ENTREVISTAS

Entrevista ao Professor Doutor Fernando Faria Correia

 

Maria Cepeda (M.), entrevistadora

Fernando Correia (FC), entrevistado

 

M. – Obrigado por ter vindo! Hoje temos connosco o Doutor Fernando Faria Correia que é investigador da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho e foi o único especialista da Península Ibérica a integrar a “lista Top 40, abaixo dos 40 anos”, elaborada pela Biophtalmologist [ou Biophtalmology Jourmnal ou Ophtalmology Journal?] a principal revista científica do setor e isso aconteceu em 2015, se não estou em erro.

É um oftalmologista talentoso que tem publicado artigos importantes na área de ceratocone, catarata e cirurgia refractiva. É especializado em cirurgia refractiva córnea e cirurgia de catarata. É revisor de várias publicações científicas além de pertencer ao grupo de tomografia e biomecânica do Rio de Janeiro. Publicou dezenas de artigos científicos e recebeu inúmeras distinções.

Concluiu a licenciatura em Medicina na Faculdade de medicina da Universidade do Porto em 2007 e realizou o internato de formação específica em oftalmologia no Centro Hospitalar de S. João, Porto, Portugal, de 2009 a 2012. Durante o último ano de internato integrou a Fellowship de Córnea e Cirurgia Refractiva liderado pelo Professor Doutor Renato Ambrósio Júnior, Rio de Janeiro, Brasil. Em 2013, realizou outro Fellowship em Catarata e Cirurgia Refractiva liderado pelo Dr. George Waring, na University of South Caroline Storm Eye Institute, na Carolina do Sul, Charleston, nos EUA. Além de ter uma prática clínica movimentadíssima, atua ativamente na pesquisa clínica e integra as atividades do grupo de estudos em Tomografia Biomecânica da Córnea do Rio de janeiro. Também atua ativamente no ensino, sendo instrutor em vários cursos e orador convidado em distintas conferências internacionais. Em 2017, defendeu a sua tese de doutoramento em medicina, obtendo o título de Professor Doutor e concluiu ainda o curso de Physian CO na Kellogg School of Management, na Western University, nos EUA. FC. - Chicago.

 

M. - Em Illinois. Ora, o Professor Faria Correia é revisor de várias revistas internacionais de oftalmologia. Desde 2020 faz parte do conselho editorial da Cataract and Refractive Surgery Today Europe. E é membro do conselho internacional da International Society of Refractive Surgery. Atualmente, também é editor chefe da Revista Oftalmologia da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO). Ora, isto é um currículo que nos deixa sem fôlego, apenas com 38 anos de idade.

Hoje temos então o privilégio de o entrevistar. Um jovem transmontano, natural de Bragança, com provas dadas na sua profissão a nível nacional e internacional. Professor Doutor Fernando Faria Correia, com apenas 38 anos, e volto a repetir, tem um currículo impressionante. Avancemos com as perguntas…

De que forma, o facto de, apesar de não ter nascido em Bragança, mas tendo sido cá registado, de que forma esse facto o influenciou?

FC. - Antes de mais, obrigado pelo vosso convite para participar na entrevista.

M. - Para nós é um gosto.

FC. - Sabe que eu tenho uma saudade enorme em passar no IP4, no Marão, quando vejo aquela placa “O Reino Maravilhoso” de Miguel Torga… para lá do Marão mandam os que cá estão. Estou desde 2001 na Cidade Invicta e quando falo dizem que “este sr. Não é de cá; tu não és de cá, és transmontano”. O sotaque fica, felizmente. E tenho muito orgulho em dizer que sou transmontano e que sou de Bragança. Sou brigantino.

M. – Ótimo! Isso a nós só nos deixa felizes! E isso influenciou de alguma forma a sua maneira de estar na vida?

FC. – Influenciou porque aqui, Bragança é, vamos dizer, um microclima que nos permite crescer de uma forma mais natural; permitiu-me, a mim, preparar-me para enfrentar um pouco a sociedade, enfrentar o trabalho, enfrentar o estudo, estar em momentos só porque estive em muitos cantos do mundo sozinho, muita viagem de avião sozinho, espera de avião nos aeroportos e a gente, na solidão, às vezes, aprende a filosofar, a meditar e é aí que crescemos como pessoas, como também o que nós podemos contribuir para a sociedade, nomeadamente… acho que o que fez isso… por exemplo, eu estou aqui, num local onde dei os meus primeiros passos. Isto era o 2.º ciclo, a preparatória Augusto Moreno era aqui, fui aluno aqui e é um prazer enorme estar aqui a dar esta entrevista num sítio que me preparou para enfrentar hoje este planeta Terra, que é, cada vez mais difícil.

M. – Muito, realmente! Agora vamos para a profissão que escolheu e eu perguntaria: porquê oftalmologia?

FC. – Foi uma opção difícil. Estive até à última hora antes de ir para a cama a escolher entre oftalmologia ou cirurgia plástica. O meu pai não se meteu em nada disso. Escolhi oftalmologia. Porquê? Oftalmologia tem uma vertente que é a cirurgia de micro incisão.  Cada vez mais, a medicina evolui para técnicas minimamente invasivas. Ainda hoje, recebi uma notícia que está relacionada com o meu doutoramento que são uns colírios que se colocam nos olhos que revertem a vista cansada. Foi aprovado pelo FDA. Esse tipo de medicamento está um pouco relacionado com a temática do meu doutoramento. É uma especialidade que, além de ter o componente cirúrgico, tem componente médico, tem exames complementares de diagnóstico e é uma especialidade inovadora. Foi a 1.ª especialidade onde se usou o laser, a palavra mágica, e acho que na medicina é aquela especialidade que é de ponta em termos de desenvolvimento.

M. – Como sabe, o meu marido cegou, está cego neste momento, depois de vários problemas a nível oftalmológico e depois de várias cirurgias… na altura não havia resposta. Imagino que se fosse hoje, talvez houvesse resposta para o que lhe aconteceu. Mas, enfim, avancemos, que a vida não para. Depois da especialidade não se deu tempo para descansar. Quer falar-nos do seu percurso académico e profissional?

FC. – Eu, se calhar, não vou descansar neste mundo. Talvez no próximo.

M. – Pois, vejo que sim! É que não se dá tempo mesmo! Não pára!

FC. – Não vou descansar neste mundo… Na próxima semana vou para Nova Orleães. Vou receber outra vez mais uma distinção da Academia Americana de Oftalmologia.

M. – Que bom! Que maravilha!

FC. – Sabe que, as pessoas que referenciou há bocado – o Renato Júnior e o George Waring IV, são filhos dos colegas que introduziram a cirurgia refractiva nos EUA e no Brasil. E eu vou receber a medalha Waring, por ter sido a pessoa que mais contribuiu para a promulgação e desenvolvimento do conhecimento da cirurgia refractiva no ano 2020/2021em termos mundiais e vou receber essa medalha a Nova Orleães. Daqui a três semanas vou estar no Dubai a dar formação. Mais a clinica, mais os doentes e mais a família que é importante. É a pedra basilar. Portanto, não é neste mundo que vou descansar.

M. – Mas seja feliz não descansando!

FC. – Não, não! A gente quando corre por gosto não se cansa, já dizia o meu avô.

M. – Nem mais! Quando corremos por gosto nunca cansamos. E eu acho que tem muito chão para andar.

FC. – Ah, sim! Eu acho que…é o seguinte: a questão…a minha felicidade foi ter-me cruzado com as pessoas mais incríveis da minha vida. Foi desde o meu avô materno…

M. – Que lhe deixou muitas saudades…deixou imensas saudades. E sabe que a minha avó, aqui para amenizar um bocadinho, a minha avó era prima carnal do seu avô, o pai da sua mãe.

Pois…é difícil…quando gostamos dos nossos, é muito difícil. (Aqui, por breves momentos, a emoção falou mais alto e Fernando Correia chorou pelo avô materno)

FC. - … e o meu pai e um professor brasileiro que é como um irmão. Há pessoas que…não fazem o trabalho, mas indicam a orientação que devemos ter.

M. – Guiam-nos, não é? E nós, às vezes, o que precisamos é de ter alguém que nos guie. Eu também, felizmente. Todos nós, acho que tivemos…quem nos guiasse. Isso é bom. É ótimo! Nunca o perdemos.

FC. – A questão é que…as pessoas às vezes pensam que o trabalho sai. Está tudo feito. Às vezes é uma inspiração divina, às vezes é o toque de Midas, mas às vezes é aquela fortuna de estarmos na sala e cruzarmo-nos com aquela pessoa boa que… Eu amanhã vou estar a operar com o meu pai e já sei que o meu pai sabe onde vai cair o bilhar. Já sabe onde é que vai acontecer alguma coisa, já sabe. E é isso que é como um anjo da guarda.

M. – Sim, sim.

FC. – E é bom a gente ter assim um anjo da guarda.

M. – É fundamental.

FC. – É. Na medicina e em tudo na vida.

M. – Em tudo mesmo. Estou a ficar comovida porque vejo que dá imenso valor à sua família como eu dou à minha… o meu pai faleceu há dois anos, quase três. Realmente isso mexe connosco. São perdas que apesar de o serem, continuam presenças, continuam no nosso coração, no nosso pensamento.

FC. – Exatamente.

M. – Isso é o que importa. Há um anjinho que está sempre connosco. Fale-me do facto de integrar o Top 40 de oftalmologia abaixo dos 40 anos.

FC. – Integro. A mim, o que mais me valoriza, é o próximo prémio que vou ganhar. A gente tende a pensar sempre no futuro.

M. – No que vem a seguir.

FC. – Nós temos de sair da zona de conforto. Foi bom o reconhecimento… é bom a gente ser reconhecida lá fora como cá dentro pelos nossos pares e isso significa que o caminho está a ser bem trilhado. O nosso foco tem de se manter nesse ponto. Foi bom. Foi muito bom, mas a gente quer sempre um bocadinho mais. É claro que, nesse aspeto… foi importante ser reconhecido abaixo dos 40 anos… acho que era o mais novo dessa lista.

M. – Foi em 2015…

FC. – Em 2015.

M. – Foi há seis anos.

FC. - Há seis anos ainda nem era doutorado, estava a começar a dar os primeiros passos, mas eu ainda me lembro de ter feito o meu exame final de especialidade e passados dois dias estava…fiz em Braga… e passados dois dias estava em S. Francisco a dar cursos de formação. E… fui substituir o meu professor brasileiro num desses cursos com professores, que inventaram as máquinas para fazer os exames de córnea e eu pensei “Mas eu estou aqui tão pequenino; sinto-me tão constrangido”. Mas pronto, é com esse tipo de experiências que a gente cresce, portanto, integrar é bom! É bom porque nos reconhecem. Não é uma questão de ego, é uma questão de humildade mantermo-nos sempre com os pés assentes no chão e termos também um pouco de gratitude [gralha do entrevistado - leia-se “gratidão”]. A gratidão é muito importante.

M. – E saber que nós fizemos por isso, porque se nos cair assim de mão beijada não tem valor…

FC. – Sabe que eu já mandei muita gente, muito médico interno para o Brasil para ao pé do meu professor e a admiração que o meu professor tem por mim por causa do trabalho que eu fiz com ele, que… ainda hoje se ele precisar de alguma coisa, meto-me no avião e vou de propósito ao Rio de Janeiro para o ajudar nalgum problema, seja ele qual for… Ele era uma pessoa que fazia o trabalho, mas era uma pessoa que pouco vivia a vida. Ou seja, estava 100% no trabalho, 100% na balada, na noite com os amigos e acho que é esse o segredo da vida dele: é estar 100% com a família, 100% com o trabalho e 100% com os amigos. E isso, para voltar à primeira questão, só aprendi aqui em Bragança.

M. – Eu sei… Posso chamar-lhe Fernando?

FC. – À vontade!

M. – Sei que o Fernando tem duas crianças pequeninas e muitas vezes… eu já tinha ouvido falar do Fernando. Quando ia a alguma consulta com o seu pai ele falava sempre “o meu filho, o meu filho” e então eu, sem o conhecer, já o conhecia um bocadinho e uma coisa que admiro imenso – como é que consegue conciliar a sua vida profissional, que é uma loucura, com criar os filhos? E a gente diz assim: caramba, será que o seu dia tem 48h? E o meu só tem 24h?

FC. – O que importa é que os filhos estejam sempre bem!

M. – Pois, é isso! Eu acho incrível!

FC. – Porque o meu pai também é uma pessoa que se esfarrapou muito… foi uma pessoa que trabalhou muito e ainda continua a trabalhar com a idade que tem.

M. – E muito.

FC. – E muito! E isso é que é preciso sublinhar porque eu, olhando para a minha infância, olhando para a minha adolescência, o meu pai estava ausente, porque estava no internato do S. António, porque ao fim de semana tinha de ir para Moncorvo. Os consultórios estavam abertos até às 10, 11 da noite e eu já estava na cama, mas havia problemas para resolver, havia…

Quando se abraça esta profissão, a gente não tem horários e é aquilo que eu muitas vezes digo… Ainda ontem operei um rapaz à miopia e a mãe, “como é que faz com a marcação?” – “Não se preocupe que eu vou-lhe ligar!”, -“A sério, vai-me ligar?”, -“Vou-lhe ligar.” Porque é a minha obrigação, é o meu dever saber como é que estão as coisas e se há problemas…

Lembro-me, no meu 2.º ano de especialidade. O meu pai liga-me. Eu estava no Porto. – “Estou, Fernando? Passa-se isto: um doente veio de Angola e está com um pedaço de aço metido no olho há duas semanas. Está com uma endoftalmite, está com um escoamento da retina e isto é para operar. Vais tu e o Dr. Eduardo Conde.”

