Entrevista ao Professor
Doutor Fernando Faria Correia
Maria
Cepeda (M.), entrevistadora
Fernando
Correia (FC), entrevistado
M.
– Obrigado por ter vindo! Hoje temos connosco o Doutor Fernando Faria Correia
que é investigador da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho e
foi o único especialista da Península Ibérica a integrar a “lista Top 40,
abaixo dos 40 anos”, elaborada pela Biophtalmologist [ou Biophtalmology Jourmnal ou Ophtalmology
Journal?] a principal revista científica do setor e isso aconteceu em 2015,
se não estou em erro.
É
um oftalmologista talentoso que tem publicado artigos importantes na área de
ceratocone, catarata e cirurgia refractiva. É especializado em cirurgia
refractiva córnea e cirurgia de catarata. É revisor de várias publicações
científicas além de pertencer ao grupo de tomografia e biomecânica do Rio de
Janeiro. Publicou dezenas de artigos científicos e recebeu inúmeras distinções.
Concluiu
a licenciatura em Medicina na Faculdade de medicina da Universidade do Porto em
2007 e realizou o internato de formação específica em oftalmologia no Centro
Hospitalar de S. João, Porto, Portugal, de 2009 a 2012. Durante o último ano de
internato integrou a Fellowship de Córnea e Cirurgia Refractiva liderado pelo
Professor Doutor Renato Ambrósio Júnior, Rio de Janeiro, Brasil. Em 2013,
realizou outro Fellowship em Catarata e Cirurgia Refractiva liderado pelo Dr.
George Waring, na University of South
Caroline Storm Eye Institute, na Carolina do Sul, Charleston, nos EUA. Além
de ter uma prática clínica movimentadíssima, atua ativamente na pesquisa
clínica e integra as atividades do grupo de estudos em Tomografia Biomecânica
da Córnea do Rio de janeiro. Também atua ativamente no ensino, sendo instrutor
em vários cursos e orador convidado em distintas conferências internacionais.
Em 2017, defendeu a sua tese de doutoramento em medicina, obtendo o título de
Professor Doutor e concluiu ainda o curso de Physian CO na Kellogg School of Management, na Western University,
nos EUA. FC. - Chicago.
M.
- Em Illinois. Ora, o Professor Faria Correia é revisor de várias revistas
internacionais de oftalmologia. Desde 2020 faz parte do conselho editorial da Cataract and Refractive Surgery Today Europe.
E é membro do conselho internacional da International
Society of Refractive Surgery. Atualmente, também é editor chefe da Revista
Oftalmologia da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO). Ora, isto é um
currículo que nos deixa sem fôlego, apenas com 38 anos de idade.
Hoje
temos então o privilégio de o entrevistar. Um jovem transmontano, natural de
Bragança, com provas dadas na sua profissão a nível nacional e internacional.
Professor Doutor Fernando Faria Correia, com apenas 38 anos, e volto a repetir,
tem um currículo impressionante. Avancemos com as perguntas…
De
que forma, o facto de, apesar de não ter nascido em Bragança, mas tendo sido cá
registado, de que forma esse facto o influenciou?
FC.
- Antes de mais, obrigado pelo vosso convite para participar na entrevista.
M.
- Para nós é um gosto.
FC.
- Sabe que eu tenho uma saudade enorme em passar no IP4, no Marão, quando vejo
aquela placa “O Reino Maravilhoso” de Miguel Torga… para lá do Marão mandam os
que cá estão. Estou desde 2001 na Cidade Invicta e quando falo dizem que “este
sr. Não é de cá; tu não és de cá, és transmontano”. O sotaque fica, felizmente.
E tenho muito orgulho em dizer que sou transmontano e que sou de Bragança. Sou
brigantino.
M.
– Ótimo! Isso a nós só nos deixa felizes! E isso influenciou de alguma forma a
sua maneira de estar na vida?
FC.
– Influenciou porque aqui, Bragança é, vamos dizer, um microclima que nos
permite crescer de uma forma mais natural; permitiu-me, a mim, preparar-me para
enfrentar um pouco a sociedade, enfrentar o trabalho, enfrentar o estudo, estar
em momentos só porque estive em muitos cantos do mundo sozinho, muita viagem de
avião sozinho, espera de avião nos aeroportos e a gente, na solidão, às vezes,
aprende a filosofar, a meditar e é aí que crescemos como pessoas, como também o
que nós podemos contribuir para a sociedade, nomeadamente… acho que o que fez
isso… por exemplo, eu estou aqui, num local onde dei os meus primeiros passos.
Isto era o 2.º ciclo, a preparatória Augusto Moreno era aqui, fui aluno aqui e
é um prazer enorme estar aqui a dar esta entrevista num sítio que me preparou
para enfrentar hoje este planeta Terra, que é, cada vez mais difícil.
M.
– Muito, realmente! Agora vamos para a profissão que escolheu e eu perguntaria:
porquê oftalmologia?
FC.
– Foi uma opção difícil. Estive até à última hora antes de ir para a cama a
escolher entre oftalmologia ou cirurgia plástica. O meu pai não se meteu em
nada disso. Escolhi oftalmologia. Porquê? Oftalmologia tem uma vertente que é a
cirurgia de micro incisão. Cada vez
mais, a medicina evolui para técnicas minimamente invasivas. Ainda hoje, recebi
uma notícia que está relacionada com o meu doutoramento que são uns colírios
que se colocam nos olhos que revertem a vista cansada. Foi aprovado pelo FDA.
Esse tipo de medicamento está um pouco relacionado com a temática do meu
doutoramento. É uma especialidade que, além de ter o componente cirúrgico, tem
componente médico, tem exames complementares de diagnóstico e é uma
especialidade inovadora. Foi a 1.ª especialidade onde se usou o laser, a
palavra mágica, e acho que na medicina é aquela especialidade que é de ponta em
termos de desenvolvimento.
M.
– Como sabe, o meu marido cegou, está cego neste momento, depois de vários
problemas a nível oftalmológico e depois de várias cirurgias… na altura não
havia resposta. Imagino que se fosse hoje, talvez houvesse resposta para o que
lhe aconteceu. Mas, enfim, avancemos, que a vida não para. Depois da
especialidade não se deu tempo para descansar. Quer falar-nos do seu percurso académico
e profissional?
FC.
– Eu, se calhar, não vou descansar neste mundo. Talvez no próximo.
M.
– Pois, vejo que sim! É que não se dá tempo mesmo! Não pára!
FC.
– Não vou descansar neste mundo… Na próxima semana vou para Nova Orleães. Vou
receber outra vez mais uma distinção da Academia Americana de Oftalmologia.
M.
– Que bom! Que maravilha!
FC.
– Sabe que, as pessoas que referenciou há bocado – o Renato Júnior e o George
Waring IV, são filhos dos colegas que introduziram a cirurgia refractiva nos
EUA e no Brasil. E eu vou receber a medalha Waring, por ter sido a pessoa que
mais contribuiu para a promulgação e desenvolvimento do conhecimento da
cirurgia refractiva no ano 2020/2021em termos mundiais e vou receber essa
medalha a Nova Orleães. Daqui a três semanas vou estar no Dubai a dar formação.
Mais a clinica, mais os doentes e mais a família que é importante. É a pedra
basilar. Portanto, não é neste mundo que vou descansar.
M.
– Mas seja feliz não descansando!
FC.
– Não, não! A gente quando corre por gosto não se cansa, já dizia o meu avô.
M.
– Nem mais! Quando corremos por gosto nunca cansamos. E eu acho que tem muito
chão para andar.
FC.
– Ah, sim! Eu acho que…é o seguinte: a questão…a minha felicidade foi ter-me
cruzado com as pessoas mais incríveis da minha vida. Foi desde o meu avô
materno…
M.
– Que lhe deixou muitas saudades…deixou imensas saudades. E sabe que a minha
avó, aqui para amenizar um bocadinho, a minha avó era prima carnal do seu avô,
o pai da sua mãe.
Pois…é
difícil…quando gostamos dos nossos, é muito difícil. (Aqui, por breves
momentos, a emoção falou mais alto e Fernando Correia chorou pelo avô materno)
FC.
- … e o meu pai e um professor brasileiro que é como um irmão. Há pessoas
que…não fazem o trabalho, mas indicam a orientação que devemos ter.
M.
– Guiam-nos, não é? E nós, às vezes, o que precisamos é de ter alguém que nos
guie. Eu também, felizmente. Todos nós, acho que tivemos…quem nos guiasse. Isso
é bom. É ótimo! Nunca o perdemos.
FC.
– A questão é que…as pessoas às vezes pensam que o trabalho sai. Está tudo
feito. Às vezes é uma inspiração divina, às vezes é o toque de Midas, mas às
vezes é aquela fortuna de estarmos na sala e cruzarmo-nos com aquela pessoa boa
que… Eu amanhã vou estar a operar com o meu pai e já sei que o meu pai sabe
onde vai cair o bilhar. Já sabe onde é que vai acontecer alguma coisa, já sabe.
E é isso que é como um anjo da guarda.
M.
– Sim, sim.
FC.
– E é bom a gente ter assim um anjo da guarda.
M.
– É fundamental.
FC.
– É. Na medicina e em tudo na vida.
M.
– Em tudo mesmo. Estou a ficar comovida porque vejo que dá imenso valor à sua
família como eu dou à minha… o meu pai faleceu há dois anos, quase três. Realmente
isso mexe connosco. São perdas que apesar de o serem, continuam presenças, continuam
no nosso coração, no nosso pensamento.
FC.
– Exatamente.
M.
– Isso é o que importa. Há um anjinho que está sempre connosco. Fale-me do
facto de integrar o Top 40 de oftalmologia abaixo dos 40 anos.
FC.
– Integro. A mim, o que mais me valoriza, é o próximo prémio que vou ganhar. A
gente tende a pensar sempre no futuro.
M.
– No que vem a seguir.
FC.
– Nós temos de sair da zona de conforto. Foi bom o reconhecimento… é bom a
gente ser reconhecida lá fora como cá dentro pelos nossos pares e isso
significa que o caminho está a ser bem trilhado. O nosso foco tem de se manter
nesse ponto. Foi bom. Foi muito bom, mas a gente quer sempre um bocadinho mais.
É claro que, nesse aspeto… foi importante ser reconhecido abaixo dos 40 anos…
acho que era o mais novo dessa lista.
M.
– Foi em 2015…
FC.
– Em 2015.
M.
– Foi há seis anos.
FC.
- Há seis anos ainda nem era doutorado, estava a começar a dar os primeiros
passos, mas eu ainda me lembro de ter feito o meu exame final de especialidade
e passados dois dias estava…fiz em Braga… e passados dois dias estava em S.
