode caber.
XI.
não faças a tua casa em cima de colunas de outros, nem deles de tudo dependas
pois nunca ganharás para lhe matar a fome com que te quererão comer: não
queiras outro amo além de ti próprio.
XII.
trata a tua casa que é a memória, as lembranças por onde foste subindo: vai-lhe
limpando o mofo e mantendo vivos os sinais que lá te levam: essa é a maneira do
passado apenas te servir para te empurrar para diante e te ajudar a saber quem
és.
XIII.
não acredites que são inúteis as coisas que te disseram que são inúteis: apenas
tu poderás dizer o que tem essa qualidade ou não, conforme o teu critério e
nunca segundo o seu valor em dinheiro ou outros valores semelhantes.
XIV.
o sorriso é uma coisa séria: nunca fiques sério com ela; toma bem atenção que
os deuses nunca poderiam existir porque nunca seriam capazes de sorrir; mas tem
cuidado: uma gargalhada pode matar mais que milhares de bombas e tens de
aprender a lança-las.
XV.
a indiferença é um cancro social que mata sem dor: podes prevenir essa doença,
basta que não deixes que te seque a fonte das lágrimas, porque não foste tu que
fizeste o mundo onde vives e porque nele te transformarás ao morrer.
XVI.
encontrarás mais invejosos pelo caminho do que estrelas há no céu: faz o teu
mundo paralelo ao deles, mas se te tiveres de cruzar com eles atira-lhes com
uns pozinhos de desprezo que é a maneira de arderem na sua própria raiva; quem
não leva a sério o que é importante para ti, não te respeitará: por muitas
explicações que te dê ou juras que faça, não percas tempo com ele, pois não há
outra maneira de te respeitares a ti mesmo.
XVII.
não te deixes encandear pelas supostas virtudes que te cantam do trabalho, pois
isso nada mais é que o imposto que pagas à sobrevivência e a renda de casa que
pagas à sociedade onde vives: não convém que pagues mais que a conta, para que
te sobre tempo de fazer o que queira e fazê-lo com vontade.
XVIII.
a felicidade não existe, nem existem paraísos: apesar disso faz-te falta a
palavra felicidade para poderes dar nome aos instantes em que foste feliz: fica
a saber que podem ser muitos, mas nunca todos; não te enganes pois eles não
nascem do muito saber, mas apenas do honesto e bom viver.
XIX.
se te disserem que os velhos não existem, não acredites: eles existem mesmo e
ainda bem; quem nega que haja velhos de certeza que não os respeita, como faz
esta sociedade onde vivemos.
XX.
fica também a saber que a morte existe mesmo, por muito que a escondam:
habitua-te a ela de um modo muito simples: morremos todos os dias à medida que
mudamos, crescemos e vivemos: sabes, tudo isso não passa daquilo que dizemos a
respeito do caminho, o que sobe é o mesmo que desce.
XXI.
cada manhã que acordes é um milagre de vida: nunca farás o suficiente para a
celebrares.
XXII.
ouvirás dizer que antigamente é que era bom e até se sabia mais e as pessoas
eram melhores e até que o paraíso existiu no passado: não acredites, pois agora
tudo é melhor, e essas baboseiras nada mais são que a falsa filosofia com que
os velhos defendem os tronos onde estão sentados, o mundo que eles fizeram:
quando eu tinha vinte e dois anos já sabia muitas coisas, mas acredita que não
sabia nem metade do que tu sabes hoje, nem o mundo tinha as maravilhas que os
novos foram fazendo.
P.S. ainda te digo uma última coisa: tudo isto que aqui
te disse, com a pompa dos números romanos, não tem grande importância, pois
isso será o que tu próprio descobrirás, porque o essencial do mundo está ainda
por fazer e nisso és um rapaz de sorte.
Retirado
do Facebook (Teresa Martins Marques)