M. – Foi quem operou o Marcolino.

FC. – O Eduardo Conde… Fomos lá… Entrámos no bloco da Ordem de S. Francisco às 11:30 da noite e saímos da Ordem às quatro da manhã e às seis da manhã fomos para os EUA os dois.

M. – Realmente! E ficou bem?

FC. – Ficou bem. Claro que o olho já estava totalmente destruído com a infecção, mas com silicone conseguimos manter o olho para que não entrasse em atrofia… É preciso fazer sacrifícios. É preciso ter uma mente aberta e eu, isso, bebo do meu pai.

M. - Sim. Sempre foi um lutador, pelo que eu conheço. Ora, a sua prática clínica é muito movimentada. Desenvolve-a em diversas instituições. Quais são as principais dificuldades com que lida no dia a dia, se é que elas existem?

FC. – Existem muitas. Por exemplo, eu estava a trabalhar no Hospital de Braga. Ainda fui para lá com a parceria público-privada e abandonei porque aquilo está muito burocrático e o SNS está a enfrentar problemas diferentes e eu, por exemplo, tive um curso nos EUA sobre gestão na saúde e também vejo que os privados estão com muitos problemas sérios e acho que o problema é não ouvir a comunidade médica, a comunidade de saúde, nomeadamente enfermeiros… As pessoas têm de saber como é que isto funciona, tem que se ouvir o doente porque isto tem de funcionar de uma forma fluída, não pode haver gargalos.

M. – Pois não, mas há muitos.

FC. – Há muitos gargalos… os americanos chamam-lhes os “bottlenecks” e isso contribui para que a experiência, tanto no público, como no privado, tanto para o doente, como para o profissional de saúde seja agradável. Eu quero trabalhar e não estou para me chatear com papelada… Eu quero trabalhar, quero que a pessoa venha, se sente… e aquela barulheira toda que vemos nos hospitais é transversal no nosso país. Isso é o que me perturba mais. Eu não sou político e nem tenho pretensões de ser… de enveredar por esse caminho, mas acho que a Ordem dos Médicos, e mesmo outras instituições ligadas à saúde, têm de se preocupar mais… se não isto nunca mais… a gente nunca mais vai conseguir tratar os doentes de uma forma adequada.

M. – É exatamente isso que eu penso. Eu vou ao meu médico e digo o que preciso e ele no computador. Nem sequer vê as tensões, nem sequer me ausculta o coração… Ele escreve o que eu peço, “Olhe, doutor, eu preciso disto” e ele passa. As minhas consultas são assim. Eu não sei como são as dos outros, mas que é muito…

FC. – Impessoal! A empatia é muito importante na profissão médica e acho que estamos a perder certos valores… mas isto não é só em Portugal, também acontece em qualquer lugar do mundo. Daqui a vinte dias tenho colegas peruanos cá. Trabalham em Cuscos e convidaram-me para ir lá fazer cirurgia para o ano que vem. Eles estão só no privado. O SNS em Portugal é uma das melhores riquezas que nós temos!

M. – Então não é? Sem dúvida!

FC. – E acho que as pessoas, os portugueses, os políticos… e a questão da comunidade médica, científica, da saúde em geral… as pessoas têm que perceber que têm um legado muito grande e tem de ser preservado. Eu vejo, por exemplo, na Dinamarca. A gente paga os impostos e tem um SNS impecável, um sistema educacional impecável. Nós aqui estamos com vários problemas…

M. – E não vemos a luz ao fundo do túnel…

FC. – Não, porque, por exemplo, há situações como são as questões das listas de espera, material, por exemplo, doentes chumbados por falta de material e depois quando estamos a falar de áreas oncológicas ou áreas de doenças metabólicas ou doenças raras, mas mais as doenças oncológicas em que há listas de espera de meses… não pode haver falhas no SNS.

M. - Pois não, mas, infelizmente, há.

FC. – Infelizmente há!

M. – Precisamos de muitos professores doutores “Fernando Faria Correia” para ver se isto melhora… mas é difícil encontrar muitos assim.

FC. – Obrigado!

M. – Tem mais de cem trabalhos científicos. Mais de cem, incluindo artigos, capítulos de livros e resumos em reuniões de sociedades científicas e, para além disso, ensina, porque é instrutor de vários cursos e é orador convidado em conferências pelo mundo inteiro. Eu pergunto: como é que consegue conciliar isso tudo, mais a clinica, mais a família, mais tudo o que faz?

FC. – Vou-lhe contar. Quando fui ao Egito em janeiro de 2016, acho eu, até fui com o Rafael Barraquer, eu e ele convidados.

M. – Barraquer? O Marcolino foi várias vezes visto por ele.

FC. – Em Barcelona?

M. – Em Barcelona.

FC. – Fui com ele. Eu ia no avião…fui no voo da Lufthansa, saí do Sá Carneiro e encontrei um ortopedista meu amigo, o Francisco Serdoura, “Para onde é que vais?” – “Vou para o Cairo.”, - “E eu para Atenas. Então ainda vamos tomar um cafezinho.” E ainda fomos ver umas maluqueiras de carros que ele… o táxi à nossa espera, depois comemos e bebemos e eu chego ao avião, abro e vejo que as cinco palestras que eu tinha estavam todas em ordem. Adormeço. No meio do avião sou acordado pelo vizinho do lado. Estava uma pessoa em paragem cardiorrespiratória. Só estou eu e um enfermeiro. A pessoa em causa era uma pessoa acidentada, tetraplégica, canadense, e foi a pior experiência de impotência na minha vida. Nessas viagens, vamos descansados para dar umas palestras e acontecem estes imprevistos. Tivemos de aterrar de emergência em Atenas. Chegar ao Cairo. Apresentações. Vir. Depois o Cairo (não sei se sabe como é: são cinco horas desde o aeroporto até ao hotel), fazer cinco apresentações em menos de 30h e depois vir outra vez. Cheguei ao aeroporto e fui para Santa Leocádia para uma festa de anos de um amigo meu, ali ao pé do Pinhão, portanto, a gente tem de estar presente em tudo. Está a entender?

M. – Tem uma grande capacidade de presença, sem dúvida!

FC. – Aquilo que dizia o meu professor brasileiro: dar 100% a tudo. A questão é que, às vezes, pode meter confusão a muita gente. Eu gosto muito de estar sozinho, gosto de… pensar na minha vida porque depois quando estou nestas alturas, sinto-me focado, mas se me perguntar, “100 trabalhos?” – se calhar já tenho mais. Já nem os conto.

M. – Pois!

FC. – Em alguns já estou em 4.º lugar… tudo porquê? Porque são internos. Depois a gente também tem que saber… Quando vêm atrás de nós, temos que ajudar.

M. – Claro.

FC. – Já tenho amigos que estão a começar a fazer o doutoramento que vão ajudar… mas o que importa é que a gente esteja sempre ligado a alguém.

M. – Sim, sim.

FC. – E dá tempo para tudo. A gente tem é que ter uma grande capacidade organizativa. Aí quem tem culpa é a minha mãe. A minha mãe, que é economista… ela…

M – Ela organiza.

FC. – Não. A minha mãe tem uma capacidade de organização brutal e isso herdei dela. E acho que isso também é da vertente do meu avô Tozé que era uma pessoa muito organizada nas coisas e acho que eu sou assim… quer dizer, quando era pequeno, adolescente, saía à noite, havia testes, estudava, mas depois também ia para a boa vida, mas havia uma coisa que era disciplina… e havia uma coisa que era organização.

M. – Disciplina e responsabilidade.

FC. – Responsabilização nas coisas.

M. – Claro, sem dúvida nenhuma. Isso também tive a minha dose de responsabilização e acho que os pais que são pais responsabilizam.

FC. – Pois.

M. – A evolução científico-tecnológica na oftalmologia tem sido muitíssimo significativa. Até onde poderá chegar essa evolução? Podemos falar, e aqui peço desculpa pela minha ignorância, podemos falar em transplantes de olhos? Será o fim da cegueira?

FC. – É uma pergunta ratoeira porque nós por causa da cegueira temos várias doenças. Nós temos doenças nas diferentes lentes do olho, o nosso olho tem duas lentes: uma que é a córnea, que é esta lente à frente da menina da vista, temos uma atrás da menina da vista que é o cristalino, que é onde vamos ter a catarata e temos depois a retina e na retina, escoamentos de retina… a retina é o rolo da câmara, é a parte mais sensível. E a retina é a parte em que talvez as células estaminais poderão funcionar melhor… a terapia génica. Nós até agora na revista de Oftalmologia, o João Pedro Marques, de Coimbra, fez lá um editorial só a terapia génica para um doente… que é uma doença hereditária. E agora falo de outra coisa: e a impressão 3D? Por exemplo a estrutura, que nós temos à frente do olho, a córnea, é uma estrutura transparente, avascular como uma lente e… pode ser transplantada, portanto, já há estudos que estão a avançar nesse aspeto. É uma causa de cegueira. Portanto, acho que temos a questão da cegueira na córnea que pode ser tratada mais facilmente por causa da impressão 3D. A parte da retina depende muito da patologia – se é genética temos terapias genéticas. No futuro há que descobrir qual é que é o gene que está em causa e fazer o… silenciamento ou ativar esse gene através das terapias genéticas. Se são células que estão em falta, por exemplo, as que morreram por causa de uma trombose, por causa de um escoamento de retina, podemos usar talvez um tratamento diferencial, instalar o tronco… Podemos estar aí nessa fase em que a gente…

M. – Tenho em casa quem já sofreu muito com isso e neste momento não vê nada. E sempre à espera de que alguma coisa possa acontecer. Sei que no caso do Marcolino, muito provavelmente, já não vem a tempo, mas o futuro a Deus pertence e a nós resta-nos esperar…

FC. – Veja a questão do olho biónico… ainda agora é retratado no último filme do 007. O olho biónico é uma tecnologia que assusta. O último filme do 007, mesmo em termos de armamento químico direcionado para os genes que cada um manifesta, que cada um tem no sangue, e mesmo a questão do olho biónico, isso assusta porque, por exemplo, quando fui a Charleston, na Carolina do Sul, essa universidade tinha feito o 1.º transplante do olho biónico.

M. – Ah, é? E correu bem? Funcionou?

FC. – É o seguinte … é a perspetiva de cada um de nós.

M. – Claro. Bem, o futuro…

FC. – A Deus pertence!

M. – Ora, e para além disto tudo de que já falámos e que foi uma ínfima parte do que faz,  ainda tem tempo para ser editor chefe da revista Oftalmologia da sociedade Portuguesa de Oftalmologia…

FC. – Isso foi o convite endereçado pelo presidente da SPO, o Professor Rufino Silva de Coimbra, que abracei com muito gosto, e ainda esta semana tive reunião com ele que me disse, “Tu ainda não te mandaste de uma ponte abaixo?” Porque aquilo é um trabalho muito ingrato. É um trabalho muito ingrato porque apanhámos a revista num estado comatoso, praticamente, e era aquilo que eu lhe dizia – hoje os médicos internos do serviço de oftalmologia estão apinhados, estão cheios de trabalho e é preciso ter uma capacidade organizativa… para tratar bases de dados, ficheiros Excel… chegar a casa, analisar os ficheiros Excel e escrever e isso os internos, são gente nova que querem ir jantar fora, querem ter vida social, como toda a gente, como eu também tive e é preciso ter espírito de sacrifício. E as pessoas não têm hoje. Hoje o paradigma do SNS, relativamente aos médicos internos, que não têm uma vaga onde vão ficar a trabalhar no futuro, já não estão tão preocupados com a produção científica e de indexação…estamos a trabalhar nisso, mas dá muito trabalho. Dá muito trabalho. Temos de cativar as pessoas certas para escrever. Eu também escrevo. Mas podia escrever para uma revista indexada.

M. – Eu li um editorial seu.

FC. – Sim, mas podia estar a escrever… mas também escrevo para lá. Basicamente é isso.

M. – Pois. Continuo a achar que o seu dia tem 48h! Como médico, quais foram as maiores dificuldades que teve de enfrentar com a pandemia?

FC. – Tenho uma cicatriz aqui na face…

M. – E como é que a fez?

FC. – A ver doentes COVID com aquelas máscaras horríveis no Hospital de Braga. É uma…

M. – Sim, já vi! E ficou mesmo.

FC. – Essa é uma cicatriz que eu guardo da pandemia.

M. – Realmente, vocês passaram por muito, muitíssimo, mesmo. Nós, os leigos nem sequer desconfiamos. Mas valeu a pena ao menos?

FC. – Valeu a pena.

M. – Já é alguma coisa, não é? Ora, enquanto transmontano, o que, em sua opinião deveria ser feito para impedir a desertificação do interior?