Francisco a dar cursos de formação. E… fui substituir o meu professor
brasileiro num desses cursos com professores, que inventaram as máquinas para
fazer os exames de córnea e eu pensei “Mas eu estou aqui tão pequenino;
sinto-me tão constrangido”. Mas pronto, é com esse tipo de experiências que a
gente cresce, portanto, integrar é bom! É bom porque nos reconhecem. Não é uma
questão de ego, é uma questão de humildade mantermo-nos sempre com os pés
assentes no chão e termos também um pouco de gratitude [gralha do entrevistado - leia-se “gratidão”]. A gratidão
é muito importante.
M.
– E saber que nós fizemos por isso, porque se nos cair assim de mão beijada não
tem valor…
FC.
– Sabe que eu já mandei muita gente, muito médico interno para o Brasil para ao
pé do meu professor e a admiração que o meu professor tem por mim por causa do
trabalho que eu fiz com ele, que… ainda hoje se ele precisar de alguma coisa,
meto-me no avião e vou de propósito ao Rio de Janeiro para o ajudar nalgum
problema, seja ele qual for… Ele era uma pessoa que fazia o trabalho, mas era
uma pessoa que pouco vivia a vida. Ou seja, estava 100% no trabalho, 100% na
balada, na noite com os amigos e acho que é esse o segredo da vida dele: é
estar 100% com a família, 100% com o trabalho e 100% com os amigos. E isso,
para voltar à primeira questão, só aprendi aqui em Bragança.
M.
– Eu sei… Posso chamar-lhe Fernando?
FC.
– À vontade!
M.
– Sei que o Fernando tem duas crianças pequeninas e muitas vezes… eu já tinha
ouvido falar do Fernando. Quando ia a alguma consulta com o seu pai ele falava
sempre “o meu filho, o meu filho” e então eu, sem o conhecer, já o conhecia um
bocadinho e uma coisa que admiro imenso – como é que consegue conciliar a sua
vida profissional, que é uma loucura, com criar os filhos? E a gente diz assim:
caramba, será que o seu dia tem 48h? E o meu só tem 24h?
FC.
– O que importa é que os filhos estejam sempre bem!
M.
– Pois, é isso! Eu acho incrível!
FC.
– Porque o meu pai também é uma pessoa que se esfarrapou muito… foi uma pessoa
que trabalhou muito e ainda continua a trabalhar com a idade que tem.
M.
– E muito.
FC.
– E muito! E isso é que é preciso sublinhar porque eu, olhando para a minha
infância, olhando para a minha adolescência, o meu pai estava ausente, porque
estava no internato do S. António, porque ao fim de semana tinha de ir para
Moncorvo. Os consultórios estavam abertos até às 10, 11 da noite e eu já estava
na cama, mas havia problemas para resolver, havia…
Quando
se abraça esta profissão, a gente não tem horários e é aquilo que eu muitas
vezes digo… Ainda ontem operei um rapaz à miopia e a mãe, “como é que faz com a
marcação?” – “Não se preocupe que eu vou-lhe ligar!”, -“A sério, vai-me
ligar?”, -“Vou-lhe ligar.” Porque é a minha obrigação, é o meu dever saber como
é que estão as coisas e se há problemas…
Lembro-me,
no meu 2.º ano de especialidade. O meu pai liga-me. Eu estava no Porto. –
“Estou, Fernando? Passa-se isto: um doente veio de Angola e está com um pedaço
de aço metido no olho há duas semanas. Está com uma endoftalmite, está com um
escoamento da retina e isto é para operar. Vais tu e o Dr. Eduardo Conde.”
M.
– Foi quem operou o Marcolino.
FC.
– O Eduardo Conde… Fomos lá… Entrámos no bloco da Ordem de S. Francisco às
11:30 da noite e saímos da Ordem às quatro da manhã e às seis da manhã fomos
para os EUA os dois.
M.
– Realmente! E ficou bem?
FC.
– Ficou bem. Claro que o olho já estava totalmente destruído com a infecção,
mas com silicone conseguimos manter o olho para que não entrasse em atrofia… É
preciso fazer sacrifícios. É preciso ter uma mente aberta e eu, isso, bebo do
meu pai.
M.
- Sim. Sempre foi um lutador, pelo que eu conheço. Ora, a sua prática clínica é
muito movimentada. Desenvolve-a em diversas instituições. Quais são as
principais dificuldades com que lida no dia a dia, se é que elas existem?
FC.
– Existem muitas. Por exemplo, eu estava a trabalhar no Hospital de Braga.
Ainda fui para lá com a parceria público-privada e abandonei porque aquilo está
muito burocrático e o SNS está a enfrentar problemas diferentes e eu, por
exemplo, tive um curso nos EUA sobre gestão na saúde e também vejo que os
privados estão com muitos problemas sérios e acho que o problema é não ouvir a
comunidade médica, a comunidade de saúde, nomeadamente enfermeiros… As pessoas
têm de saber como é que isto funciona, tem que se ouvir o doente porque isto
tem de funcionar de uma forma fluída, não pode haver gargalos.
M.
– Pois não, mas há muitos.
FC.
– Há muitos gargalos… os americanos chamam-lhes os “bottlenecks” e isso
contribui para que a experiência, tanto no público, como no privado, tanto para
o doente, como para o profissional de saúde seja agradável. Eu quero trabalhar
e não estou para me chatear com papelada… Eu quero trabalhar, quero que a
pessoa venha, se sente… e aquela barulheira toda que vemos nos hospitais é
transversal no nosso país. Isso é o que me perturba mais. Eu não sou político e
nem tenho pretensões de ser… de enveredar por esse caminho, mas acho que a
Ordem dos Médicos, e mesmo outras instituições ligadas à saúde, têm de se
preocupar mais… se não isto nunca mais… a gente nunca mais vai conseguir tratar
os doentes de uma forma adequada.
M.
– É exatamente isso que eu penso. Eu vou ao meu médico e digo o que preciso e
ele no computador. Nem sequer vê as tensões, nem sequer me ausculta o coração…
Ele escreve o que eu peço, “Olhe, doutor, eu preciso disto” e ele passa. As
minhas consultas são assim. Eu não sei como são as dos outros, mas que é muito…
FC.
– Impessoal! A empatia é muito importante na profissão médica e acho que
estamos a perder certos valores… mas isto não é só em Portugal, também acontece
em qualquer lugar do mundo. Daqui a vinte dias tenho colegas peruanos cá.
Trabalham em Cuscos e convidaram-me para ir lá fazer cirurgia para o ano que
vem. Eles estão só no privado. O SNS em Portugal é uma das melhores riquezas
que nós temos!
M.
– Então não é? Sem dúvida!
FC.
– E acho que as pessoas, os portugueses, os políticos… e a questão da
comunidade médica, científica, da saúde em geral… as pessoas têm que perceber
que têm um legado muito grande e tem de ser preservado. Eu vejo, por exemplo,
na Dinamarca. A gente paga os impostos e tem um SNS impecável, um sistema
educacional impecável. Nós aqui estamos com vários problemas…
M.
– E não vemos a luz ao fundo do túnel…
FC.
– Não, porque, por exemplo, há situações como são as questões das listas de
espera, material, por exemplo, doentes chumbados por falta de material e depois
quando estamos a falar de áreas oncológicas ou áreas de doenças metabólicas ou
doenças raras, mas mais as doenças oncológicas em que há listas de espera de
meses… não pode haver falhas no SNS.
M.
- Pois não, mas, infelizmente, há.
FC.
– Infelizmente há!
M.
– Precisamos de muitos professores doutores “Fernando Faria Correia” para ver
se isto melhora… mas é difícil encontrar muitos assim.
FC.
– Obrigado!
M.
– Tem mais de cem trabalhos científicos. Mais de cem, incluindo artigos,
capítulos de livros e resumos em reuniões de sociedades científicas e, para
além disso, ensina, porque é instrutor de vários cursos e é orador convidado em
conferências pelo mundo inteiro. Eu pergunto: como é que consegue conciliar
isso tudo, mais a clinica, mais a família, mais tudo o que faz?
FC.
– Vou-lhe contar. Quando fui ao Egito em janeiro de 2016, acho eu, até fui com
o Rafael Barraquer, eu e ele convidados.
M.
– Barraquer? O Marcolino foi várias vezes visto por ele.
FC.
– Em Barcelona?
M.
– Em Barcelona.
FC.
– Fui com ele. Eu ia no avião…fui no voo da Lufthansa, saí do Sá Carneiro e
encontrei um ortopedista meu amigo, o Francisco Serdoura, “Para onde é que vais?”
– “Vou para o Cairo.”, - “E eu para Atenas. Então ainda vamos tomar um
cafezinho.” E ainda fomos ver umas maluqueiras de carros que ele… o táxi à
nossa espera, depois comemos e bebemos e eu chego ao avião, abro e vejo que as
cinco palestras que eu tinha estavam todas em ordem. Adormeço. No meio do avião
sou acordado pelo vizinho do lado. Estava uma pessoa em paragem
cardiorrespiratória. Só estou eu e um enfermeiro. A pessoa em causa era uma
pessoa acidentada, tetraplégica, canadense, e foi a pior experiência de
impotência na minha vida. Nessas viagens, vamos descansados para dar umas
palestras e acontecem estes imprevistos. Tivemos de aterrar de emergência em
Atenas. Chegar ao Cairo. Apresentações. Vir. Depois o Cairo (não sei se sabe
como é: são cinco horas desde o aeroporto até ao hotel), fazer cinco
apresentações em menos de 30h e depois vir outra vez. Cheguei ao aeroporto e
fui para Santa Leocádia para uma festa de anos de um amigo meu, ali ao pé do
Pinhão, portanto, a gente tem de estar presente em tudo. Está a entender?
M.
– Tem uma grande capacidade de presença, sem dúvida!
FC.
– Aquilo que dizia o meu professor brasileiro: dar 100% a tudo. A questão é que,
às vezes, pode meter confusão a muita gente. Eu gosto muito de estar sozinho,
gosto de… pensar na minha vida porque depois quando estou nestas alturas,
sinto-me focado, mas se me perguntar, “100 trabalhos?” – se calhar já tenho
mais. Já nem os conto.
M.
– Pois!
FC.
– Em alguns já estou em 4.º lugar… tudo porquê? Porque são internos. Depois a
gente também tem que saber… Quando vêm atrás de nós, temos que ajudar.
M.
– Claro.
FC.
– Já tenho amigos que estão a começar a fazer o doutoramento que vão ajudar… mas
o que importa é que a gente esteja sempre ligado a alguém.
M.
– Sim, sim.
FC.
– E dá tempo para tudo. A gente tem é que ter uma grande capacidade
organizativa. Aí quem tem culpa é a minha mãe. A minha mãe, que é economista… ela…
M
– Ela organiza.
FC.
– Não. A minha mãe tem uma capacidade de organização brutal e isso herdei dela.
E acho que isso também é da vertente do meu avô Tozé que era uma pessoa muito
organizada nas coisas e acho que eu sou assim… quer dizer, quando era pequeno,
adolescente, saía à noite, havia testes, estudava, mas depois também ia para a
boa vida, mas havia uma coisa que era disciplina… e havia uma coisa que era
organização.
M.
– Disciplina e responsabilidade.
FC.
– Responsabilização nas coisas.
M.
– Claro, sem dúvida nenhuma. Isso também tive a minha dose de responsabilização
e acho que os pais que são pais responsabilizam.
FC.
– Pois.
M.
– A evolução científico-tecnológica na oftalmologia tem sido muitíssimo
significativa. Até onde poderá chegar essa evolução? Podemos falar, e aqui peço
desculpa pela minha ignorância, podemos falar em transplantes de olhos? Será o
fim da cegueira?
FC.
– É uma pergunta ratoeira porque nós por causa da cegueira temos várias
doenças. Nós temos doenças nas diferentes lentes do olho, o nosso olho tem duas
lentes: uma que é a córnea, que é esta lente à frente da menina da vista, temos
uma atrás da menina da vista que é o cristalino, que é onde vamos ter a
catarata e temos depois a retina e na retina, escoamentos de retina… a retina é
o rolo da câmara, é a parte mais sensível. E a retina é a parte em que talvez
as células estaminais poderão funcionar melhor… a terapia génica. Nós até agora
na revista de Oftalmologia, o João Pedro Marques, de Coimbra, fez lá um
editorial só a terapia génica para um doente… que é uma doença hereditária. E
agora falo de outra coisa: e a impressão 3D? Por exemplo a estrutura, que nós
temos à frente do olho, a córnea, é uma estrutura transparente, avascular como
uma lente e… pode ser transplantada, portanto, já há estudos que estão a
avançar nesse aspeto. É uma causa de cegueira. Portanto, acho que temos a
questão da cegueira na córnea que pode ser tratada mais facilmente por causa da
impressão 3D. A parte da retina depende muito da patologia – se é genética
temos terapias genéticas. No futuro há que descobrir qual é que é o gene que
está em causa e fazer o… silenciamento ou ativar esse gene através das terapias
genéticas. Se são células que estão em falta, por exemplo, as que morreram por
causa de uma trombose, por causa de um escoamento de retina, podemos usar talvez
um tratamento diferencial, instalar o tronco… Podemos estar aí nessa fase em
que a gente…
M.
– Tenho em casa quem já sofreu muito com isso e neste momento não vê nada. E
sempre à espera de que alguma coisa possa acontecer. Sei que no caso do
Marcolino, muito provavelmente, já não vem a tempo, mas o futuro a Deus pertence
e a nós resta-nos esperar…
FC.
– Veja a questão do olho biónico… ainda agora é retratado no último filme do
007. O olho biónico é uma tecnologia que assusta. O último filme do 007, mesmo
em termos de armamento químico direcionado para os genes que cada um manifesta,
que cada um tem no sangue, e mesmo a questão do olho biónico, isso assusta
porque, por exemplo, quando fui a Charleston, na Carolina do Sul, essa
universidade tinha feito o 1.º transplante do olho biónico.
M.
– Ah, é? E correu bem? Funcionou?
FC.
– É o seguinte … é a perspetiva de cada um de nós.
M.
– Claro. Bem, o futuro…
FC.
– A Deus pertence!
M.
– Ora, e para além disto tudo de que já falámos e que foi uma ínfima parte do
que faz, ainda tem tempo para ser editor
chefe da revista Oftalmologia da sociedade Portuguesa de Oftalmologia…
FC.
– Isso foi o convite endereçado pelo presidente da SPO, o Professor Rufino
Silva de Coimbra, que abracei com muito gosto, e ainda esta semana tive reunião
com ele que me disse, “Tu ainda não te mandaste de uma ponte abaixo?” Porque
aquilo é um trabalho muito ingrato. É um trabalho muito ingrato porque
apanhámos a revista num estado comatoso, praticamente, e era aquilo que eu lhe
dizia – hoje os médicos internos do serviço de oftalmologia estão apinhados,
estão cheios de trabalho e é preciso ter uma capacidade organizativa… para
tratar bases de dados, ficheiros Excel… chegar a casa, analisar os ficheiros
Excel e escrever e isso os internos, são gente nova que querem ir jantar fora,
querem ter vida social, como toda a gente, como eu também tive e é preciso ter
espírito de sacrifício. E as pessoas não têm hoje. Hoje o paradigma do SNS,
relativamente aos médicos internos, que não têm uma vaga onde vão ficar a trabalhar
no futuro, já não estão tão preocupados com a produção científica e de
indexação…estamos a trabalhar nisso, mas dá muito trabalho. Dá muito trabalho.
Temos de cativar as pessoas certas para escrever. Eu também escrevo. Mas podia
escrever para uma revista indexada.
M.
– Eu li um editorial seu.
FC.
– Sim, mas podia estar a escrever… mas também escrevo para lá. Basicamente é
isso.
M.
– Pois. Continuo a achar que o seu dia tem 48h! Como médico, quais foram as
maiores dificuldades que teve de enfrentar com a pandemia?
FC.
– Tenho uma cicatriz aqui na face…
M.
– E como é que a fez?
FC.
– A ver doentes COVID com aquelas máscaras horríveis no Hospital de Braga. É
uma…
M.
– Sim, já vi! E ficou mesmo.
FC.
– Essa é uma cicatriz que eu guardo da pandemia.
M.
– Realmente, vocês passaram por muito, muitíssimo, mesmo. Nós, os leigos nem
sequer desconfiamos. Mas valeu a pena ao menos?
FC.
– Valeu a pena.
M.
– Já é alguma coisa, não é? Ora, enquanto transmontano, o que, em sua opinião
deveria ser feito para impedir a desertificação do interior?
FC.
– Já devia ter sido feito há muito mais tempo, se calhar. Isto é o seguinte:
Portugal tem um problema enorme e agora com o preço dos combustíveis a subir… Onde
estão as ferrovias? Onde estão os caminhos de ferro? Não temos! Nós temos aqui
o melhor instituto politécnico do país e temos que dar graças às pessoas que se
envolveram sempre neste projeto porque dinamizaram a região e a cidade. Temos
também de dar os parabéns aos presidentes da câmara que tivemos porque desde o
programa Polis até hoje ao presidente eleito, o Dr. Hernâni, isto…a cidade está
muito agradável; é uma cidade muito agradável de se viver, tomara eu ter esta
qualidade de vida no Porto. O que é que é preciso? É arranjar forma de cativar
as pessoas cá. Pessoas jovens. O que é que querem as pessoas jovens? Querem é
ter formas de lazer… produtos, dar a conhecer e acho que há aqui…
M.
– E um salário condizente com as necessidades.
FC.
– Isso… se for falar com as pessoas, hoje os salários são o grande problema do
nosso país, o salário e não só – é o poder de compra. E o poder de compra já. Isto,
com a pandemia fez reacender aqui algumas coisas por causa do teletrabalho e o
teletrabalho até poderá ser uma questão importante agora para o futuro. Porquê?
Porque uma pessoa que ganhe 800/900 euros no Porto, que é que faz da vida?
Nada!
M.
– Não vive.
FC.
– Aqui ainda consegue viver. Está a compreender? É aquilo que eu digo muitas
vezes: é certamente da maneira como isto está hoje, os produtos, as
matérias-primas estão a subir de preço. É desde o bacalhau até o leite, a
carne, os ovos…
M.
– Pão.
FC.
– Tudo. A comida vai subir. Os combustíveis estão a subir… As pessoas começam a
pensar… se calhar, famílias jovens começam a pensar, “Eu tenho trabalho em
Bragança”… Eu tenho uma amiga, que é minha doente, que é de Santa Marta de
Penaguião, que veio cá à clinica de Bragança com uma úlcera da córnea. É
advogada. Trabalhou em Lisboa. Foi para Santa Marta de Penaguião, Lamego
trabalhar e tem muito trabalho! “Agora, vou, não gasto praticamente dinheiro em
combustível”…
M.
– Justamente.
FC.
– “Tenho hipermercado, tenho tudo. Estou a 1h do Porto”… e a gente, aqui em
Portugal, aqui no interior, não é só em Bragança. Acho que há cidades no
interior que se estão a desenvolver graças muito à questão das CM, institutos
politécnicos. Então, aqui no de Bragança há que sublinhar que fizeram um
trabalho excelente. Devemos dar os parabéns e acho que é isso que vai permitir
que muita gente se fixe aqui no interior. Agora, temos questões políticas
também para analisar, desde a ferrovia. Por exemplo, uma pessoa… Vou-lhe dar o
exemplo do túnel do Marão. Quantas pessoas eu conheço da minha classe médica
que vivem no Porto e que vão trabalhar a Vila Real? Muitas!
M.
– Muitas?
FC.
– Muitas!
M.
– Agora se nós tivermos… Temos aqui uma estão de TGV.
FC.
– Eu sei, na Ponferrada.
M.
– Se nós tivéssemos um comboio, em quanto tempo nos púnhamos daqui ao Porto?
FC.
– Em 75 minutos se tivéssemos um comboio desses.
M.
– E realmente também não consigo, não consigo entender por mais esforços que
faça, portanto, este desapego… Bragança é tão longe… deixá-los lá, os
pobrezinhos, não é? O Marcolino diz que faltam eleitores. Como há poucos
eleitores, então, não vale a pena. É a cruzinha! Vamos lá ver se nós, eu já
não, mas os jovens, se conseguem mudar alguma coisa.
FC.
– Não me vou candidatar à câmara, deixe estar!
M.
– Não, não está muito bem!
FC.
– Nunca se sabe.
M.
– Sim, o futuro…
FC.
– Só a Deus pertence!
M.
– Só já tenho mais uma pergunta! Gostava de saber se quer dizer mais alguma
coisa sobre a sua profissão ou sobre o que entende da vida.
FC.
– O que entendo da vida é muito complicado. Eu já lhe disse que eu há… poucos
aspetos que a gente tem para se reger na vida. Para já, temos de ter objetivos,
temos de ter um foco, temos de ter concentração e é assim que a gente consegue
atingir as metas. Se nós, depois atingirmos as metas, quisermos mais, é bom
porque somos ambiciosos. É claro que essa ambição tem de ter sempre algum
limite, mas é bom que seja sempre apimentada de vez em quando. Eu, por exemplo,
poderei estar um bocadinho parado agora por causa de ser editor chefe da revista
da SPO, mas as pessoas sabem quem é que eu sou lá fora, está a entender?