FC. – Já devia ter sido feito há muito mais tempo, se calhar. Isto é o seguinte: Portugal tem um problema enorme e agora com o preço dos combustíveis a subir… Onde estão as ferrovias? Onde estão os caminhos de ferro? Não temos! Nós temos aqui o melhor instituto politécnico do país e temos que dar graças às pessoas que se envolveram sempre neste projeto porque dinamizaram a região e a cidade. Temos também de dar os parabéns aos presidentes da câmara que tivemos porque desde o programa Polis até hoje ao presidente eleito, o Dr. Hernâni, isto…a cidade está muito agradável; é uma cidade muito agradável de se viver, tomara eu ter esta qualidade de vida no Porto. O que é que é preciso? É arranjar forma de cativar as pessoas cá. Pessoas jovens. O que é que querem as pessoas jovens? Querem é ter formas de lazer… produtos, dar a conhecer e acho que há aqui…

M. – E um salário condizente com as necessidades.

FC. – Isso… se for falar com as pessoas, hoje os salários são o grande problema do nosso país, o salário e não só – é o poder de compra. E o poder de compra já. Isto, com a pandemia fez reacender aqui algumas coisas por causa do teletrabalho e o teletrabalho até poderá ser uma questão importante agora para o futuro. Porquê? Porque uma pessoa que ganhe 800/900 euros no Porto, que é que faz da vida? Nada!

M. – Não vive.

FC. – Aqui ainda consegue viver. Está a compreender? É aquilo que eu digo muitas vezes: é certamente da maneira como isto está hoje, os produtos, as matérias-primas estão a subir de preço. É desde o bacalhau até o leite, a carne, os ovos…

M. – Pão.

FC. – Tudo. A comida vai subir. Os combustíveis estão a subir… As pessoas começam a pensar… se calhar, famílias jovens começam a pensar, “Eu tenho trabalho em Bragança”… Eu tenho uma amiga, que é minha doente, que é de Santa Marta de Penaguião, que veio cá à clinica de Bragança com uma úlcera da córnea. É advogada. Trabalhou em Lisboa. Foi para Santa Marta de Penaguião, Lamego trabalhar e tem muito trabalho! “Agora, vou, não gasto praticamente dinheiro em combustível”…

M. – Justamente.

FC. – “Tenho hipermercado, tenho tudo. Estou a 1h do Porto”… e a gente, aqui em Portugal, aqui no interior, não é só em Bragança. Acho que há cidades no interior que se estão a desenvolver graças muito à questão das CM, institutos politécnicos. Então, aqui no de Bragança há que sublinhar que fizeram um trabalho excelente. Devemos dar os parabéns e acho que é isso que vai permitir que muita gente se fixe aqui no interior. Agora, temos questões políticas também para analisar, desde a ferrovia. Por exemplo, uma pessoa… Vou-lhe dar o exemplo do túnel do Marão. Quantas pessoas eu conheço da minha classe médica que vivem no Porto e que vão trabalhar a Vila Real? Muitas!

M. – Muitas?

FC. – Muitas!

M. – Agora se nós tivermos… Temos aqui uma estão de TGV.

FC. – Eu sei, na Ponferrada.

M. – Se nós tivéssemos um comboio, em quanto tempo nos púnhamos daqui ao Porto?

FC. – Em 75 minutos se tivéssemos um comboio desses.

M. – E realmente também não consigo, não consigo entender por mais esforços que faça, portanto, este desapego… Bragança é tão longe… deixá-los lá, os pobrezinhos, não é? O Marcolino diz que faltam eleitores. Como há poucos eleitores, então, não vale a pena. É a cruzinha! Vamos lá ver se nós, eu já não, mas os jovens, se conseguem mudar alguma coisa.

FC. – Não me vou candidatar à câmara, deixe estar!

M. – Não, não está muito bem!

FC. – Nunca se sabe.

M. – Sim, o futuro…

FC. – Só a Deus pertence!

M. – Só já tenho mais uma pergunta! Gostava de saber se quer dizer mais alguma coisa sobre a sua profissão ou sobre o que entende da vida.

FC. – O que entendo da vida é muito complicado. Eu já lhe disse que eu há… poucos aspetos que a gente tem para se reger na vida. Para já, temos de ter objetivos, temos de ter um foco, temos de ter concentração e é assim que a gente consegue atingir as metas. Se nós, depois atingirmos as metas, quisermos mais, é bom porque somos ambiciosos. É claro que essa ambição tem de ter sempre algum limite, mas é bom que seja sempre apimentada de vez em quando. Eu, por exemplo, poderei estar um bocadinho parado agora por causa de ser editor chefe da revista da SPO, mas as pessoas sabem quem é que eu sou lá fora, está a entender?

M. – Sim, sim.

FC. – Como lhe disse, para a semana, vou, vamos, eu e o meu pai vamos a Nova Orleães receber esse reconhecimento da Academia Americana de Oftalmologia que é a comunidade científica mais prestigiada do mundo da oftalmologia.

M. – Que maravilha!

FC. – E depois vou ao Dubai dar mais uma formaçãozinha de córnea, de lentes fáquicas para correção de miopia. Isto só para lhe dizer que a ambição não tem limites, mas tem que ser apimentada de vez em quando para não ficarmos também obsessivos e às vezes é preciso refugiar na solidão para meditar e perceber aquilo que foi mau.

M. – Só assim é que nos reencontramos.

FC. – Só assim é que nos encontramos. Eu, como transmontano, sabe onde é que eu consigo meditar bem? Aqui em Trás-os-Montes, no “Reino Maravilhoso”!

M. – Sim, do Miguel Torga! Agora, a última pergunta. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram na sua ainda jovem vida?

FC. – Aqui na minha vida?

M. – Sim, de uma forma geral.

FC. – O meu avô, Tozé… os meus avós. Eu chamo-me Fernando António por causa de… claro que tive uma ligação maior ao meu avô Tozé… ao meu pai e depois havia sempre aqui uma ou outra personalidade que de pequeno sempre me ligou bastante. Uma delas foi a minha mãe. A minha mãe sempre esteve disponível e… foi uma pessoa que, já lhe disse, deu-me aquele espírito metódico e de organização que acho que hoje só consigo ter esses valores, porque leu, de artigos científicos a tudo, graças à forma como ela me treinou a minha cabeça para ser organizado. Relativamente a professores… eu devo muito aos meus professores porque eu também não era pera fácil e a minha turma… Éramos sempre uns traquinas. Havia sempre gente muito interessante e eu tenho ainda contacto com os meus amigos da adolescência. Ainda na semana passada fui jantar fora com um colega do secundário, aqui do ciclo e do secundário que é médico dentista. Portanto, fomos à casa Guedes, no Porto, comer umas sandes de pernil. Portanto, os nossos professores aqui tiveram muita paciência para nos formar e acho que também lhes devemos agradecer os ensinamentos, a paciência e o caminho que nos orientaram. Portanto, como pode ver, é a família, a escola, as Freirinhas (que eu também andei nas Freirinhas)…

M. - Ai, sim?

FC. – Sim. Eu tinha a Irmã Balsemão, a Irmã Estela, a Irmã Elisabete que… mas os professores que nos ensinam, são muito importantes, e a sociedade…

M. – Muito bem! Muito obrigado! Eu acho…

FC. – Muito obrigado, eu!

M. – Foi mais do que eu estava à espera. Não na sua competência, porque isso não está em causa, nunca, e na sua sabedoria também não e no seu saber fazer… e na sua grandeza que tem, mas por esse aspeto mais familiar, mais íntimo… do seu íntimo. E, por acaso, fiquei muito agradada…

FC. – Obrigado!

M. – Nós é que temos de agradecer e dizer – vá em frente, continue assim e dê o Fernando ao mundo sem descurar Portugal!

FC. – Ah, não! Isto calma! Vou ficar sempre por aqui.

M. – Obrigado!



Entrevista realizada ao Professor Doutor Adriano Moreira, em Bragança, 19 de Outubro de 2019.


88.ª Entrevista - Professor Doutor Adriano Moreira

Entrevistadoras (Entrv.): “Quando olho para trás, a memória mais antiga que tenho é a de estar sentado numa pedra, no Bairro de Campolide, e haver, à minha frente, um charco e eu a pensar como é que se podia viver naquele meio, naquela pobreza. É a primeira e mais antiga recordação que tenho. Devia ter quatro ou cinco anos, por aí.”
Senhor Professor, é impressionante que, com tão tenra idade, se tenha apercebido das condições tão ingratas em que vivia e que tenha tomado consciência disso. Quer comentar?

Prof. Doutor Adriano Moreira (Prof. Doutor A.M.): Sabe que, a experiência é existência, e nós todos somos, como dizia o Ortega, históricos, fazemo-nos…, e a circunstância varia e nós enfrentamo-la e eu, de facto tinha… apesar de ter uma vida pobre, (nós éramos pobres), tinha conforto, que a maior parte dos garotos não tinha, e isto porque a minha mãe também era diferente…

Entrv.: A sua mãe era costureira…

Prof. Doutor A.M.: Era, mas o pai dela era uma pessoa muito informada. Vivia na aldeia de Grijó, mas tinha vivido no Brasil. Ela, por exemplo, sabia o João de Deus de cor, o Guerra Junqueiro de cor porque o pai a animava e portanto já tinha outra visão da vida e isso explica também como é que, com tantas dificuldades, já percebessem o que hoje se chama “elevador social” e que, (e eu acho isto heróico), os dois filhos tinham de tirar curso superior

Entrv.: Naquele tempo… e dadas as circunstâncias…

Prof. Doutor A.M.: E conseguimos! A minha irmã já está com oitenta e tal anos. É médica e tem um doente com o qual ela se preocupa… É comigo! E lá aparece. E, portanto, eu via aquelas crianças que não tinham uma casa onde recebessem os cuidados que eu recebi. A diferença estava na minha formação. E foi por isso que percebi.

Entrv.: O avô do Senhor Professor foi uma referência no seu crescimento literário e social?

Prof. Doutor A.M.: Foi. Esse meu avô era extraordinário. Era o pai da minha mãe e tinha uma casa melhor do que a do meu avô paterno, que eu não conheci, e tinha uma pedra a servir de banco cá fora. Eu devo dizer que essa pedra está lá em Lisboa na minha casa porque a junta autónoma das estradas tirou a pedra para corrigir a rua e eu quis a pedra, e portanto está lá e tem em cima uma inscriçãozinha que diz: “Banco do avô Valentim”. Era onde ele lia o jornal. Ele tinha tomado, parte muito jovem, com 18 anos talvez, ou menos…, numa espécie de levantamento por causa de impostos teve de sair do país… e foi assim que ele foi para o Brasil - que era para onde iam os portugueses -, e lá esteve, uns dois anos, jovem. Não sei porquê, porque acontece em tantas ocasiões, não apenas às pessoas, mas também aos movimentos, adotam flores. Ele usava sempre um cravo e, quando não havia cravos, uma folha! Era assim! E, portanto, já tinha uns livros, alguns extraordinários: tinha um livro sobre Nietzsche, tinha um livro sobre a segurança internacional, etc.. Eu herdei esses livros num caixotinho que agora estão cá na biblioteca de Bragança. Eram um tesouro para ele.

Entrv.: Desculpe, mas esse caixotinho era toda a biblioteca, todo o espólio do avô do senhor Professor.

Prof. Doutor A.M.: Era.

Entrv.: Que ele guardava como verdadeiras relíquias…

Prof. Doutor A.M.: Era um tesouro para ele. Ora bem, e, portanto, a minha mãe foi educada por ele e, por isso, é que ela tinha aquela sensibilidade.

Entrev.: E por isso essa visão do mundo.

Prof. Doutor A.M.: E para além disso, ela era muito inteligente. Começou a fazer costura em Lisboa para ajudar a família. Para verem o que era a vida naquele tempo, quando eu me formei, fiz o estágio, e fui para o Ministério da Justiça onde consegui um lugar: ganhava três vezes mais do que o meu pai,

Entrev.: O seu pai era polícia…

Prof. Doutor A.M.: E morreu subchefe ajudante. Eu estive à despedida dele dos seus subordinados. Fez um tão bom discurso que eu pensei assim: “louvada faculdade!”

Entrv.: Só uma curiosidade, senhor Professor, se me permite…De entre o espólio literário do avô fazia parte Guerra Junqueiro…

Prof. Doutor A.M.: Fazia. O Guerra Junqueiro era muito popular. 

Entrv.: O avô era contemporâneo de Guerra Junqueiro. Ele faleceu em 1923 e o senhor Professor nasceu em 1922…

Prof. Doutor A.M.: Mas não diga!

Entrv.: Ah, essas coisas não se dizem!

Prof. Doutor A.M.: Depois eu ainda tive mais razões para me interessar por Guerra Junqueiro porque uma das pessoas que teve mais importância na minha formação e vida pública, foi o Almirante Sarmento Rodrigues que era casado com a descente do Guerra Junqueiro e foi ele que presidiou às cerimónias do centenário, - o que naquele tempo, naquele regime, era preciso ser transmontano porque ele era marinheiro e recebia ordens: mas, o Guerra Junqueiro era da família da sua mulher e fez uma bela celebração do Guerra Junqueiro. Portanto, foi assim neste ambiente familiar que cresci naquele bairro de Campolide… Naquele tempo Lisboa tinha muitos bairros, eu atualmente acho que só já há uma região que é bairro…o resto é Lisboa, mas ali era bairro e na esquina do beco, onde vivia, havia uma casa melhor, e uma senhora que tinha uma bibliotecazinha e era, salvo erro, tia de um dos marinheiros do barco que foi afundado na guerra de 14, comandado por Augusto de Castilho, que tem uma estátua em Vila Real, afundou-se salvando um barco português. E essa senhora, entre outras coisas, por exemplo, tinha a coleção do Júlio Verne! Umas encadernações fantásticas, ela emprestava-me cada volume… e eu tinha um cuidado enorme. Li a coleção toda.