M.
– Sim, sim.
FC.
– Como lhe disse, para a semana, vou, vamos, eu e o meu pai vamos a Nova
Orleães receber esse reconhecimento da Academia Americana de Oftalmologia que é
a comunidade científica mais prestigiada do mundo da oftalmologia.
M.
– Que maravilha!
FC.
– E depois vou ao Dubai dar mais uma formaçãozinha de córnea, de lentes
fáquicas para correção de miopia. Isto só para lhe dizer que a ambição não tem
limites, mas tem que ser apimentada de vez em quando para não ficarmos também
obsessivos e às vezes é preciso refugiar na solidão para meditar e perceber
aquilo que foi mau.
M.
– Só assim é que nos reencontramos.
FC.
– Só assim é que nos encontramos. Eu, como transmontano, sabe onde é que eu
consigo meditar bem? Aqui em Trás-os-Montes, no “Reino Maravilhoso”!
M.
– Sim, do Miguel Torga! Agora, a última pergunta. Que personalidade ou
personalidades mais o marcaram na sua ainda jovem vida?
FC.
– Aqui na minha vida?
M.
– Sim, de uma forma geral.
FC.
– O meu avô, Tozé… os meus avós. Eu chamo-me Fernando António por causa de…
claro que tive uma ligação maior ao meu avô Tozé… ao meu pai e depois havia
sempre aqui uma ou outra personalidade que de pequeno sempre me ligou bastante.
Uma delas foi a minha mãe. A minha mãe sempre esteve disponível e… foi uma
pessoa que, já lhe disse, deu-me aquele espírito metódico e de organização que
acho que hoje só consigo ter esses valores, porque leu, de artigos científicos
a tudo, graças à forma como ela me treinou a minha cabeça para ser organizado.
Relativamente a professores… eu devo muito aos meus professores porque eu
também não era pera fácil e a minha turma… Éramos sempre uns traquinas. Havia
sempre gente muito interessante e eu tenho ainda contacto com os meus amigos da
adolescência. Ainda na semana passada fui jantar fora com um colega do
secundário, aqui do ciclo e do secundário que é médico dentista. Portanto,
fomos à casa Guedes, no Porto, comer umas sandes de pernil. Portanto, os nossos
professores aqui tiveram muita paciência para nos formar e acho que também lhes
devemos agradecer os ensinamentos, a paciência e o caminho que nos orientaram.
Portanto, como pode ver, é a família, a escola, as Freirinhas (que eu também
andei nas Freirinhas)…
M.
- Ai, sim?
FC.
– Sim. Eu tinha a Irmã Balsemão, a Irmã Estela, a Irmã Elisabete que… mas os
professores que nos ensinam, são muito importantes, e a sociedade…
M.
– Muito bem! Muito obrigado! Eu acho…
FC.
– Muito obrigado, eu!
M.
– Foi mais do que eu estava à espera. Não na sua competência, porque isso não
está em causa, nunca, e na sua sabedoria também não e no seu saber fazer… e na
sua grandeza que tem, mas por esse aspeto mais familiar, mais íntimo… do seu
íntimo. E, por acaso, fiquei muito agradada…
FC.
– Obrigado!
M.
– Nós é que temos de agradecer e dizer – vá em frente, continue assim e dê o
Fernando ao mundo sem descurar Portugal!
FC.
– Ah, não! Isto calma! Vou ficar sempre por aqui.
M.
– Obrigado!
Entrevista realizada ao Professor Doutor Adriano Moreira, em Bragança, 19 de Outubro de 2019.
88.ª Entrevista - Professor Doutor Adriano Moreira
Entrevistadoras
(Entrv.): “Quando
olho para trás, a memória mais antiga que tenho é a de estar sentado numa
pedra, no Bairro de Campolide, e haver, à minha frente, um charco e eu a pensar
como é que se podia viver naquele meio, naquela pobreza. É a primeira e mais
antiga recordação que tenho. Devia ter quatro ou cinco anos, por aí.”
Senhor
Professor, é impressionante que, com tão tenra idade, se tenha apercebido das
condições tão ingratas em que vivia e que tenha tomado consciência disso. Quer
comentar?
Prof. Doutor
Adriano Moreira (Prof. Doutor A.M.):
Sabe que, a experiência é existência, e nós todos somos, como dizia o Ortega,
históricos, fazemo-nos…, e a circunstância varia e nós enfrentamo-la e eu, de
facto tinha… apesar de ter uma vida pobre, (nós éramos pobres), tinha conforto,
que a maior parte dos garotos não tinha, e isto porque a minha mãe também era
diferente…
Entrv.:
A sua mãe era costureira…
Prof. Doutor A.M.: Era, mas o pai dela era uma pessoa muito informada. Vivia na aldeia de Grijó,
mas tinha vivido no Brasil. Ela, por exemplo, sabia o João de Deus de cor, o
Guerra Junqueiro de cor porque o pai a animava e portanto já tinha outra visão da
vida e isso explica também como é que, com tantas dificuldades, já percebessem
o que hoje se chama “elevador social” e que, (e eu acho isto heróico), os dois
filhos tinham de tirar curso superior
Entrv.:
Naquele tempo… e dadas as circunstâncias…
Prof. Doutor A.M.:
E conseguimos! A
minha irmã já está com oitenta e tal anos. É médica e tem um doente com o qual
ela se preocupa… É comigo! E lá aparece. E, portanto, eu via aquelas crianças
que não tinham uma casa onde recebessem os cuidados que eu recebi. A diferença
estava na minha formação. E foi por isso que percebi.
Entrv.: O avô do
Senhor Professor foi uma referência no seu crescimento literário e social?
Prof. Doutor A.M.: Foi. Esse meu avô era
extraordinário. Era o pai da minha mãe e tinha uma casa melhor do que a do meu
avô paterno, que eu não conheci, e tinha uma pedra a servir de banco cá fora. Eu
devo dizer que essa pedra está lá em Lisboa na minha casa porque a junta
autónoma das estradas tirou a pedra para corrigir a rua e eu quis a pedra, e
portanto está lá e tem em cima uma inscriçãozinha que diz: “Banco do avô
Valentim”. Era onde ele lia o jornal. Ele tinha tomado, parte muito jovem, com
18 anos talvez, ou menos…, numa espécie de levantamento por causa de impostos teve
de sair do país… e foi assim que ele foi para o Brasil - que era para onde iam
os portugueses -, e lá esteve, uns dois anos, jovem. Não sei porquê, porque
acontece em tantas ocasiões, não apenas às pessoas, mas também aos movimentos,
adotam flores. Ele usava sempre um cravo e, quando não havia cravos, uma folha!
Era assim! E, portanto, já tinha uns livros, alguns extraordinários: tinha um
livro sobre Nietzsche, tinha um livro sobre a segurança internacional, etc.. Eu
herdei esses livros num caixotinho que agora estão cá na biblioteca de Bragança.
Eram um tesouro para ele.
Entrv.:
Desculpe, mas esse caixotinho era toda a biblioteca, todo o espólio do avô do
senhor Professor.
Prof. Doutor A.M.: Era.
Entrv.: Que ele
guardava como verdadeiras relíquias…
Prof. Doutor A.M.: Era um tesouro para ele. Ora bem,
e, portanto, a minha mãe foi educada por ele e, por isso, é que ela tinha
aquela sensibilidade.
Entrev.: E por isso
essa visão do mundo.
Prof. Doutor A.M.: E para além disso, ela era muito
inteligente. Começou a fazer costura em Lisboa para ajudar a família. Para
verem o que era a vida naquele tempo, quando eu me formei, fiz o estágio, e fui
para o Ministério da Justiça onde consegui um lugar: ganhava três vezes mais do
que o meu pai,
Entrev.:
O seu pai era polícia…
Prof. Doutor A.M.: E morreu subchefe ajudante. Eu
estive à despedida dele dos seus subordinados. Fez um tão bom discurso que eu
pensei assim: “louvada faculdade!”
Entrv.: Só uma
curiosidade, senhor Professor, se me permite…De entre o espólio literário do
avô fazia parte Guerra Junqueiro…
Prof. Doutor A.M.: Fazia. O Guerra Junqueiro era
muito popular.
Entrv.: O avô era
contemporâneo de Guerra Junqueiro. Ele faleceu em 1923 e o senhor Professor
nasceu em 1922…
Prof. Doutor A.M.: Mas não diga!
Entrv.: Ah, essas coisas não se dizem!
Prof. Doutor A.M.: Depois eu ainda tive mais razões
para me interessar por Guerra Junqueiro porque uma das pessoas que teve mais
importância na minha formação e vida pública, foi o Almirante Sarmento
Rodrigues que era casado com a descente do Guerra Junqueiro e foi ele que
presidiou às cerimónias do centenário, - o que naquele tempo, naquele regime,
era preciso ser transmontano porque ele era marinheiro e recebia ordens: mas, o
Guerra Junqueiro era da família da sua mulher e fez uma bela celebração do
Guerra Junqueiro. Portanto, foi assim neste ambiente familiar que cresci naquele
bairro de Campolide… Naquele tempo Lisboa tinha muitos bairros, eu atualmente
acho que só já há uma região que é bairro…o resto é Lisboa, mas ali era bairro
e na esquina do beco, onde vivia, havia uma casa melhor, e uma senhora que
tinha uma bibliotecazinha e era, salvo erro, tia de um dos marinheiros do barco
que foi afundado na guerra de 14, comandado por Augusto de Castilho, que tem
uma estátua em Vila Real, afundou-se salvando um barco português. E essa
senhora, entre outras coisas, por exemplo, tinha a coleção do Júlio Verne! Umas
encadernações fantásticas, ela emprestava-me cada volume… e eu tinha um cuidado
enorme. Li a coleção toda.
Entrv.:
Grande vizinha também lhe digo…
Prof. Doutor A.M.: Tinha outros livros que também me
emprestava. E gostava muito de conversar com miúdos e criei lá alguns amigos para
a vida… depois fiz a instrução primária num colégio que havia lá… não do Estado.
Mas era aquilo tão pobre… eu ainda me recordo que custava por mês vinte
escudos.
Entrv.: Era
dinheiro…
Prof. Doutor A.M.: Era dinheiro naquele tempo…E a
senhora tinha um filho doente epilético, mas era uma grande professora. Depois
fui para o Passos Manuel e, agora, tenho de pensar o seguinte: quando eu fui
para o Passos Manuel tinha 9 para 10 anos, fiz exame muito cedo, e tinha de ir
de Campolide para o Passos Manuel a pé.
Entrv.: Mas não era
de castigo?
Prof. Doutor A.M.: Não… não! Fazia ginástica, e acontecia
que, quando voltava é que custava mais porque era sempre a subir! Lá fiz o
curso ginasticado. Depois fui para a Faculdade de Direito que era no Campo de
Santana. Não havia transporte, nem dinheiro para pagar, portanto passei cinco
anos a pé, a ir e a vir. E era fácil aquilo. Nessa altura, comecei a pensar que
tinha de apoiar a minha irmã que era mais nova… ela fez um bom curso. Depois,
estes dois transmontanos, eu e ela, havíamos de nos ligar ao Ultramar porque
ela foi médica para Lourenço Marques, casou com um oficial da Força Aérea, médico
também, e depois tive de andar envolvido naquelas guerras, de maneira que somos
africanos regressados.
Entrv.: Senhor
Professor, usa muitas vezes a expressão, “a maneira portuguesa de estar no
mundo”. De que forma é diferente da maneira transmontana de estar no mundo?
Prof.
Doutor A.M.: Eu a transmontanos julgava que não tinha de explicar!...
Entrv.: Pois, mas
desta vez terá de explicar…Nós queremos ouvi-lo e transcrever o que nos disser…
Prof. Doutor A.M.: Há uma coisa que eu acho importantíssima
nos transmontanos. Primeiro, são solidários. Olhe, quando nós fomos viver para
Lisboa, eu vinha passar as férias aqui com o meu avô, sempre. Naquele tempo eram
três meses, e para chegar cá era duro. Apanhava-se um comboio aí pelas oito horas
à noite e chegava-se à estação de Grijó no dia seguinte, por volta das sete e
meia da tarde. Chegava a Grijó, que ainda era longe, a cavalo num burro que
estava lá à minha espera e lá ia eu… E então ficava em Grijó e era felicíssimo
aqueles três meses. Tinha um primo, o Alexandre, que era como se fosse meu
irmão. Já morreu há bastantes anos. Era tão bom… conhecíamos tudo, andávamos
por todos os lados. O meu avô tinha uma propriedadezinha para aí com um hectare,
mas era à beira de um ribeiro e a gente ia lá, tomava banho no ribeiro, corria
com as cobras d´água, enfim… era uma vida…
Entrv.: Esses três
meses eram fundamentais para recuperar energias… e para recarregar baterias.
Prof. Doutor A.M.: Era! E depois ainda me lembro
sempre de amigos do tempo do meu pai e que ali estavam reformados. Lembro-me,
por exemplo, de um, o chamado Zé Fiscal porque ele tinha sido guarda-fiscal.
Quando eu comecei a ser conhecido, ele cada coisa que via no jornal, cortava e
trazia no bolso, e quando eu chegava mostrava-me. Um grande amigo. E havia
outros… O Zé Peras, que trabalhava na agricultura da família dos Mirandas, e
uma jovem, hoje senhora, que foi fazer um curso de enfermagem em Lisboa na
escola Rockfeller, conviveu os três anos connosco, é uma amiga, sobretudo da
minha irmã, porque é mesmo da idade dela. A querida Lucília.
Eu
vou amanhã a Grijó a uma festa que eles me vão fazer. Mas há pouco tempo, foi
no dia 6 de setembro, dia dos meus anos, imagine o que eles fizeram: com as
técnicas atuais, arranjaram maneira de ligar uma emissão de imagem para a minha
televisão, em Lisboa.
E
eu em Lisboa, sentado numa cadeirinha, com os 14 netos à volta, (estão sempre),…
vem aquilo de repente… a aldeia toda junta a cantar-me os parabéns e ela, Lucília,
fez um poema… e leu o poema! Fantástico! Então, eu amanhã tenho que lá ir
porque eu fiz também uma bibliotecazinha para eles, como pediram. E querem
inaugurá-la. E querem que seja domingo porque os padres só estão livres no
domingo àquela hora.
Aquela
aldeia mereceu-me sempre grandes cuidados. Conforme fui podendo, por exemplo, conseguir
por lá a eletricidade, que ia daqui das barragens… passava pela aldeia, e lá
andavam de candeia. Consegui que pusessem lá a eletricidade. Também consegui o
esgoto, uma segunda escola e o coreto da festa. De maneira que, o largo do
coreto chama-se Adriano Moreira, a biblioteca chama-se Adriano Moreira.
Entrv.: É uma
homenagem justa!
Prof. Doutor A.M.: Porque
me inquietou, foi a falta de crianças…
Entrv.: Pois, não,
infelizmente.
Prof. Doutor A.M.: No meu tempo havia tantas…
Entrv.: E a capela
da sua mãe?
Prof. Doutor A.M.: Essa capela tem uma origem
interessante. A santa protetora da nossa aldeia é Santa Madalena, mas a festa é
ao Senhor do Calvário. E, portanto, a capela do Senhor do Calvário era fora da
aldeia… agora já lá chega a aldeia. Era uma colina, tinha umas rochas e eu
lembro-me que com o meu primo gostávamos de nos encavalitar nas rochas a ver o pôr-do-sol.
Lembro-me disto… íamos para ali para o Santo Cristo… Depois houve, consta, um
empreiteiro que precisou de amanhar a estrada e lembrou-se de, com dinamite,
tirar as pedras e a capela ficou, claro, toda atingida. A minha mãe, que era
muito crente, estava sempre muito aflita com a capela. Eu já era um bocadinho
crescido quando isso aconteceu, já formado, era Ministro do Interior, um
transmontano, o Dr. Trigo Negreiros, e era Ministro da Marinha outro
transmontano, que era o almirante Sarmento Rodrigues. O Almirante Sarmento
Rodrigues que, também era transmontano, eu já andava a dar aulas, mandou-me
chamar e pediu-me para ir estudar o sistema prisional do Ultramar. Nesse tempo dedicava-me
a isso: o direito prisional. E, então, corri as províncias todas de África, e
sinto pena porque nunca tive a ocasião de ir a Timor. Fiz o livro. Desse livro
saiu a reforma prisional Sarmento Rodrigues do Ultramar. Como eu tinha dito no
estudo, a condenação à prisão é sempre destinada à reabilitação. Reabilitação,
que tem sempre a tal circunstância, a cultura a que a pessoa pertence. E,
portanto, não podemos ter as estruturas técnicas, que são europeias, para
África. Defendi fazer um regime puramente de “colónias agrícolas”, prevendo até
a reunião das famílias: os europeus, tão poucos, viriam para cá. Com o livro ganhei
o prémio da Academia das Ciências. E esse prémio, na altura, era 80 contos.
Entrv.: Era
significativo…sem dúvida…
Prof. Doutor A.M.: Para o meu pai era o ordenado de
dois anos ou três. E, então, o que é que eu fiz? Peguei no dinheiro do prémio e
dei-o à minha mãe: “Pode concertar a nossa capela!” Um amigo meu fez o projeto.
Era o arquiteto Mário de Oliveira… morreu em Trás-os-Montes, em Vila Real
porque, ele não era transmontano, mas veio para cá trabalhar.
Entrv.: E acabou
por ficar…
Prof. Doutor A.M.: Portanto fizeram a Capela, ficou
linda e ele fez o projeto, não levou dinheiro, mas faltava a estrada! Fui ao Dr.
Trigo Negreiros, transmontano, e contei-lhe da Capela: “Isto está feito. Está
uma beleza, mas depois há a procissão todos os anos, e as mulheres vão ajoelhar-se,
e a estrada é uma coisa difícil e penosa”, - “Está bem, e então o que é que
quer?”, - “Quero que o senhor faça a estrada!” E fez!
De
maneira que a Capela tem um grande culto. A última vez que eu lá fui eles
mandaram dizer a missa na capela. E amanhã vou lá. Infelizmente com esta crise
em que o país está, consegui a segunda escola e estão as duas fechadas. As
duas. O presidente da junta vive na aldeia, uma família média, transformou o
edifício da primeira escola em biblioteca Adriano Moreia e depois achou natural:
“Agora, mande os livros!”
E
eu tenho mandado bastantes, com uma certa cautela por ser uma aldeia, e a minha
irmã Olívia, sábia, disse-me com o seu ar de médica, “Vê lá se mandas livros
que eles leiam!”
Entrv.: Pois, com
certeza! O senhor Professor é um transmontano radical?
Prof. Doutor A.M.: Sou!
Entrv.: E o que é
ser um transmontano radical?
Prof. Doutor A.M.: Sabe uma coisa? Isso foi muito
benéfico porque escusava de ser radical no resto!
Entrv.: Só pelo
facto de ser transmontano já era radical! Muito bem!
Prof. Doutor A.M.: Era! Ora bem, isto vinha a
propósito, portanto, por que é que eu cheguei… à expressão “maneira portuguesa
de estar no mundo” que, aliás, foi utilizada pelo nosso presidente do júri, Prof.
Braga da Cruz, no último livro que publicou, onde faz um retrato do país
através de correspondências ou ensaios de pessoas vivas! Portanto, são aí umas
quarenta. Tem o livro dele?
Entrv.: Não! Ainda
não o adquiri!
Prof. Doutor A.M.: Mas é um livro extraordinário e
também lá fala de mim! E diz assim, mais ou menos: “caracterizo os esforços da
vida dele, com este problema: a maneira portuguesa de estar no mundo…”
Entrv.: Como é que
o senhor Professor encara a posição de Portugal no mundo, hoje em dia?
Prof. Doutor A.M.: Com muita preocupação porque, não
sei se isto é fácil de explicar para o público, mas é mais ou menos isto que eu
lhes vou dizer…e compreendam que com a II Guerra Mundial, Portugal não entrou
por querer na II guerra Mundial… e aquilo que anda escrito, em regra… e que
procura talvez salvar a face do país… não começa dessa maneira… foi o Ultimato
dos Estados Unidos – precisavam do Arquipélago dos Açores, porque, naquele
tempo, os aviões não tinham capacidade para atravessar o Atlântico com gasolina
e, então, tinham de fazer uma aterragem, e o Presidente do Conselho, o Doutor
Salazar, conseguiu uma coisa extraordinária: os Açores e Portugal, claro,
entravam como associados à defesa ocidental e na guerra, o resto dos
territórios eram neutrais! Eu ainda me lembro (era estudante durante a guerra)
e nós andávamos sempre aflitos a ver se os alemães vinham por aí fora. Eles
chegaram a estar nos Pirenéus.