Entrv.: Grande vizinha também lhe digo…

Prof. Doutor A.M.: Tinha outros livros que também me emprestava. E gostava muito de conversar com miúdos e criei lá alguns amigos para a vida… depois fiz a instrução primária num colégio que havia lá… não do Estado. Mas era aquilo tão pobre… eu ainda me recordo que custava por mês vinte escudos.

Entrv.: Era dinheiro…

Prof. Doutor A.M.: Era dinheiro naquele tempo…E a senhora tinha um filho doente epilético, mas era uma grande professora. Depois fui para o Passos Manuel e, agora, tenho de pensar o seguinte: quando eu fui para o Passos Manuel tinha 9 para 10 anos, fiz exame muito cedo, e tinha de ir de Campolide para o Passos Manuel a pé.

Entrv.: Mas não era de castigo?

Prof. Doutor A.M.: Não… não! Fazia ginástica, e acontecia que, quando voltava é que custava mais porque era sempre a subir! Lá fiz o curso ginasticado. Depois fui para a Faculdade de Direito que era no Campo de Santana. Não havia transporte, nem dinheiro para pagar, portanto passei cinco anos a pé, a ir e a vir. E era fácil aquilo. Nessa altura, comecei a pensar que tinha de apoiar a minha irmã que era mais nova… ela fez um bom curso. Depois, estes dois transmontanos, eu e ela, havíamos de nos ligar ao Ultramar porque ela foi médica para Lourenço Marques, casou com um oficial da Força Aérea, médico também, e depois tive de andar envolvido naquelas guerras, de maneira que somos africanos regressados.

Entrv.: Senhor Professor, usa muitas vezes a expressão, “a maneira portuguesa de estar no mundo”. De que forma é diferente da maneira transmontana de estar no mundo?
Prof. Doutor A.M.: Eu a transmontanos julgava que não tinha de explicar!...

Entrv.: Pois, mas desta vez terá de explicar…Nós queremos ouvi-lo e transcrever o que nos disser…

Prof. Doutor A.M.: Há uma coisa que eu acho importantíssima nos transmontanos. Primeiro, são solidários. Olhe, quando nós fomos viver para Lisboa, eu vinha passar as férias aqui com o meu avô, sempre. Naquele tempo eram três meses, e para chegar cá era duro. Apanhava-se um comboio aí pelas oito horas à noite e chegava-se à estação de Grijó no dia seguinte, por volta das sete e meia da tarde. Chegava a Grijó, que ainda era longe, a cavalo num burro que estava lá à minha espera e lá ia eu… E então ficava em Grijó e era felicíssimo aqueles três meses. Tinha um primo, o Alexandre, que era como se fosse meu irmão. Já morreu há bastantes anos. Era tão bom… conhecíamos tudo, andávamos por todos os lados. O meu avô tinha uma propriedadezinha para aí com um hectare, mas era à beira de um ribeiro e a gente ia lá, tomava banho no ribeiro, corria com as cobras d´água, enfim… era uma vida…

Entrv.: Esses três meses eram fundamentais para recuperar energias… e para recarregar baterias.

Prof. Doutor A.M.: Era! E depois ainda me lembro sempre de amigos do tempo do meu pai e que ali estavam reformados. Lembro-me, por exemplo, de um, o chamado Zé Fiscal porque ele tinha sido guarda-fiscal. Quando eu comecei a ser conhecido, ele cada coisa que via no jornal, cortava e trazia no bolso, e quando eu chegava mostrava-me. Um grande amigo. E havia outros… O Zé Peras, que trabalhava na agricultura da família dos Mirandas, e uma jovem, hoje senhora, que foi fazer um curso de enfermagem em Lisboa na escola Rockfeller, conviveu os três anos connosco, é uma amiga, sobretudo da minha irmã, porque é mesmo da idade dela. A querida Lucília.
Eu vou amanhã a Grijó a uma festa que eles me vão fazer. Mas há pouco tempo, foi no dia 6 de setembro, dia dos meus anos, imagine o que eles fizeram: com as técnicas atuais, arranjaram maneira de ligar uma emissão de imagem para a minha televisão, em Lisboa.
E eu em Lisboa, sentado numa cadeirinha, com os 14 netos à volta, (estão sempre),… vem aquilo de repente… a aldeia toda junta a cantar-me os parabéns e ela, Lucília, fez um poema… e leu o poema! Fantástico! Então, eu amanhã tenho que lá ir porque eu fiz também uma bibliotecazinha para eles, como pediram. E querem inaugurá-la. E querem que seja domingo porque os padres só estão livres no domingo àquela hora.
Aquela aldeia mereceu-me sempre grandes cuidados. Conforme fui podendo, por exemplo, conseguir por lá a eletricidade, que ia daqui das barragens… passava pela aldeia, e lá andavam de candeia. Consegui que pusessem lá a eletricidade. Também consegui o esgoto, uma segunda escola e o coreto da festa. De maneira que, o largo do coreto chama-se Adriano Moreira, a biblioteca chama-se Adriano Moreira.

Entrv.: É uma homenagem justa!

Prof. Doutor A.M.: Porque me inquietou, foi a falta de crianças…

Entrv.: Pois, não, infelizmente.

Prof. Doutor A.M.: No meu tempo havia tantas…

Entrv.: E a capela da sua mãe?

Prof. Doutor A.M.: Essa capela tem uma origem interessante. A santa protetora da nossa aldeia é Santa Madalena, mas a festa é ao Senhor do Calvário. E, portanto, a capela do Senhor do Calvário era fora da aldeia… agora já lá chega a aldeia. Era uma colina, tinha umas rochas e eu lembro-me que com o meu primo gostávamos de nos encavalitar nas rochas a ver o pôr-do-sol. Lembro-me disto… íamos para ali para o Santo Cristo… Depois houve, consta, um empreiteiro que precisou de amanhar a estrada e lembrou-se de, com dinamite, tirar as pedras e a capela ficou, claro, toda atingida. A minha mãe, que era muito crente, estava sempre muito aflita com a capela. Eu já era um bocadinho crescido quando isso aconteceu, já formado, era Ministro do Interior, um transmontano, o Dr. Trigo Negreiros, e era Ministro da Marinha outro transmontano, que era o almirante Sarmento Rodrigues. O Almirante Sarmento Rodrigues que, também era transmontano, eu já andava a dar aulas, mandou-me chamar e pediu-me para ir estudar o sistema prisional do Ultramar. Nesse tempo dedicava-me a isso: o direito prisional. E, então, corri as províncias todas de África, e sinto pena porque nunca tive a ocasião de ir a Timor. Fiz o livro. Desse livro saiu a reforma prisional Sarmento Rodrigues do Ultramar. Como eu tinha dito no estudo, a condenação à prisão é sempre destinada à reabilitação. Reabilitação, que tem sempre a tal circunstância, a cultura a que a pessoa pertence. E, portanto, não podemos ter as estruturas técnicas, que são europeias, para África. Defendi fazer um regime puramente de “colónias agrícolas”, prevendo até a reunião das famílias: os europeus, tão poucos, viriam para cá. Com o livro ganhei o prémio da Academia das Ciências. E esse prémio, na altura, era 80 contos.

Entrv.: Era significativo…sem dúvida…

Prof. Doutor A.M.: Para o meu pai era o ordenado de dois anos ou três. E, então, o que é que eu fiz? Peguei no dinheiro do prémio e dei-o à minha mãe: “Pode concertar a nossa capela!” Um amigo meu fez o projeto. Era o arquiteto Mário de Oliveira… morreu em Trás-os-Montes, em Vila Real porque, ele não era transmontano, mas veio para cá trabalhar.

Entrv.: E acabou por ficar…

Prof. Doutor A.M.: Portanto fizeram a Capela, ficou linda e ele fez o projeto, não levou dinheiro, mas faltava a estrada! Fui ao Dr. Trigo Negreiros, transmontano, e contei-lhe da Capela: “Isto está feito. Está uma beleza, mas depois há a procissão todos os anos, e as mulheres vão ajoelhar-se, e a estrada é uma coisa difícil e penosa”, - “Está bem, e então o que é que quer?”, - “Quero que o senhor faça a estrada!” E fez!
De maneira que a Capela tem um grande culto. A última vez que eu lá fui eles mandaram dizer a missa na capela. E amanhã vou lá. Infelizmente com esta crise em que o país está, consegui a segunda escola e estão as duas fechadas. As duas. O presidente da junta vive na aldeia, uma família média, transformou o edifício da primeira escola em biblioteca Adriano Moreia e depois achou natural: “Agora, mande os livros!”
E eu tenho mandado bastantes, com uma certa cautela por ser uma aldeia, e a minha irmã Olívia, sábia, disse-me com o seu ar de médica, “Vê lá se mandas livros que eles leiam!”

Entrv.: Pois, com certeza! O senhor Professor é um transmontano radical?

Prof. Doutor A.M.: Sou!

Entrv.: E o que é ser um transmontano radical?

Prof. Doutor A.M.: Sabe uma coisa? Isso foi muito benéfico porque escusava de ser radical no resto!

Entrv.: Só pelo facto de ser transmontano já era radical! Muito bem!

Prof. Doutor A.M.: Era! Ora bem, isto vinha a propósito, portanto, por que é que eu cheguei… à expressão “maneira portuguesa de estar no mundo” que, aliás, foi utilizada pelo nosso presidente do júri, Prof. Braga da Cruz, no último livro que publicou, onde faz um retrato do país através de correspondências ou ensaios de pessoas vivas! Portanto, são aí umas quarenta. Tem o livro dele?

Entrv.: Não! Ainda não o adquiri!

Prof. Doutor A.M.: Mas é um livro extraordinário e também lá fala de mim! E diz assim, mais ou menos: “caracterizo os esforços da vida dele, com este problema: a maneira portuguesa de estar no mundo…”

Entrv.: Como é que o senhor Professor encara a posição de Portugal no mundo, hoje em dia?

Prof. Doutor A.M.: Com muita preocupação porque, não sei se isto é fácil de explicar para o público, mas é mais ou menos isto que eu lhes vou dizer…e compreendam que com a II Guerra Mundial, Portugal não entrou por querer na II guerra Mundial… e aquilo que anda escrito, em regra… e que procura talvez salvar a face do país… não começa dessa maneira… foi o Ultimato dos Estados Unidos – precisavam do Arquipélago dos Açores, porque, naquele tempo, os aviões não tinham capacidade para atravessar o Atlântico com gasolina e, então, tinham de fazer uma aterragem, e o Presidente do Conselho, o Doutor Salazar, conseguiu uma coisa extraordinária: os Açores e Portugal, claro, entravam como associados à defesa ocidental e na guerra, o resto dos territórios eram neutrais! Eu ainda me lembro (era estudante durante a guerra) e nós andávamos sempre aflitos a ver se os alemães vinham por aí fora. Eles chegaram a estar nos Pirenéus.
Bom, ele acabou até o discurso, dizendo mais ou menos o seguinte, na Assembleia da República, “Os juristas vão ter muita dificuldade em explicar isto. Mas é assim.” Quem cobriu essa imposição com palavras mais respeitosas foi a Inglaterra, dizendo – “Invocamos a Aliança”. Só que se esqueceram de uma coisa: é que no tal território que não entrava na guerra, ficava Timor. Foi invadido pelos japoneses e eles mataram, fizeram quase uma destruição da população. Eles ainda haviam de sofrer outro grave abuso, mas, nesse tempo, foi um desastre. Eu ainda me lembro do primeiro-oficial português governador, que depois da paz entrou em Timor. Quando chegou ele tinha uma guarda de honra à espera, gente toda esfarrapada, mas com a bandeira. Tinham-na enterrado para os japoneses não poderem destruí-la. Era uma gente muito fiel a Portugal. Ainda este ano tive… já foi o ano passado… isto passa a correr… eu nunca fui a Timor e não conheço o Presidente da República atual que já é o terceiro. Ele mandou-me o convite para eu ir a Timor. Eu disse-lhe: “Não vou porque o médico não deixa. Ele proíbe-me de andar de avião”. Eu tive um acidente nos pulmões, uma infeção e ele respondeu: “Traga uma enfermeira!”. E eu respondi: “O médico não está preocupado com a enfermeira. O médico está preocupado comigo!”
Sabe o que ele fez? Veio cá o primeiro presidente de Timor para me entregar uma condecoração. A condecoração chama-se “Condecoração de Timor: “Pelos serviços prestados a Timor (porque eu defendi-os muito nas Nações Unidas preocupei-me com os que estiveram refugiados em Lisboa e que sofreram imenso, sobretudo as mulheres que são sempre vítimas) aos Direitos do Homem e à Humanidade.”
Eu tenho um neto com quatro anos, bastante doente, que tem o meu nome, e eu disse: “Eles enganaram-se! É para o Adrianinho!” E dei-lha, para se lembrar de mim quando crescer

Entrv.: Senhor professor, creio que vem a propósito eu utilizar uma expressão, uma frase também do senhor Professor que diz, “Nós tivemos um grande talento para criar impérios…Nós gostaríamos de ouvir o comentário do senhor Professor.