Bom,
ele acabou até o discurso, dizendo mais ou menos o seguinte, na Assembleia da
República, “Os juristas vão ter muita dificuldade em explicar isto. Mas é
assim.” Quem cobriu essa imposição com palavras mais respeitosas foi a
Inglaterra, dizendo – “Invocamos a Aliança”. Só que se esqueceram de uma coisa:
é que no tal território que não entrava na guerra, ficava Timor. Foi invadido
pelos japoneses e eles mataram, fizeram quase uma destruição da população. Eles
ainda haviam de sofrer outro grave abuso, mas, nesse tempo, foi um desastre. Eu
ainda me lembro do primeiro-oficial português governador, que depois da paz
entrou em Timor. Quando chegou ele tinha uma guarda de honra à espera, gente
toda esfarrapada, mas com a bandeira. Tinham-na enterrado para os japoneses não
poderem destruí-la. Era uma gente muito fiel a Portugal. Ainda este ano tive…
já foi o ano passado… isto passa a correr… eu nunca fui a Timor e não conheço o
Presidente da República atual que já é o terceiro. Ele mandou-me o convite para
eu ir a Timor. Eu disse-lhe: “Não vou porque o médico não deixa. Ele proíbe-me
de andar de avião”. Eu tive um acidente nos pulmões, uma infeção e ele
respondeu: “Traga uma enfermeira!”. E eu respondi: “O médico não está
preocupado com a enfermeira. O médico está preocupado comigo!”
Sabe
o que ele fez? Veio cá o primeiro presidente de Timor para me entregar uma
condecoração. A condecoração chama-se “Condecoração de Timor: “Pelos serviços
prestados a Timor (porque eu defendi-os muito nas Nações Unidas preocupei-me
com os que estiveram refugiados em Lisboa e que sofreram imenso, sobretudo as
mulheres que são sempre vítimas) aos Direitos do Homem e à Humanidade.”
Eu
tenho um neto com quatro anos, bastante doente, que tem o meu nome, e eu disse:
“Eles enganaram-se! É para o Adrianinho!” E dei-lha, para se lembrar de mim
quando crescer
Entrv.: Senhor
professor, creio que vem a propósito eu utilizar uma expressão, uma frase
também do senhor Professor que diz, “Nós tivemos um grande talento para criar
impérios…Nós gostaríamos de ouvir o comentário do senhor Professor.
Prof. Doutor A.M.: A questão é esta: vamos sempre à
circunstância. Ainda este ano foram publicadas traduções de duas histórias de
Portugal feitas por saxónicos. Eu achei interessante. Li as duas. São muito
justos. E ambos concordam em dizer que é um milagre: como é que o mais pequeno
país europeu fez um império?! Ora bem, eu digo: a circunstância.
Tenho
uma grande admiração por D. Dinis porque o que é que ele fez? Primeiro, fez a
Marinha. O primeiro almirante português, creio que foi há dois anos que se
celebraram os 700 anos da nomeação. E o D. Dinis fez isto porquê? Não foi por
causa da religião católica. Foi porque os piratas atacavam a navegação e ele
tinha de organizar a defesa. Fez o pinhal de Leiria para poder fazer os barcos,
as pessoas que tratassem disto tinham de saber – fez a Universidade; conseguiu
a absolvição dos Templários, e criou com eles a Ordem de Cristo, salvando assim
o património. E o que é que aconteceu? Um professor inglês do século XIX disse
uma coisa muito sábia: em geral, não é a nação que faz o estado, é o estado que
faz a nação. E de facto, o efeito geral de estas três coisas, acho eu… atribuo
a isto… ele não pensou, mas com tudo junto acontece que havia nação em 1385
porque a nação é que escolheu o rei. E já não é de herança! É aclamação. Depois
vamos perdendo essa noção mas o rei de Portugal tinha de ser sempre aclamado
pelas cortes. E foi D. Dinis! E foi isto que deu essa audácia, com a sorte que
tivemos com a geração do Infante D. Henrique… é um grupo espantoso que admiramos:
que saber… como é que eles tiveram aquela coragem?
Hoje,
como sabem, cresce uma crítica salientando a escravatura, o resto é o milagre
que historiadores estrangeiros sublinham.
Entrv.: Se
compararmos com as outras escravaturas, a nossa era muito leve.
Prof. Doutor A.M.: Nunca
é leve, mas aqui
há dois anos saiu um livro importante que interessa às universidades. Imagine
que foi uma universidade da América latina que organizou um livro sobre a paz
ibérica. É o ensino de Coimbra, de Évora, de Espanha, (Salamanca), e você
admira-se com gente que está no século XVI a discutir se os reis têm
legitimidade para tomar conta do território de gente que já lá está, se o Papa
tem realmente poder para fazer essas coisas, se a escravatura é legítima, etc.
Isto
é o património imaterial da humanidade… nasceu cá uma grande parte. Foi uma
grande parte: Coimbra e Évora, depois os professores que nós tivemos e os
missionários, para mim o padre mais importante é o Padre António Vieira
Entrv.: O Padre
António Vieira?
Prof. Doutor A.M.: António Vieira! Morreu no Brasil,
velho, chegara a ser preso pela Inquisição, mas depois o Papa deu-lhe imunidade.
E ele já estava velho, talvez tivesse noventa anos, mas continuou a escrever e
avaliar o que se estava a passar.
Ora
bem, Portugal com isto (por isso é que eu comecei por dizer – Portugal, como os
outros países, está sempre ligado às circunstâncias)… as circunstâncias
evoluíram muito porque apareceram as novas potências como agora estão a
aparecer os emergentes. Como sabe o mundo começou a ser ocidentalizado, mas não
éramos só nós, eram todos os outros que apareceram com interesses próprios. É uma
mudança muito firme passar de sozinhos e Espanha para muitos. A balança do
poder começa a ser diferente e por isso nós tivemos períodos de decadências
como foi as duas coroas, de Portugal e de Espanha, etc. Ora, para não ser muito
comprido… vamos ver o que aconteceu durante a minha vida. O que aconteceu foi
em 1.º lugar a guerra – uma coisa espantosa. Quando se fez a paz em 1918, antes
de eu nascer, o general alemão que assinou a paz disse – isto não é paz, é
armistício por vinte anos. Foi dia por dia. Veja bem. II Guerra Mundial. Nós
passámos aqueles problemas, não é verdade? E depois disso, a mudança da atitude
dos europeus foi de aceitar que estava a desaparecer aquilo que lhe atribuíam:
ser “a luz do mundo”. Que deixou de ser, aos poucos. E, Portugal começou,
talvez a se compreender na II Guerra Mundial, que em vez de dominar a
circunstância, a circunstância começava a dominar. E por isso a minha conclusão
neste momento (eu escusava de ter sido tão comprido) é que o país - arranjei
uma palavra feia porque a situação é feia -, é exógeno, quer dizer, é objeto
das consequências de decisões em que não toma parte.
Entrv.: Eu costumo
dizer que nós somos as nossas circunstâncias!
Prof. Doutor A.M.: É a relação com a circunstância.
Eu lembro quando foi do primeiro grande golpe que foi as duas coroas, o nosso
Frei Bartolomeu dos Mártires, que agora é santo… eu acho que ele fez uma coisa
um bocadinho criticável, achando legítimo que viesse o rei de Espanha. Ora bem,
mas outro bispo percebeu a circunstância: não estava de acordo, mas quando lhe
perguntaram, o que respondeu foi – “Ao presente não lhe vejo mais remédio.”
Quem diz isto não está de acordo.
Entrv.: Sei que
ontem foi um dia muito cansativo…
Prof. Doutor A.M.: Foi, mas dormi bem. Mas eu queria
dizer outro aspeto em que o país caiu que eu chamo “exíguo”, porquê? Porque não
tem recursos suficientes, há tempos, para o que tem de fazer. As duas coisas…
aconteceu-nos e não gosto, mas em todo o caso há uma coisa que é a dignidade. E
isto já deve ser da idade… Quando via vir os homens da TROIKA explicar regras aos
nossos ministros, eu perguntava-me: “então nós não temos empregados para falar
com empregados?
Entrv: Justamente.
É verdade.
Prof. Doutor A.M.: Eu sentia-me humilhado como transmontano
e português.
Entrv.: Somos
transmontanos. Eu sou da região de Vinhais e o meu marido nasceu na cidade de
Bragança. Então somos mesmo! Embora eu tenha vivido no Brasil. Fui para lá
pequenina e estive em S. Paulo durante muitos anos até voltar para cá, mas
somos e sinto porque o meu pai e a minha mãe sempre nos incutiram o
trasmontanismo, portanto, nós éramos e somos até ao tutano.
Prof. Doutor A.M.: Veio-me à ideia porque foi a
pergunta que me fez. É que quando fiz estudos em Lisboa, como lhe disse, os
meus amigos e do meu pai eram os transmontanos. Era gente muito modesta, mas
amigos e solidários e vi isso, por exemplo, na guerra de Angola. Eu cheguei a
Angola, não havia segurança. Não havia, ainda. O meu pai tinha acabado de se
reformar e disse-me: “Sem segurança não vais, vou eu”. Foi comigo.
Entrv.: Sim, sim eu
li alguns livros…
Prof. Doutor A.M.: Viu nas fotografias? Estava
sempre no meio. Era um perigo. Mas é o pai transmontano! Em toda a parte que eu
chegava e onde houvesse transmontanos eu estava protegido. Eles cercavam-me…
estavam sempre, sempre. Quer dizer, é uma comunidade que onde estiver é
transmontana.
Entrv.: É verdade,
e eu senti isso no Brasil e senti mesmo muito em S. Paulo.
Prof. Doutor A.M.: É por isso que eu digo que os
transmontanos têm uma maneira de ser de solidariedade que os identifica.
Entrv.: Sem dúvida
que sim. Os descobrimentos portugueses deram novos mundos ao Mundo. Acha
plausível que, Cristóvão de Mendonça, navegador português, tenha chegado à
Austrália em 1522, 250 anos antes da chegada do Capitão James Cook, conforme
teoria defendida por Peter Tricket no seu livro “Para além do capricórnio”? A
ser verdade, a que se terá devido o secretismo dessa descoberta?
Prof. Doutor A.M.: Eu conheço essa questão e a
questão é de facto de resposta duvidosa, as provas são duvidosas…
Entrv.: São circunstanciais…
Prof. Doutor A.M.: São duvidosas. Não ficou nada registado. Eu tenho uma
neta, a Moniquinha, que foi fazer aquele programa, o Erasmus, para a Austrália.
Agora vai ver do que lhe lembrou. Tinha uma amiga, alugaram um automóvel e
deram a volta à ilha toda. Chamei-lhes malucas porque foi um perigo, mas
disse-lhe: “Olha quem descobriu a Austrália foste tu”.
Entrv.:
É verdade! Senhor professor, palavras suas: “Estes políticos afirmam que só há
uma via! E, sobre isso, eu digo: “Nunca há apenas uma via única”.” E os
partidos políticos em Portugal e no Mundo, Senhor Professor, que futuro?