Prof. Doutor A.M.: A questão é esta: vamos sempre à circunstância. Ainda este ano foram publicadas traduções de duas histórias de Portugal feitas por saxónicos. Eu achei interessante. Li as duas. São muito justos. E ambos concordam em dizer que é um milagre: como é que o mais pequeno país europeu fez um império?! Ora bem, eu digo: a circunstância.
Tenho uma grande admiração por D. Dinis porque o que é que ele fez? Primeiro, fez a Marinha. O primeiro almirante português, creio que foi há dois anos que se celebraram os 700 anos da nomeação. E o D. Dinis fez isto porquê? Não foi por causa da religião católica. Foi porque os piratas atacavam a navegação e ele tinha de organizar a defesa. Fez o pinhal de Leiria para poder fazer os barcos, as pessoas que tratassem disto tinham de saber – fez a Universidade; conseguiu a absolvição dos Templários, e criou com eles a Ordem de Cristo, salvando assim o património. E o que é que aconteceu? Um professor inglês do século XIX disse uma coisa muito sábia: em geral, não é a nação que faz o estado, é o estado que faz a nação. E de facto, o efeito geral de estas três coisas, acho eu… atribuo a isto… ele não pensou, mas com tudo junto acontece que havia nação em 1385 porque a nação é que escolheu o rei. E já não é de herança! É aclamação. Depois vamos perdendo essa noção mas o rei de Portugal tinha de ser sempre aclamado pelas cortes. E foi D. Dinis! E foi isto que deu essa audácia, com a sorte que tivemos com a geração do Infante D. Henrique… é um grupo espantoso que admiramos: que saber… como é que eles tiveram aquela coragem?
Hoje, como sabem, cresce uma crítica salientando a escravatura, o resto é o milagre que historiadores estrangeiros sublinham.

Entrv.: Se compararmos com as outras escravaturas, a nossa era muito leve.

Prof. Doutor A.M.: Nunca é leve, mas aqui há dois anos saiu um livro importante que interessa às universidades. Imagine que foi uma universidade da América latina que organizou um livro sobre a paz ibérica. É o ensino de Coimbra, de Évora, de Espanha, (Salamanca), e você admira-se com gente que está no século XVI a discutir se os reis têm legitimidade para tomar conta do território de gente que já lá está, se o Papa tem realmente poder para fazer essas coisas, se a escravatura é legítima, etc.
Isto é o património imaterial da humanidade… nasceu cá uma grande parte. Foi uma grande parte: Coimbra e Évora, depois os professores que nós tivemos e os missionários, para mim o padre mais importante é o Padre António Vieira

Entrv.: O Padre António Vieira?

Prof. Doutor A.M.: António Vieira! Morreu no Brasil, velho, chegara a ser preso pela Inquisição, mas depois o Papa deu-lhe imunidade. E ele já estava velho, talvez tivesse noventa anos, mas continuou a escrever e avaliar o que se estava a passar.
Ora bem, Portugal com isto (por isso é que eu comecei por dizer – Portugal, como os outros países, está sempre ligado às circunstâncias)… as circunstâncias evoluíram muito porque apareceram as novas potências como agora estão a aparecer os emergentes. Como sabe o mundo começou a ser ocidentalizado, mas não éramos só nós, eram todos os outros que apareceram com interesses próprios. É uma mudança muito firme passar de sozinhos e Espanha para muitos. A balança do poder começa a ser diferente e por isso nós tivemos períodos de decadências como foi as duas coroas, de Portugal e de Espanha, etc. Ora, para não ser muito comprido… vamos ver o que aconteceu durante a minha vida. O que aconteceu foi em 1.º lugar a guerra – uma coisa espantosa. Quando se fez a paz em 1918, antes de eu nascer, o general alemão que assinou a paz disse – isto não é paz, é armistício por vinte anos. Foi dia por dia. Veja bem. II Guerra Mundial. Nós passámos aqueles problemas, não é verdade? E depois disso, a mudança da atitude dos europeus foi de aceitar que estava a desaparecer aquilo que lhe atribuíam: ser “a luz do mundo”. Que deixou de ser, aos poucos. E, Portugal começou, talvez a se compreender na II Guerra Mundial, que em vez de dominar a circunstância, a circunstância começava a dominar. E por isso a minha conclusão neste momento (eu escusava de ter sido tão comprido) é que o país - arranjei uma palavra feia porque a situação é feia -, é exógeno, quer dizer, é objeto das consequências de decisões em que não toma parte.

Entrv.: Eu costumo dizer que nós somos as nossas circunstâncias!

Prof. Doutor A.M.: É a relação com a circunstância. Eu lembro quando foi do primeiro grande golpe que foi as duas coroas, o nosso Frei Bartolomeu dos Mártires, que agora é santo… eu acho que ele fez uma coisa um bocadinho criticável, achando legítimo que viesse o rei de Espanha. Ora bem, mas outro bispo percebeu a circunstância: não estava de acordo, mas quando lhe perguntaram, o que respondeu foi – “Ao presente não lhe vejo mais remédio.” Quem diz isto não está de acordo.

Entrv.: Sei que ontem foi um dia muito cansativo…

Prof. Doutor A.M.: Foi, mas dormi bem. Mas eu queria dizer outro aspeto em que o país caiu que eu chamo “exíguo”, porquê? Porque não tem recursos suficientes, há tempos, para o que tem de fazer. As duas coisas… aconteceu-nos e não gosto, mas em todo o caso há uma coisa que é a dignidade. E isto já deve ser da idade… Quando via vir os homens da TROIKA explicar regras aos nossos ministros, eu perguntava-me: “então nós não temos empregados para falar com empregados?

Entrv: Justamente. É verdade.

Prof. Doutor A.M.: Eu sentia-me humilhado como transmontano e português.

Entrv.: Somos transmontanos. Eu sou da região de Vinhais e o meu marido nasceu na cidade de Bragança. Então somos mesmo! Embora eu tenha vivido no Brasil. Fui para lá pequenina e estive em S. Paulo durante muitos anos até voltar para cá, mas somos e sinto porque o meu pai e a minha mãe sempre nos incutiram o trasmontanismo, portanto, nós éramos e somos até ao tutano.

Prof. Doutor A.M.: Veio-me à ideia porque foi a pergunta que me fez. É que quando fiz estudos em Lisboa, como lhe disse, os meus amigos e do meu pai eram os transmontanos. Era gente muito modesta, mas amigos e solidários e vi isso, por exemplo, na guerra de Angola. Eu cheguei a Angola, não havia segurança. Não havia, ainda. O meu pai tinha acabado de se reformar e disse-me: “Sem segurança não vais, vou eu”. Foi comigo.

Entrv.: Sim, sim eu li alguns livros…

Prof. Doutor A.M.: Viu nas fotografias? Estava sempre no meio. Era um perigo. Mas é o pai transmontano! Em toda a parte que eu chegava e onde houvesse transmontanos eu estava protegido. Eles cercavam-me… estavam sempre, sempre. Quer dizer, é uma comunidade que onde estiver é transmontana.

Entrv.: É verdade, e eu senti isso no Brasil e senti mesmo muito em S. Paulo.

Prof. Doutor A.M.: É por isso que eu digo que os transmontanos têm uma maneira de ser de solidariedade que os identifica.

Entrv.: Sem dúvida que sim. Os descobrimentos portugueses deram novos mundos ao Mundo. Acha plausível que, Cristóvão de Mendonça, navegador português, tenha chegado à Austrália em 1522, 250 anos antes da chegada do Capitão James Cook, conforme teoria defendida por Peter Tricket no seu livro “Para além do capricórnio”? A ser verdade, a que se terá devido o secretismo dessa descoberta?

Prof. Doutor A.M.: Eu conheço essa questão e a questão é de facto de resposta duvidosa, as provas são duvidosas…

Entrv.: São circunstanciais…

Prof. Doutor A.M.: São duvidosas. Não ficou nada registado. Eu tenho uma neta, a Moniquinha, que foi fazer aquele programa, o Erasmus, para a Austrália. Agora vai ver do que lhe lembrou. Tinha uma amiga, alugaram um automóvel e deram a volta à ilha toda. Chamei-lhes malucas porque foi um perigo, mas disse-lhe: “Olha quem descobriu a Austrália foste tu”.

Entrv.: É verdade! Senhor professor, palavras suas: “Estes políticos afirmam que só há uma via! E, sobre isso, eu digo: “Nunca há apenas uma via única”.” E os partidos políticos em Portugal e no Mundo, Senhor Professor, que futuro?

Prof. Doutor A.M.: A ideia de “partido” ainda no século XVIII era discutida, porque, sobretudo ingleses, achavam contrária à ideia de comunicado. Há vários autores dessa época… A minha memória agora não me ajuda, mas quando vi esta multiplicação dos partidos, para as eleições europeias, lembrei-me que tinham razão aqueles velhotes. O que é que eles diziam: partido era facção. E isso era contrário à ideia de comunidade, portanto não queriam a palavra partido, mas depois, com o tempo, a palavra partido deixa de ser a tal facção quando o conceito estratégico é comum e o que discutimos é o que é melhor. A circunstância mudou. As grandes potências emergentes em competição. A definição interna dos partidos tem de se moldar para responder à nova circunstância. A última eleição para o Parlamento Europeu em França, teve 30 partidos, e veja agora a última eleição em Portugal mostrou novidades no sentido de se pôr de acordo com as novas circunstâncias.

Entrv.: Aprendeu com a sua mãe que “Deus é companheiro”. O que pensa do Papa Francisco e do futuro do Catolicismo?

Prof. Doutor A.M.: Eu sou adepto do Papa Francisco e também reparo… ainda ontem na conversa com os nossos amigos lembrei-me disso: o mundo está muito dividido… riscos vermelhos… agora é moda, mas se reparar, depois da Fundação das Nações Unidas, o único líder religioso que foi chamado, foi o Bispo de Roma – Papa dos Católicos. Primeiro foi Paulo VI. Deixou aquela célebre mensagem: que o “crescimento da economia é o novo nome da Paz”. Depois foi João Paulo II, duas vezes: a igualdade dos povos – era o seu próprio país dominado pelos russos; depois foi o Papa Emérito que é o grande mestre, professor Bento XVI pregando – aquilo que dizem é o que devem fazer. E o Papa Francisco já foi chamado duas vezes. Ora bem, simplesmente a campanha contra a Igreja Católica neste momento é brutal. Tem pecados, mas quando há pecados tem de se arrepender, condenar, absolver, etc. Na nossa fé: perdoar. Mas como a circunstância, neste momento, é o Terceiro Mundo contra os ocidentais: e quem foi que abençoou a ocidentalização? É a razão em que ninguém fala. A luta contra os ocidentais inclui a Igreja. E os católicos estão a fazer demonstração de perplexidade e dificuldades com esta história da Amazónia. Não sei se viu, o Papa convocou os Bispos, porque o Brasil não é único dono da Amazónia. Há uns cinco ou seis e o Papa chamou os Bispos e fez-lhes um questionário para ver como é que vai ajudar os nativos. E até entre as perguntas perguntava se deviam admitir homens casados. E eu percebi, porque me lembrei da história da lepra, porque quando apareceu a lepra no século passado foi grave. Organizaram uma ilha no Golfo do México, que era francesa, só para os leprosos e há um frade que se oferece. Mas há uma carta dele – isto está num livro do médico que foi um bom escritor também, português, Dr. Almerindo Lessa. O frade, com trinta anos, escreveu para a Ordem: “Irmãos, eu sou jovem, tenho tentações, perdão, rezem por mim”. Veja bem. O Papa sabe isto. E alguns vieram acusá-lo até de herege. E a estupidez, ainda por cima, é que pela lei que ele está a utilizar, os Bispos não podem decidir nada. Ele fez as perguntas. Ele tomará a decisão. Mas as perguntas, dizem alguns que são de herege. Até aquele cardeal que está na cadeia, na Austrália, naquele conforto da cadeia, dá-lhe tempo para divagar, chegou à conclusão de que é herege. Ora, tudo isto é para lhe dizer: a circunstância é muito dura, é muito problema sem experiência. Há Globo, mas não há governo do Globo.
E, depois, também aquelas vozes encantatórias que, no fim da guerra, fizeram a Paz europeia, eram todos da Democracia Cristã: da França, da Alemanha, da Itália. A democracia Cristã está de rastos. Praticamente só está em Portugal, e só elegeu cinco deputados. E a senhora Merkel está ligada, mas está a descer de poder, e esta coisa de ocidentalizar o mundo é agora uma atacada aventura. Ora bem, nós tratemos mais da situação de Portugal. Não há segurança do Atlântico sem Portugal; não há luta contra a criminalidade marítima sem Portugal, mas é a situação que o envolve e, mais uma vez, a minha convicção: os portugueses têm conseguido lugares da vida internacional que não estão de acordo com os 92 mil quilómetros em decadência. Tivemos a Presidência do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral da ONU, tivemos a Presidência dos Emigrantes – estão lá representantes muito inteligentes. De onde é que vem este prestígio? Repare que não há missão militar portuguesa, que não termine sem receber elogios… a capacidade da Instituição Militar projeta-se na importância do país que não tem a força, tem a posição e a inteligência e é por isso que a nossa diplomacia tem de ser muito boa e é muito boa, muito competente! Mas já fui bastante claro sobre a nossa fragilidade, neste momento.