Prof.
Doutor A.M.: A
ideia de “partido” ainda no século XVIII era discutida, porque, sobretudo
ingleses, achavam contrária à ideia de comunicado. Há vários autores dessa
época… A minha memória agora não me ajuda, mas quando vi esta multiplicação dos
partidos, para as eleições europeias, lembrei-me que tinham razão aqueles
velhotes. O que é que eles diziam: partido era facção. E isso era contrário à
ideia de comunidade, portanto não queriam a palavra partido, mas depois, com o
tempo, a palavra partido deixa de ser a tal facção quando o conceito
estratégico é comum e o que discutimos é o que é melhor. A circunstância mudou.
As grandes potências emergentes em competição. A definição interna dos partidos
tem de se moldar para responder à nova circunstância. A última eleição para o
Parlamento Europeu em França, teve 30 partidos, e veja agora a última eleição em
Portugal mostrou novidades no sentido de se pôr de acordo com as novas circunstâncias.
Entrv.:
Aprendeu com a sua mãe que “Deus é companheiro”. O que pensa do Papa Francisco
e do futuro do Catolicismo?
Prof.
Doutor A.M.: Eu
sou adepto do Papa Francisco e também reparo… ainda ontem na conversa com os
nossos amigos lembrei-me disso: o mundo está muito dividido… riscos vermelhos…
agora é moda, mas se reparar, depois da Fundação das Nações Unidas, o único
líder religioso que foi chamado, foi o Bispo de Roma – Papa dos Católicos.
Primeiro foi Paulo VI. Deixou aquela célebre mensagem: que o “crescimento da
economia é o novo nome da Paz”. Depois foi João Paulo II, duas vezes: a
igualdade dos povos – era o seu próprio país dominado pelos russos; depois foi
o Papa Emérito que é o grande mestre, professor Bento XVI pregando – aquilo que
dizem é o que devem fazer. E o Papa Francisco já foi chamado duas vezes. Ora
bem, simplesmente a campanha contra a Igreja Católica neste momento é brutal.
Tem pecados, mas quando há pecados tem de se arrepender, condenar, absolver,
etc. Na nossa fé: perdoar. Mas como a circunstância, neste momento, é o
Terceiro Mundo contra os ocidentais: e quem foi que abençoou a ocidentalização?
É a razão em que ninguém fala. A luta contra os ocidentais inclui a Igreja. E
os católicos estão a fazer demonstração de perplexidade e dificuldades com esta
história da Amazónia. Não sei se viu, o Papa convocou os Bispos, porque o
Brasil não é único dono da Amazónia. Há uns cinco ou seis e o Papa chamou os
Bispos e fez-lhes um questionário para ver como é que vai ajudar os nativos. E
até entre as perguntas perguntava se deviam admitir homens casados. E eu
percebi, porque me lembrei da história da lepra, porque quando apareceu a lepra
no século passado foi grave. Organizaram uma ilha no Golfo do México, que era
francesa, só para os leprosos e há um frade que se oferece. Mas há uma carta
dele – isto está num livro do médico que foi um bom escritor também, português,
Dr. Almerindo Lessa. O frade, com trinta anos, escreveu para a Ordem: “Irmãos,
eu sou jovem, tenho tentações, perdão, rezem por mim”. Veja bem. O Papa sabe
isto. E alguns vieram acusá-lo até de herege. E a estupidez, ainda por cima, é
que pela lei que ele está a utilizar, os Bispos não podem decidir nada. Ele fez
as perguntas. Ele tomará a decisão. Mas as perguntas, dizem alguns que são de herege.
Até aquele cardeal que está na cadeia, na Austrália, naquele conforto da
cadeia, dá-lhe tempo para divagar, chegou à conclusão de que é herege. Ora,
tudo isto é para lhe dizer: a circunstância é muito dura, é muito problema sem
experiência. Há Globo, mas não há governo do Globo.
E, depois, também aquelas vozes
encantatórias que, no fim da guerra, fizeram a Paz europeia, eram todos da
Democracia Cristã: da França, da Alemanha, da Itália. A democracia Cristã está
de rastos. Praticamente só está em Portugal, e só elegeu cinco deputados. E a
senhora Merkel está ligada, mas está a descer de poder, e esta coisa de
ocidentalizar o mundo é agora uma atacada aventura. Ora bem, nós tratemos mais
da situação de Portugal. Não há segurança do Atlântico sem Portugal; não há
luta contra a criminalidade marítima sem Portugal, mas é a situação que o
envolve e, mais uma vez, a minha convicção: os portugueses têm conseguido
lugares da vida internacional que não estão de acordo com os 92 mil quilómetros
em decadência. Tivemos a Presidência do Conselho de Segurança, da Assembleia
Geral da ONU, tivemos a Presidência dos Emigrantes – estão lá representantes muito
inteligentes. De onde é que vem este prestígio? Repare que não há missão militar
portuguesa, que não termine sem receber elogios… a capacidade da Instituição Militar
projeta-se na importância do país que não tem a força, tem a posição e a
inteligência e é por isso que a nossa diplomacia tem de ser muito boa e é muito
boa, muito competente! Mas já fui bastante claro sobre a nossa fragilidade,
neste momento.
Entrev. Não, não é.
O senhor professor é um sábio. Há pouquíssimos homens como o senhor professor.
Sinceramente, acho que já não há.
Prof. Doutor A.M.: Então estão a acabar. Com os
anos que eu tenho…
Entrev. O Museu da Língua Portuguesa é um projeto muito interessante e poderá
ser uma mais-valia a nível nacional e internacional no que à lusofonia diz
respeito. Gostaríamos de conhecer a opinião do Senhor Professor sobre este
assunto.
Prof. Doutor A.M.: Olhe, eu defendi muito essa
ideia antes de ser posta em prática. Até reuni dois congressos das comunidades
portuguesas no estrangeiro… uma foi cá em Portugal com iniciativa da Sociedade
de Geografia, e Coimbra e Braga. Criei a União das Comunidades Portuguesas no Estrangeiro.
Um foi cá em Portugal. Houve sessões excelentes. E agora há o grande problema
da língua. Veja a guerra civil que há aí por causa do acordo? Eu sou contra o
acordo, mas cumpro-o. Mas sabe porquê? Eu era Presidente da Academia das
Ciências, tinha que obedecer à lei. Mas protestei, porque “a língua não é
nossa, também é nossa”.
Entrev.: Eu também.
Eu sou professora e tenho que ensinar a norma.
Prof. Doutor A.M.: E eu representante da Academia,
responsável, não me dá jeito escrever de duas maneiras. De qualquer modo, fiz
um discurso muito firme. Penso muito seguro. Eu disse o seguinte: A língua não
é nossa. A língua, também é nossa. Porquê? A língua, consoante o lugar onde é implantada,
mistura-se com valores locais. E até tem como que regras. Quando há escravatura,
por exemplo, as vogais abrem-se para que o escravo perceba. Mas se ele
deturpar, o patrão, como o primeiro objetivo é ser obedecido, adota a
deturpação. Depois as comunidades não contactam com a mesma realidade. O Brasil
tem valores italianos, valores alemães, valores japoneses… e nós não temos.
Quando chegarmos ao Oriente, é a mesma conversa, mas a língua não é nossa. A
língua também é nossa. Nós transmontanos, temos palavras que os outros não
sabem. De maneira que eu encontrei esta regra que me parece verdadeira. A
língua não é nossa, também é nossa.
Entrev.: É verdade.
Também é nossa.
Prof. Doutor A.M.: Chamei a atenção, chamei ontem…
não percebo esta guerra civil da língua: quando olhamos para o site das Nações Unidas,
estão lá oito línguas só. Está lá a nossa.
Entrev.: É a quinta
língua mais falada do mundo. Não é qualquer coisa. É uma grande coisa.
Prof. Doutor A.M.: E mesmo para a literatura… Sabe
qual foi a grande invenção do inglês para se expandir? O inglês básico. E o criador
do livrinho, um professor, disse: “Isto é que vai conquistar o mundo.”
Entrev.: E conquistou. É isso. Senhor Professor, já estamos quase a acabar. Que leitura faz da região de Trás-os-Montes de hoje?
Prof. Doutor A.M.: Bom, eu não tenho hoje a mesma
intimidade. Porque já venho menos vezes, já não tenho parentes na aldeia. Não
há crianças. Mas eu mantenho este sentimento… No sítio onde nós vivíamos não
havia igreja, lá em Lisboa. … havia
muitas, mas longe. E dinheiro, para o transporte e tempo livre não havia.
Portanto a minha mestra foi a minha mãe. E até morreu um amigo meu,
franciscano, muito sábio, era da Academia das Ciências, e acaba o livro, o
último que escreveu, com estas palavras: “Deus existe.” E eu: “A minha mãe já
me tinha dito.” E, portanto, a crise desafiante
da Igreja é geral, e a resposta não está a ser uniforme. Está a pagar glórias, está
a pagar porque foi uma responsável pela ocidentalização do mundo. Mas aquela
história que eu contei… não contei… Recordo-me do sueco Dag Hammarskjöld, Secretário
Geral das Nações Unidas, sendo eu um dos representantes de Portugal… Nós éramos
muito novos, os delegados. Íamos para a pandega no fim-de-semana: qualquer hora
que chegássemos, (estávamos num hotel muito pobre de africanos, porque naquele
tempo o estado não era rico nas ajudas de custo), a janela dele estava
iluminada. Estava a trabalhar. Tínhamos tal admiração por ele, que eu a
primeira vez que fui à Suécia, fui ao cemitério para REVERENCIAR a sepultura dele. Fez na ONU uma salinha, do
tamanho deste espaço onde estamos, com bancos de madeira e um altar de mármore
ao meio, e uma luz que vinha do alto sobre a pedra, impressionante! “Sala de
meditação de todas as religiões.” Ele percebeu que tinham que se por de acordo.
Veja bem! Ele foi assassinado, no Congo. A mim dizem-me, não, não está provado.
Eu digo, pois não. Deitaram-lhe só o avião abaixo. Bom. Morreu muito novo. Eu
tinha esta admiração que disse. Já agora, conto uma pequena anedota: eu cheguei
a ser presidente de uma coisa que se chamava Centro Europeu de Informação e Documentação.