Entrev. Não, não é. O senhor professor é um sábio. Há pouquíssimos homens como o senhor professor. Sinceramente, acho que já não há.

Prof. Doutor A.M.: Então estão a acabar. Com os anos que eu tenho…

Entrev. O Museu da Língua Portuguesa é um projeto muito interessante e poderá ser uma mais-valia a nível nacional e internacional no que à lusofonia diz respeito. Gostaríamos de conhecer a opinião do Senhor Professor sobre este assunto.

Prof. Doutor A.M.: Olhe, eu defendi muito essa ideia antes de ser posta em prática. Até reuni dois congressos das comunidades portuguesas no estrangeiro… uma foi cá em Portugal com iniciativa da Sociedade de Geografia, e Coimbra e Braga. Criei a União das Comunidades Portuguesas no Estrangeiro. Um foi cá em Portugal. Houve sessões excelentes. E agora há o grande problema da língua. Veja a guerra civil que há aí por causa do acordo? Eu sou contra o acordo, mas cumpro-o. Mas sabe porquê? Eu era Presidente da Academia das Ciências, tinha que obedecer à lei. Mas protestei, porque “a língua não é nossa, também é nossa”.

Entrev.: Eu também. Eu sou professora e tenho que ensinar a norma.

Prof. Doutor A.M.: E eu representante da Academia, responsável, não me dá jeito escrever de duas maneiras. De qualquer modo, fiz um discurso muito firme. Penso muito seguro. Eu disse o seguinte: A língua não é nossa. A língua, também é nossa. Porquê? A língua, consoante o lugar onde é implantada, mistura-se com valores locais. E até tem como que regras. Quando há escravatura, por exemplo, as vogais abrem-se para que o escravo perceba. Mas se ele deturpar, o patrão, como o primeiro objetivo é ser obedecido, adota a deturpação. Depois as comunidades não contactam com a mesma realidade. O Brasil tem valores italianos, valores alemães, valores japoneses… e nós não temos. Quando chegarmos ao Oriente, é a mesma conversa, mas a língua não é nossa. A língua também é nossa. Nós transmontanos, temos palavras que os outros não sabem. De maneira que eu encontrei esta regra que me parece verdadeira. A língua não é nossa, também é nossa.

Entrev.: É verdade. Também é nossa.

Prof. Doutor A.M.: Chamei a atenção, chamei ontem… não percebo esta guerra civil da língua: quando olhamos para o site das Nações Unidas, estão lá oito línguas só. Está lá a nossa.

Entrev.: É a quinta língua mais falada do mundo. Não é qualquer coisa. É uma grande coisa.

Prof. Doutor A.M.: E mesmo para a literatura… Sabe qual foi a grande invenção do inglês para se expandir? O inglês básico. E o criador do livrinho, um professor, disse: “Isto é que vai conquistar o mundo.”

Entrev.: E conquistou. É isso. Senhor Professor, já estamos quase a acabar. Que leitura faz da região de Trás-os-Montes de hoje?

Prof. Doutor A.M.: Bom, eu não tenho hoje a mesma intimidade. Porque já venho menos vezes, já não tenho parentes na aldeia. Não há crianças. Mas eu mantenho este sentimento… No sítio onde nós vivíamos não havia igreja, lá em Lisboa. …  havia muitas, mas longe. E dinheiro, para o transporte e tempo livre não havia. Portanto a minha mestra foi a minha mãe. E até morreu um amigo meu, franciscano, muito sábio, era da Academia das Ciências, e acaba o livro, o último que escreveu, com estas palavras: “Deus existe.” E eu: “A minha mãe já me tinha dito.” E, portanto, a crise desafiante da Igreja é geral, e a resposta não está a ser uniforme. Está a pagar glórias, está a pagar porque foi uma responsável pela ocidentalização do mundo. Mas aquela história que eu contei… não contei… Recordo-me do sueco Dag Hammarskjöld, Secretário Geral das Nações Unidas, sendo eu um dos representantes de Portugal… Nós éramos muito novos, os delegados. Íamos para a pandega no fim-de-semana: qualquer hora que chegássemos, (estávamos num hotel muito pobre de africanos, porque naquele tempo o estado não era rico nas ajudas de custo), a janela dele estava iluminada. Estava a trabalhar. Tínhamos tal admiração por ele, que eu a primeira vez que fui à Suécia, fui ao cemitério para REVERENCIAR  a sepultura dele. Fez na ONU uma salinha, do tamanho deste espaço onde estamos, com bancos de madeira e um altar de mármore ao meio, e uma luz que vinha do alto sobre a pedra, impressionante! “Sala de meditação de todas as religiões.” Ele percebeu que tinham que se por de acordo. Veja bem! Ele foi assassinado, no Congo. A mim dizem-me, não, não está provado. Eu digo, pois não. Deitaram-lhe só o avião abaixo. Bom. Morreu muito novo. Eu tinha esta admiração que disse. Já agora, conto uma pequena anedota: eu cheguei a ser presidente de uma coisa que se chamava Centro Europeu de Informação e Documentação. Foi fundado pelo Arquiduque de Habsburgo, de quem eu fui muito amigo. Tínhamos delegação em catorze países e ainda cheguei a ser o Presidente. Uma vez tivemos uma reunião na Suécia. Ficámos num Château e no domingo de manhã foram bater aos quartos “Há missa na sala de jantar.” Porque o arquiduque tinha o privilégio de lhe dizerem a missa onde estivesse. E ele tinha um altar portátil. Portanto, levava-o com ele. Onde chegasse, instalavam-no e diziam a missa. Quem disse a missa foi um alemão. Ninguém sabia alemão senão os alemães e depois estava o padre Aguiar que era o nosso e lá traduzia as coisas como podia. A certa altura, desata tudo à gargalhada na missa que estaria no fim. “Ó padre Aguiar, o que é isto?” É que o padre, como era a primeira missa que se dizia na Suécia desde o tempo do Lutero, achou que devia haver uma música. Então encontrou uma senhora de idade que tocaria a música. Sabe o que era? O hino do Lutero, na primeira missa católica desde a reforma.

Entrev.: Risos. O hino do Lutero! Ora, então, realmente. Que engraçado.

Prof. Doutor A.M.: É uma coincidência. O hino do Lutero. Era o que ela sabia tocar. É interessante. Há um padre chamado Kung, alemão. Conhece o nome? Tem uma fundação e teve umas questões com o Papa Emérito. Era amigo dele, mas proibiu-o de dar aulas. A pregação dele no mundo, é que as religiões se entendam.

Entrev.: Era bom era!

Prof. Doutor A.M.: Olhe, ainda outro dia, há pouco tempo, li um livro do líder do Tibete. Como é que ele se chama?

Entrev.: O Dalai Lama.
Prof. Doutor A.M.: Apresentei o Dalai Lama na Universidade de Lisboa há mais de 30 anos. Apresentei-o, veio cá. É impressionante o seu recente livrinho. Ele diz, “Eu fui invadido, destruíram o meu país, mataram muita gente, estou exilado há 50 anos, e não tenho ódio a ninguém. Acho que a paz é fundamental. E o Papa Francisco tem razão.” É impressionante, é animador para o Papa que tem pouca saúde.

Entrev.: Tem uma saúde muito frágil.

Prof. Doutor A.M.: Falta-lhe um pulmão. E já caiu duas vezes. Mau sinal. Há um problema com ele que eu acho que esta gente não avalia; dos cardeais, bispos vivos, é o que sabe mais da América Latina.

Entrev.: – Sem dúvida nenhuma!

Prof. Doutor A.M.: E, portanto, ele sabe o drama da América Latina. Eu escrevi um artigo que vai sair no Diário de Notícias. Eu ando um bocadinho preocupado com essa gente. E acabei o artigo assim: “O problema não é a soberania do Brasil, que não é o único soberano; o problema, quando se diz a importância da Amazónia, é o valor para o Globo.

Entrev.: Ai, sem dúvida nenhuma!

Prof. Doutor A.M.: Esse valor está antes. Com esta conversa que estão a ter em relação aos nativos e que implica com o inquérito do Papa. Lembrei-me, por umas passagens, do livro sobre a democracia na américa”, que é um livro muito célebre de Toqueville, em que se conta o encontro dos Iroqueses com o Presidente dos Estados Unidos. Vale a pena ler isto, porque disseram o seguinte: “Quando os senhores chegaram aqui, vinham carentes. Recebemo-los ajudando-os. Os senhores destruíram o nosso território. Éramos os componentes da nação mais importante. Estamos aqui os últimos da nossa raça. Vimos-lhe perguntar se temos de morrer.” Eu concluo: “Vejam se evitam uma repetição deste acontecimento com esta história da Amazónia.”

Entrev.: Esperemos que sim.

Prof. Doutor A-M.: Eu acho que é comparável.

Entrev.: É comparável sem dúvida. Olhe, Senhor Professor, para concluirmos isto, porque eu vejo que já está muito cansado, … o que pergunta o meu marido é se o senhor professor não se importaria que a sua obra toda, a sua biblioteca toda, fosse colocada online, em suporte digital?

Prof. Doutor A.M.: Isso tem de perguntar. Eu, por mim, não me importo. Tem que perguntar ao nosso Presidente da Câmara. Ela está para vir, o resto. Isto aqui é uma parte.

Entrev.: Eu sei, eu sei.

Prof. Doutor A.M.: Já viu, não viu?

Entrev.: Sim, já vi e sou frequentadora da sua biblioteca.

Prof. Doutor A.M.: Eu, uma das coisas que digo à minha mulher, é isto: “A ti, depois de eu morrer, vai-te custar, porque a casa, sem os livros, vai ficar vazia. Eu Graças a Deus tenho uma casa grande. E fui favorecido por Deus, que eu nunca tive grandes empregos, mas tinha a educação transmontana. Nada de inutilidades, etc. E a minha casa é muito acolhedora. Eu vivo ali há 50 e tal anos, veja bem. Mas é um tempo em que o Restelo chamava-se o Bairro das mulheres arrependidas. Sabe porquê? Acabou o açúcar. Onde é que se compra açúcar? Não havia um sítio onde comprar. Agora não, agora há tudo. Bom, a casa é a mesma. Vá lá e cabem lá os catorze netos. De vez em quando juntam-se todos lá. E estou a reparar numa coisa. Os que andam na universidade vão para lá estudar.

Entrev.: Ora vê! Risos de ambos.

Prof. Doutor A.M.: É uma coisa engraçadíssima!

Entrev.: É porque sabem que têm um avô e uma avó que os podem receber e que sabem que podem contar com eles. Senhor professor o prémio da lusofonia?

Prof. Doutor A.M.: Disse ontem. Disse ontem. Se não fosse o meu pai, não estava ali. Enfim, se não fossem o meu pai e a minha mãe, não estava ali. Estou sempre a lembrar isso.

Entrev.: E o prémio devia ter o nome do seu pai…

Prof. Doutor A. M.: E até aqui há tempos, já há muito tempo, mais de um ano, talvez quase dois, o Comandante Geral da Polícia, penso que agora não tem esse título, mas equivale a general, aconteceu eu falar com ele num almoço em que fiquei ao seu lado. Ele disse-me assim: “Olhe uma coisa senhor professor, o seu pai não foi ajudante do Ferreira do Amaral?” Eu disse: “Foi”. Ainda conheci o Ferreira do Amaral, porque eu era pequenino, mas o meu pai achou que eu devia ir ver o seu comandante. E gostava tanto dele, que o meu pai, já com 80 anos, naquele tempo, era um tempo em que estava em Grijó e ia a Lisboa de propósito à missa anual pelo seu comandante. Veja bem. Ele foi vítima num atentado. Iam-no matado a tiro e safou-se. E diz-me o comandante: “O senhor podia dar-me um retrato do seu pai?” “Com certeza! Até lho posso dar já que tenho na carteira.” “Não, eu quero um mais apropriado, para pôr ao pé do “Ferreira do Amaral”.

Entrev.: Muito bem. Que maravilha! Obrigada, Senhor Professor. Foi um enorme prazer e uma grande honra ter-nos concedido esta entrevista. Não temos palavras para agradecer a sua disponibilidade e amabilidade. Pedimos desculpa por se ter tornado tão longa. Bem-haja.  


Entrevista realizada ao Doutor Carlos Augusto Pinto de Meireles, geólogo assessor do INETI

Vamos chamar à sua entrevista “Á procura da nossa Geologia”.
Nasceu na Póvoa de Varzim, fale-nos um pouco da sua infância, da sua juventude.

C.M. – Enfim, foi uma infância normal. Embora eu tenha nascido na Póvoa, passei a infância e a escola primária numa aldeia em Penafiel. O meu pai era natural de lá, a minha mãe era professora primária e passei a minha infância entre a aldeia e o mar. Estou dividido entre o mar e o campo.
Depois desse período de infância regressei à Póvoa porque, na altura, não havia escolas secundárias em Penafiel. Isto em 60, 61 e havia o Liceu Nacional na Póvoa de Varzim que era o único. Regressámos, portanto, à Póvoa e fiz ali o secundário.
De facto, marcou-me essa dicotomia… estou dividido entre o mar e o monte e os graus de liberdade que tinha quando era criança com os meus 7, 8 anos. O à vontade com que andava pelos campos e pelos montes com os meus companheiros da infância… Tenho impressão de que me marcou bastante no despertar da profissão que escolhi.

Diga-nos, então, no seguimento do que nos contou: Porquê a Geologia?

C.M. – Foi uma professora de ciências naturais que me fez despertar o gosto pela Geologia. Eu estava no meu quinto ano do liceu e essa professora fez-me querer ser geólogo. O seu amor pela disciplina era contagiante. Sabia levar-nos por caminhos inexplorados e fez com que eu me decidisse, aos meus 15, 16 anos. Sinto-me realizado. Faço aquilo que, de facto, gosto. Tenho esse privilégio e, embora as pessoas… Recordo-me de, algumas vezes, amigos dos meus pais estranharem a minha escolha. Para mim e para os meus pais não era estranho. Os meus pais tinham alguns primos que estavam licenciados em Ciências Geológicas. Portanto, na família não era estranho o curso de Geologia, mas as pessoas conhecidas quando abordavam os meus pais sobre o que o filho mais velho ia fazer e os meus pais diziam que ia ser geólogo, ficavam: “O que é isso? Geologia?”
Aliás, continua um pouco essa ignorância, essa falta de consciência de uma profissão. Nós, que somos tão dependentes dos materiais geológicos… Infelizmente, essa ignorância continua presente na sociedade portuguesa. Não sei se é uma espécie de passar de esponja… de ignorância, falta de tomada de consciência já que é uma profissão tão digna...

Valorizam-se umas profissões e desvalorizam-se outras...

C.M. – Isso acontece com muita frequência, não apenas com a Geologia, mas com outras profissões também.

Fale-nos, por favor, de um estudo realizado por vários geólogos, que revela que as rochas existentes na zona das Cantarias, pertencentes ao Parque Natural de Montesinho são as mais antigas de Portugal.

C.M. - O estudo foi feito por um colega meu da Universidade de Aveiro, na sua tese de doutoramento, Luís Francisco Santos. Foi divulgado em comunicados, trabalhos oficiais em congressos, trabalho conjunto… Espero não falhar nenhum nome, do José Francisco Santos, do Professor António Ribeiro da Universidade de Lisboa, do Doutor Fernando Marques, também da Universidade de Lisboa, do professor Tacinardo da Universidade de São Paulo. Portanto, esse trabalho foi publicado, um trabalho conjunto.
Penso que o primeiro trabalho que refere as datações das rochas dos Altos Pereiros, foi no âmbito de uma tese de doutoramento do meu colega José Francisco Santos. Quando se organizou essa exposição no Centro Cultural aqui em Bragança, foi referido numa entrevista, por mim e pelo meu colega José Brilha, como um exemplo do interesse da protecção daqueles afloramentos, porque, de facto, é uma idade polémica. Eu e os meus colegas datámo-los em mil milhões de anos. Embora seja polémica, porque se se confirmar que eles têm essa idade, é que em Espanha há…
Voltando um pouco atrás, estes corpos geológicos existem na Galiza, três ou dois em Portugal, o de Bragança e de Morais. Estas rochas resultaram de uma tectónica de placas que se começou a processar por volta dos 400 milhões de anos até aos 320 milhões de anos, processo de fecho de um grande oceano e da colisão de dois continentes, que agora já não existem. Há vestígios dessas rochas, o que seria, mais ou menos, à latitude atual, a América do Norte, as Américas. Portanto, o fecho desse oceano começou dos 400 milhões… Eu estou a falar um pouco de cor, posso não estar a dar as idades precisas, entre os 400 milhões e os 320 milhões de anos, altura em que se deu o fecho completo desse oceano.
E o que é que acontece quando há o choque de duas placas tectónicas continentais? Há todo um material do fundo da crosta oceânica e sedimentos do oceano que vão desaparecer, e há outra parte que cavalga, que sobe. Sobe porquê? Há um encurtamento do espaço, há uma incapacidade física de ocupar esse espaço, esse volume e, esse material cavalga. Esta unidade imensa calcula-se que tenha cavalgado sobre um outro continente, nas actuais latitudes cerca de duzentos quilómetros de oeste para leste e a esta unidade chamamos nós… Os geólogos dividem a península ibérica geologicamente em várias zonas estruturais e esta é uma delas. A zona chama-se Galiza/Trás-os-Montes e, a característica dela é a presença destes corpos que são deslocados doutras origens...

São rochas do mar...

C.M. - Algumas são rochas do mar. Outras, como é o caso da zona dos Altos Pereiros, são rochas da crosta continental ou manto. Portanto, estamos a falar em profundidades. A crosta varia dos oito quilómetros no oceano até aos quarenta, cinquenta quilómetros de profundidade. Neste caso, será crosta continental. Estaremos com rochas de profundidades de quarenta quilómetros e formaram-se com temperaturas à volta dos 600, 700 graus, com pressões enormíssimas de 12 ou mais kilobares. Estão preservadas. Penso que são as rochas mais preservadas, portanto, serão as rochas mais favoráveis para fazer essa datação.
Voltando outra vez à datação, nos maciços espanhóis nunca se encontraram estas idades e, daí, a polémica. Mas o interesse daqueles afloramentos serem preservados e de não serem cimentados, destruídos simplesmente, é para permitir, por um lado, que as pessoas, o cidadão comum, sejam informadas, e que o espaço seja devidamente valorizado para divulgação dos afloramentos da geologia, da complexidade da geologia que está ali presente e, por outro lado, para que nós, os geólogos, possamos continuar a estudar, a observar, porque de facto ainda há muito trabalho a fazer. A ciência não acaba; vai evoluindo...

Que importância podemos atribuir a essa descoberta?

C.M. - Bom, por um lado é o prazer da descoberta que temos que ter sempre presente e de conhecermos o nosso próprio planeta. Portanto, conhecermos a história do planeta, digamos, da evolução, da complexa evolução do terreno que pisamos, que abrangerá desde rochas que terão mil milhões de anos, andarão próximo disso, seguramente mais de 600 mil milhões de anos, até rochas que tenham, que sejam mais actuais, da ordem dos 20 milhões de anos, por exemplo, é o prazer de apresentar descobertas.
Acho que os geólogos deviam partilhar mais. Gostava de ver, nos nossos cidadãos, esse prazer da descoberta. Portanto, temos a obrigação conhecer a geologia, a história da Terra. Nós precisamos de conhecer a história humana, do passado até ao presente e aprendermos com isso, aprendermos com os erros do passado e projetarmos para o futuro. Também precisamos de aprender a evolução do planeta onde vivemos.
Estão agora presentes estes problemas do aquecimento global. Nós temos que estudar muito bem o clima do passado para tentarmos compreender o clima actual, não é? Que condicionantes é que estão em jogo para modificar o clima? Portanto, eu vejo isso como um prazer, de descoberta, puro. É a curiosidade inata do ser humano.

Já nos falou da importância dessas rochas, mas como seria o mundo nessa altura e o porquê de se ter dado esse choque tectónico?

C.M. – Porque o planeta é, felizmente, um planeta vivo. Porque o planeta tem atividade. Os exemplos dessa atividade são os sismos, os vulcões e a atividade vulcânica que é espantosa. Muitos cataclismos se deram, e muitas modificações do clima se deram por cataclismos vulcânicos, principalmente. Porque, se não houvesse vida, esta atividade do planeta, com certeza, não haveria vida.

É verdade que se encontram conchas marinhas nas serras de Montesinho e Nogueira?

C.M. – Sim. As conchas são raras. Encontram-se pistas, não na Serra de Nogueira, mas na serra de Montesinho, mais na serra das Barreiras Brancas, mas encontra-se pistas, traços da actividade de seres vivos. Não ficaram registos dos corpos fossilizados desses seres, mas ficaram as suas marcas do fundo marinho, que era uma praia. Imagine uma plataforma continental muito plana. Enfim, um mar muito amplo e com uma areia muito bonita, muito fina. Deveriam ser umas praias esplêndidas, isto, há cerca de uns 480 milhões de anos.

Pena, é que foi há tanto tempo.
Tem desenvolvido importante trabalho na elaboração de cartas geológicas com especial incidência na região norte, nordeste de Portugal. Porquê esta preferência?

C.M. – Não foi propriamente uma preferência, mas foram indicações de política do serviço. Quando ingressei em finais de 1985 nos serviços públicos, na ex Direção Geral de Geologia e Minas, mais concretamente, nos serviços geológicos.
A Direção Geral de Geologia e Minas tinha dois departamentos. Um, ligado à prospeção, que era o serviço de fomento mineiro, tinha sido criado nos anos 39, 40, durante a guerra, e os serviços geológicos de Portugal, que é uma instituição centenária. Em 1998 foi comemorado o centenário desta instituição. O trabalho dos serviços geológicos é, essencialmente, de cartografia geológica. Procura-se fazer uma cartografia à escala 1:50000 do país todo. E foi, portanto, por essa incumbência do serviço, que fui destacado para trabalhar aqui em Trás-os-Montes.

Fale-nos das particularidades geológicas dos parques naturais de Montesinho e do Douro internacional.

C.M. – Conheço melhor o parque de Montesinho porque é onde tenho trabalhado mais. Tenho dado colaboração aos meus colegas que trabalham na zona de Miranda. Aliás, estou a fazer cartografia, como há bocado disse no princípio da entrevista, em São Martinho de Angueira, que está no limite norte do Parque do Douro Internacional.
Sobre a geologia do parque de Montesinho considero que, voltando um pouco atrás, àquelas pinceladas do parque geológico do planeta, é uma das regiões do país com uma geologia mais complexa e, portanto, mais rica em termos de património, em termos de cultura, em termos de cultura científica e é tão diversificada, que eu, pessoalmente, considero que se não fosse tão complexa e tão diversificada, não condicionaria a morfologia, a geomorfologia da própria paisagem. As rochas condicionam a presença de vegetação. A situação mais marcante são os afloramentos de rochas ultra básicas do maciço de Bragança que têm uma flora própria, autóctone, porque são rochas muito ricas em níquel e crómio. Níquel, portanto é um veneno muito grande e nem todas as plantas se conseguem adaptar, e há uma flora muito própria.
Lá está, a geologia, a ser o substrato, a condicionante da geomorfologia da envolvente da paisagem, a condicionar a própria flora, a condicionar a própria presença humana. Depois, em função da geologia, também há um aspecto que é um importante recurso geológico, as águas subterrâneas. Conforme a fracturação, conforme a própria qualidade destas rochas, assim teremos maior ou menor quantidade de água subterrânea e, as águas subterrâneas são um recurso muito importante para o ser humano, para o seu consumo e bem-estar. A geologia do Parque Natural de Montesinho, atrevo-me a dizer que se esta geologia não fosse tão complexa, não teríamos parque. Ela, de facto, vai condicionar, está na base de tudo o que temos por cima. Toda a morfologia, toda a paisagem…

E o que distingue a Serra de Nogueira e o Monte de Morais, geologicamente falando, do resto desta região?

C.M. – O Monte de Morais faz parte desse tal maciço, maciço de Morais, que é, fundamentalmente, constituído por rochas da crosta oceânica. Repito, o maciço de Morais é, fundamentalmente, constituído por rochas da crosta oceânica. Aqui em Bragança predominam as rochas da crosta continental. Também há crosta oceânica que está muito mais deformada. O que predomina aqui são as rochas da crosta continental e rochas como aqui, na zona de Vila Boa de Ousilhão, que são as rochas ultra mórficas, muito importantes para a exploração de crómio. A exploração das minas de crómio do Aberredo foi mais ou menos na mesma ocasião em que o jazigo Bushveld na África do Sul começou a exploração do crómio e da platina, se não estou em erro, em 1906 ou em 1907. Foi descoberta a cromite, no maciço de Bragança, mais ou menos na mesma altura, e teve, aqui, uma actividade mineira importante. Nessa altura, o serviço mineiro teve muito trabalho de pesquisa e de apoio aos concessionários mas, curiosamente, com o fim da 2ª Guerra Mundial, caíram os preços porque, a África do Sul começou a produzir em grande e, praticamente, os trabalhos aqui terminaram pela dificuldade da prospeção. São uns jazigos muito difíceis de seguir, de ver onde há mais massa desses minerais e, portanto, com o esgotamento superficial do minério, a atividade cessou. Mas é curioso que a descoberta das cromites aqui em Bragança se tenha dado, exatamente, na mesma altura dos jazigos de cromite na África do Sul. Desculpe, começo a falar e perco-me...

Foi muito interessante ouvi-lo divagar sobre estes assuntos, mas temos de voltar à Serra da Nogueira e ao Monte de Morais…

C.M. – A Serra da Nogueira é uma serra gerada por um bloco, um terreno que está levantado e, está levantado por esta actividade já mais recente que controla esta falha que temos aqui e que provoca os sismos que têm acontecido em Bragança, Vilariça,… Portanto, que tem um desligamento. As tensões da terra levaram a um deslocamento de blocos.
Aqui no norte, neste sector tem um deslocamento horizontal de uns quilómetros e, além do deslocamento horizontal, há elevação de blocos e abatimento de outros e aquele sector de Montesinho, porque isso vê-se muito bem na paisagem, aprecia-se muito bem do miradouro de São Bartolomeu. Virando para norte, uma pessoa vê, à esquerda, um bloco levantado, Serra de Montesinho e todo aquele sector levantado. Aquele bloco subiu, ficou exposto o granito. A zona de Baçal é uma zona abatida. É aquilo a que a população chama muito bem, a baixa lombada. Depois, a zona de Babe é alta lombada. Há um outro conjunto de falhas que faz levantar o bloco de Babe. A Serra da Nogueira é uma situação dessas, está a sul de Bragança e foi erguida por esta actividade tectónica.

Fale-nos um pouco dos fenómenos que terão dado origem ao muro de Abalona.

C.M. – Bom, o que se passa é que aquele vale, o rio Douro, da parte de Espanha, é um rio com um percurso tranquilo. Aliás, ele atravessa uma bacia sedimentar antiga e o encaixe, todo o alto Douro, desde a entrada na zona de Paradela, norte de Miranda, desde a entrada do Douro na fronteira até Barca D`Alva é aquilo que nós chamamos um canhão. Este canhão foi gerado a partir... O Douro desaguava por uma bacia interior, antes de abertura do Atlântico, antes de se dar este choque entre o Atlântico e o rio Douro correr para o mar e, por isso, esta zona, quando se vai para Zamora ou para Valladolid, vê-se uma grande planura. Era um mar interior onde o Douro desaguava. Depois, com esta tectónica complexa da abertura do Atlântico, há um retomar, um avanço do rio, desde a latitude do Porto que foi avançando e retomou esta bacia. A partir daí, o rio Douro começou a correr para o mar e, portanto, tem um percurso muito juvenil. Ainda está em grande actividade geológica, erosiva e criou este canhão. A construção das barragens vai impedir um pouco esta ação erosiva. Precisamos de controlar o rio para evitar problemas de inundações e cheias e para termos energia eléctrica para nosso conforto. Portanto, a acção do homem neste aspeto, vai cortar um pouco a evolução natural. Nesse aspeto, o Douro é um rio jovem, muito jovem e, digamos, a própria geologia que atravessa, mais granítica, rochas mais resistentes à erosão do que os xistos, vai dificultando a sua passagem. A partir de Barca D`Alva até ao Porto entra-se no vale do Douro, onde as rochas, com mais de 500 milhões de anos, são rochas muito mais brandas, relevos mais suaves, o vale é um pouco mais aberto. Este canhão do Douro, que é toda a fronteira de Portugal e Espanha desde Miranda até Barca D`Alva é um percurso juvenil do rio Douro.

Neste momento desenvolve trabalho na elaboração de cartas geológicas de Bragança, São Martinho de Angueira e Vinhais. Fale-nos brevemente sobre o tema.

C.M. – São trabalhos que estão a decorrer, agora estão um pouco interrompidos, porque estou mais centrado nos meus trabalhos de investigação e logo que concluído isso, espero retomar os trabalhos, quer na carta de Bragança, quer na carta de Vinhais. A carta de Vinhais é a que está mais atrasada. Eu tenho praticamente feitos os levantamentos da zona de Bragança. Há uma carta 25000, uma carta 50000, são quatro 25000. Há uma carta 25000 que ainda precisa de uma revisão minha. Nós, nos serviços geológicos, trabalhamos em equipa. Era um geólogo, um auxiliar e um coletor. O coletor era uma pessoa que em tempos fazia uns reconhecimentos rápidos e que nos poupava muito tempo porque, enfim, a não ser que houvesse depois algumas dificuldades, algumas complexidades da própria geologia, e que me levaram a fazer um levantamento quase quilómetro a quilómetro. A correr, quase, cada quilómetro quadrado a pé ou de jipe. Portanto, é assim que fazemos os nossos levantamentos, mas esse trabalho de coletor foi bastante precioso porque dá logo uma pista ao geólogo, para direccionar um pouco mais os seus levantamentos onde acha que há problemas para resolver, e portanto, o trabalho, neste momento, na carta de Vinhais, embora tenha os levantamentos feitos pelo meu coletor, está meia feita. As minhas revisões é que estão um pouco mais atrasadas. Vão ter que esperar que eu acabe o meu trabalho de investigação.

Quais são as principais diferenças geológicas entre Trás-os-Montes e o resto do país?

C.M. – Bom, é um pouco, voltando atrás, aquela situação de termos aqui uma unidade que foi deslocada, que resultou de um choque de placas bastante antigo, um processo há volta dos 300 milhões de anos e, desse choque, desse choque entre dois continentes, resultou também actividade granítica, que é aquele eixo do Minho até às Beiras, depois a zona sul também é mais complexa, complexa e diferente mas, aqui, tem a vantagem de as rochas aflorarem bem, haver bons afloramentos.
Por exemplo, em relação àquela zona do Alentejo, zona de Beja até Évora, é uma zona já com uma erosão muito intensa, uma geologia muito polémica, muito complexa também, mas não tem a vantagem de aflorar tão bem como se vê aqui em Trás-os-Montes. Do ponto de vista da geologia, Trás-os-Montes é um local privilegiado. O canhão do rio Douro, com uma garganta profunda, com cortes de geologia muito bons. A região de Trás-os-Montes, aqui de Bragança e Vinhais com bons afloramentos, bons cortes, é a exposição da geologia, que leva a que muitas excursões, congressos geológicos e encontros internacionais se realizem em Trás-os-Montes, aqui no nordeste. Por acaso, a última que foi realizada aqui em Bragança, foi uma reunião do Oeste Peninsular, que reuniu pessoas de vários pontos do globo, portugueses, espanhóis, australianos, colegas argentinos… Esta geologia é importante, não só pelos recursos naturais… Voltando um pouco atrás, a curiosidade humana leva a que nós queiramos saber mais do passado mas, entretanto, desta complexa evolução geológica do planeta resultam recursos que são importantes para a actividade humana.
Eu costumo dizer que desde que o homem começou a pegar numa pedra, a lascar e a começou a utilizar, quer para se defender, quer para se alimentar, iniciou-se a ligação do homem com a geologia e, desde sempre, o ser humano está dependente da geologia. Às vezes, nós não temos muito bem, consciência disso. Claro que dos recursos, há sempre.
Toda a atividade humana tem prós e contras. Temos que ser capazes, criteriosos e cuidadosos na sua exploração. Não ser uma actividade desenfreada, sem controlo, sem preocupações ambientais. Temos de ter isso em conta para tentar minimizar qualquer risco.
A civilização humana está sempre ligada à geologia, à exploração dos materiais e Trás-os-Montes teve uma situação importante até aos anos 80, do século passado, século XX. Trás-os-Montes e o distrito de Bragança, era o distrito mineiro do estanho, por excelência, no país. Portugal produzia mais estanho nessa altura do que a Espanha. As minas de Portelo, ou as minas de Montesinho que eram o principal produtor.
Portanto, o ouro, crómites, estanho, a própria rocha, as pedras que nós usamos na cantaria, que nós usamos na construção das casas, são matérias-primas que resultam desta actividade, desta história complexa da terra que o ser humano precisa de utilizar, inevitavelmente.
As coisas têm de ser bem geridas e bem exploradas. Há, ainda, o aspeto da atividade lúdica e, voltando um pouco àquela exposição que foi apresentada há semanas atrás, aqui em Bragança e que resultou na conclusão do projecto do estudo do património geológico destes dois parques naturais, há um outro aspecto, uma outra actividade económica que pode ser assente na utilização da beleza natural, dos afloramentos, da geologia, do património.
Há determinados afloramentos que interessa preservar ou, pelo menos, interessa que o homem não os destrua. Que deixe que a natureza faça o seu papel de erosão. Enquanto eles existirem devemos tirar partido disso, quer para enriquecer o nosso conhecimento, quer para enriquecer a nossa formação cultural e científica, não descurando a atividade económica e turística.
Hoje em dia a actividade cultural tem uma importância muito grande na actividade económica de um país. Há uns meses atrás, vinha num jornal um relatório de Bruxelas a realçar a importância da atividade cultural, no produto interno bruto de um país. Penso mesmo, que para Portugal, era mais importante do que vender ou exportar automóveis.
A actividade cultural, tudo o que ela arrasta e, nesse aspeto, o património geológico integra-se nesse nicho de atividade económica. É um aspeto importante a ser tratado pelos nossos responsáveis do turismo do nordeste, aproveitando, corretamente, todas as potencialidades da região.

O sector mineiro ainda é um sector a ter em conta?

C.M.- Claro. É sempre, até porque, em primeiro lugar, a função dos serviços públicos a que eu pertenço é fazer uma inventariação. Não é só fazer a cartografia geológica. Atrás da cartografia geológica vem a inventariação dos recursos e, portanto, é fundamental conhecermos aquilo que temos, definirmos e quantificarmos o quanto possível, os nossos recursos de matérias-primas para definirmos reservas. Até em termos de um conceito tão falado, o desenvolvimento sustentável. Ou seja, pode não ser neste momento, por razões de mercado, explorar o estanho, porque os preços estão muito baixos e os custos de produção são elevados. Não interessa, neste momento, explorar mas é preciso quantificar. Saber quantas reservas existem, porque pode não ser útil agora, mas em explorações futuras pode ser importante.
Esta actividade pública e, eu friso bem, pública, embora não pondo de parte a actividade das empresas privadas que foi importante, mas as empresas privadas trabalham em função do mercado, os serviços públicos têm obrigação, no meu entender, de trabalharem sistematicamente para bem do interesse português, aplicando o dinheiro dos contribuintes, fazendo um estudo de inventariação sistemático e sempre com vista a procurar definir estratégias de desenvolvimento sustentado.

Em função das necessidades...

C.M. – Exactamente, o serviço público tem de fazer um trabalho constante, contínuo, para depois poder informar o poder político. Olhe, temos não sei quantos milhões de reservas de ferro com estas características. Foram definidas as reservas. A decisão política de abrir ou não a mina, depende do mercado, das condições de mercado, mas pelo menos fica para o futuro, para as gerações futuras saberem que existem, ali, nas Barreiras Brancas, cinco milhões e meio de toneladas de ferro.

Ainda há muito minério para explorar em Trás-os-Montes?

C.M. – Sim. E ainda há muito por investigar e quantificar. Aqui no distrito de Bragança os únicos jazigos que estão quantificados, cujas reservas estão perfeitamente quantificadas é o ferro de Moncorvo, as Barreiras Brancas de Guadramil e o jazigo de estanho de Montesinho. O resto está tudo por quantificar. Há muito trabalho por fazer, muita investigação de prospeção mineira ainda por fazer. Se quiséssemos seguiríamos esta política de reconhecimento, de inventariação, de investigação dos recursos.

Esta região é propensa a sismos?

C.M. – Sim. Há atividade sísmica ativa pela falha da Vilariça. Há outra falha a leste de Miranda do Douro, na zona de Alcanices, que provoca estes sismos na zona de Miranda que são bastante intensos.
Estamos a assistir à abertura de uma nova falha, creio que é paralela à da Vilariça. Estas falhas vão começar a jogar porque, na opinião do professor António Ribeiro da universidade de Lisboa, estamos a assistir ao fecho do Atlântico. A abertura foi bastante complexa. Primeiro na zona do Tétis, que é agora o Mediterrâneo há cerca de 200 milhões de anos, o Atlântico sul abriu há cerca de 150 milhões de anos. Na opinião dele e pelos dados da geofísica, sísmicas profundas, estamos mais ou menos a 150, 200 milhões de anos do fecho. Há uma certa constância na evolução dos continentes na terra, os continentes abrem, parece haver um ciclo.

Uma transformação…

C.M. - Exactamente, que permite que abram e fechem. Na opinião do professor Ribeiro, estaremos numa situação de fechar o oceano. Ele diz na brincadeira que a nossa satisfação seria cavalgar em cima do oceano, quando o oceano estivesse completamente fechado e, portanto, ele atribui esta actividade física, que começa a ser muito presente, aqui, na região, nessa falha que está a começar a abrir na zona de Miranda, a leste de Miranda, este processo é sempre muito lento.

Que demora milhões de anos?

C.M. – Para os humanos a escala são os 100 anos. Para o geólogo a escala são milhões de anos…

Não quer isto dizer que os geólogos vivam mais do que nós…

C.M. – Não. Quando isso acontecer não haverá sequer civilização humana. Não sabemos que evolução pode ter o planeta se houver um grande cataclismo vulcânico. Uma boa parte da civilização humana vai sofrer consequências muito sérias.
Para terminar, que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

C.M. – Enfim, várias. A minha professora de ciências naturais que me marcou na escolha do meu curso, além da minha família. Há também um professor, vários professores. Lembro-me, assim de repente, de vários professores. Um professor de história do liceu, pelo despertar da consciência cívica. Depois professores na faculdade, os meus mestres, algumas figuras públicas como Ghandi, o incontornável Cristo, várias figuras políticas… Algumas figuras políticas portuguesas, algumas figuras históricas portuguesas, como modelo de civismo e integridade. Uma das figuras que sempre me foi muito grata: Aristides de Sousa Mendes... Mais próximas e que me marcaram na família, os meus pais.

Obrigado pela sua entrevista.


C.M. - Eu é que agradeço, obrigado. 

Escrito por Maria Cepeda