Foi fundado pelo Arquiduque de Habsburgo, de quem eu fui muito amigo. Tínhamos
delegação em catorze países e ainda cheguei a ser o Presidente. Uma vez tivemos
uma reunião na Suécia. Ficámos num Château e no domingo de manhã foram bater aos
quartos “Há missa na sala de jantar.” Porque o arquiduque tinha o privilégio de
lhe dizerem a missa onde estivesse. E ele tinha um altar portátil. Portanto,
levava-o com ele. Onde chegasse, instalavam-no e diziam a missa. Quem disse a
missa foi um alemão. Ninguém sabia alemão senão os alemães e depois estava o
padre Aguiar que era o nosso e lá traduzia as coisas como podia. A certa
altura, desata tudo à gargalhada na missa que estaria no fim. “Ó padre Aguiar,
o que é isto?” É que o padre, como era a primeira missa que se dizia na Suécia
desde o tempo do Lutero, achou que devia haver uma música. Então encontrou uma
senhora de idade que tocaria a música. Sabe o que era? O hino do Lutero, na primeira
missa católica desde a reforma.
Entrev.: Risos. O
hino do Lutero! Ora, então, realmente. Que engraçado.
Prof. Doutor A.M.: É uma coincidência. O hino do
Lutero. Era o que ela sabia tocar. É interessante. Há um padre chamado Kung,
alemão. Conhece o nome? Tem uma fundação e teve umas questões com o Papa
Emérito. Era amigo dele, mas proibiu-o de dar aulas. A pregação dele no mundo,
é que as religiões se entendam.
Entrev.: Era bom
era!
Prof. Doutor A.M.: Olhe, ainda outro dia, há pouco
tempo, li um livro do líder do Tibete. Como é que ele se chama?
Entrev.: O Dalai
Lama.
Prof.
Doutor A.M.: Apresentei o Dalai Lama na Universidade de Lisboa há mais de 30
anos. Apresentei-o, veio cá. É impressionante o seu recente livrinho. Ele diz,
“Eu fui invadido, destruíram o meu país, mataram muita gente, estou exilado há
50 anos, e não tenho ódio a ninguém. Acho que a paz é fundamental. E o Papa
Francisco tem razão.” É impressionante, é animador para o Papa que tem pouca
saúde.
Entrev.: Tem uma
saúde muito frágil.
Prof. Doutor A.M.: Falta-lhe um pulmão. E já caiu
duas vezes. Mau sinal. Há um problema com ele que eu acho que esta gente não
avalia; dos cardeais, bispos vivos, é o que sabe mais da América Latina.
Entrev.: – Sem
dúvida nenhuma!
Prof. Doutor A.M.: E, portanto, ele sabe o drama da
América Latina. Eu escrevi um artigo que vai sair no Diário de Notícias. Eu
ando um bocadinho preocupado com essa gente. E acabei o artigo assim: “O
problema não é a soberania do Brasil, que não é o único soberano; o problema, quando
se diz a importância da Amazónia, é o valor para o Globo.
Entrev.: Ai, sem
dúvida nenhuma!
Prof. Doutor A.M.: Esse valor está antes. Com esta
conversa que estão a ter em relação aos nativos e que implica com o inquérito
do Papa. Lembrei-me, por umas passagens, do livro sobre a democracia na américa”,
que é um livro muito célebre de Toqueville, em que se conta o encontro dos Iroqueses
com o Presidente dos Estados Unidos. Vale a pena ler isto, porque disseram o
seguinte: “Quando os senhores chegaram aqui, vinham carentes. Recebemo-los
ajudando-os. Os senhores destruíram o nosso território. Éramos os componentes da
nação mais importante. Estamos aqui os últimos da nossa raça. Vimos-lhe
perguntar se temos de morrer.” Eu concluo: “Vejam se evitam uma repetição deste
acontecimento com esta história da Amazónia.”
Entrev.: Esperemos
que sim.
Prof. Doutor A-M.: Eu acho que é comparável.
Entrev.: É
comparável sem dúvida. Olhe, Senhor Professor, para concluirmos isto, porque eu
vejo que já está muito cansado, … o que pergunta o meu marido é se o senhor
professor não se importaria que a sua obra toda, a sua biblioteca toda, fosse
colocada online, em suporte digital?
Prof. Doutor A.M.: Isso tem de perguntar. Eu, por
mim, não me importo. Tem que perguntar ao nosso Presidente da Câmara. Ela está
para vir, o resto. Isto aqui é uma parte.
Entrev.: Eu sei, eu
sei.
Prof. Doutor A.M.: Já viu, não viu?
Entrev.: Sim, já vi
e sou frequentadora da sua biblioteca.
Prof. Doutor A.M.: Eu, uma das coisas que digo à
minha mulher, é isto: “A ti, depois de eu morrer, vai-te custar, porque a casa,
sem os livros, vai ficar vazia. Eu Graças a Deus tenho uma casa grande. E fui
favorecido por Deus, que eu nunca tive grandes empregos, mas tinha a educação
transmontana. Nada de inutilidades, etc. E a minha casa é muito acolhedora. Eu
vivo ali há 50 e tal anos, veja bem. Mas é um tempo em que o Restelo chamava-se
o Bairro das mulheres arrependidas. Sabe porquê? Acabou o açúcar. Onde é que se
compra açúcar? Não havia um sítio onde comprar. Agora não, agora há tudo. Bom,
a casa é a mesma. Vá lá e cabem lá os catorze netos. De vez em quando juntam-se
todos lá. E estou a reparar numa coisa. Os que andam na universidade vão para
lá estudar.
Entrev.: Ora vê!
Risos de ambos.
Prof. Doutor A.M.: É uma coisa engraçadíssima!
Entrev.: É porque
sabem que têm um avô e uma avó que os podem receber e que sabem que podem
contar com eles.
Senhor professor o prémio da lusofonia?
Prof. Doutor A.M.: Disse ontem. Disse ontem. Se não
fosse o meu pai, não estava ali. Enfim, se não fossem o meu pai e a minha mãe,
não estava ali. Estou sempre a lembrar isso.
Entrev.: E o prémio
devia ter o nome do seu pai…
Prof. Doutor A. M.: E até aqui há tempos, já há muito
tempo, mais de um ano, talvez quase dois, o Comandante Geral da Polícia, penso
que agora não tem esse título, mas equivale a general, aconteceu eu falar com
ele num almoço em que fiquei ao seu lado. Ele disse-me assim: “Olhe uma coisa
senhor professor, o seu pai não foi ajudante do Ferreira do Amaral?” Eu disse:
“Foi”. Ainda conheci o Ferreira do Amaral, porque eu era pequenino, mas o meu
pai achou que eu devia ir ver o seu comandante. E gostava tanto dele, que o meu
pai, já com 80 anos, naquele tempo, era um tempo em que estava em Grijó e ia a
Lisboa de propósito à missa anual pelo seu comandante. Veja bem. Ele foi vítima
num atentado. Iam-no matado a tiro e safou-se. E diz-me o comandante: “O senhor
podia dar-me um retrato do seu pai?” “Com certeza! Até lho posso dar já que
tenho na carteira.” “Não, eu quero um mais apropriado, para pôr ao pé do “Ferreira
do Amaral”.
Entrev.: Muito bem.
Que maravilha! Obrigada, Senhor Professor. Foi um enorme prazer e uma grande
honra ter-nos concedido esta entrevista. Não temos palavras para agradecer a
sua disponibilidade e amabilidade. Pedimos desculpa por se ter tornado tão
longa. Bem-haja.
Entrevista realizada ao Doutor Carlos Augusto Pinto de Meireles, geólogo assessor do INETI
Vamos
chamar à sua entrevista “Á procura da nossa Geologia”.
Nasceu
na Póvoa de Varzim, fale-nos um pouco da sua infância, da sua juventude.
C.M. – Enfim, foi uma infância normal. Embora
eu tenha nascido na Póvoa, passei a infância e a escola primária numa aldeia em
Penafiel. O meu pai era natural de lá, a minha mãe era professora primária e passei
a minha infância entre a aldeia e o mar. Estou dividido entre o mar e o campo.
Depois desse período de infância
regressei à Póvoa porque, na altura, não havia escolas secundárias em Penafiel.
Isto em 60, 61 e havia o Liceu Nacional na Póvoa de Varzim que era o único. Regressámos,
portanto, à Póvoa e fiz ali o secundário.
De facto, marcou-me essa dicotomia…
estou dividido entre o mar e o monte e os graus de liberdade que tinha quando
era criança com os meus 7, 8 anos. O à vontade com que andava pelos campos e
pelos montes com os meus companheiros da infância… Tenho impressão de que me
marcou bastante no despertar da profissão que escolhi.
Diga-nos,
então, no seguimento do que nos contou: Porquê a Geologia?
C.M. – Foi uma professora de ciências
naturais que me fez despertar o gosto pela Geologia. Eu estava no meu quinto
ano do liceu e essa professora fez-me querer ser geólogo. O seu amor pela
disciplina era contagiante. Sabia levar-nos por caminhos inexplorados e fez com
que eu me decidisse, aos meus 15, 16 anos. Sinto-me realizado. Faço aquilo que,
de facto, gosto. Tenho esse privilégio e, embora as pessoas… Recordo-me de, algumas
vezes, amigos dos meus pais estranharem a minha escolha. Para mim e para os
meus pais não era estranho. Os meus pais tinham alguns primos que estavam
licenciados em Ciências Geológicas. Portanto, na família não era estranho o
curso de Geologia, mas as pessoas conhecidas quando abordavam os meus pais sobre
o que o filho mais velho ia fazer e os meus pais diziam que ia ser geólogo,
ficavam: “O que é isso? Geologia?”
Aliás, continua um pouco essa
ignorância, essa falta de consciência de uma profissão. Nós, que somos tão
dependentes dos materiais geológicos… Infelizmente, essa ignorância continua presente
na sociedade portuguesa. Não sei se é uma espécie de passar de esponja… de
ignorância, falta de tomada de consciência já que é uma profissão tão digna...
Valorizam-se
umas profissões e desvalorizam-se outras...
C.M. – Isso acontece com muita frequência,
não apenas com a Geologia, mas com outras profissões também.
Fale-nos,
por favor, de um estudo realizado por vários geólogos, que revela que as rochas
existentes na zona das Cantarias, pertencentes ao Parque Natural de Montesinho
são as mais antigas de Portugal.
C.M. - O estudo foi feito por um colega
meu da Universidade de Aveiro, na sua tese de doutoramento, Luís Francisco
Santos. Foi divulgado em comunicados, trabalhos oficiais em congressos,
trabalho conjunto… Espero não falhar nenhum nome, do José Francisco Santos, do
Professor António Ribeiro da Universidade de Lisboa, do Doutor Fernando Marques,
também da Universidade de Lisboa, do professor Tacinardo da Universidade de São
Paulo. Portanto, esse trabalho foi publicado, um trabalho conjunto.
Penso que o primeiro trabalho que refere
as datações das rochas dos Altos Pereiros, foi no âmbito de uma tese de
doutoramento do meu colega José Francisco Santos. Quando se organizou essa
exposição no Centro Cultural aqui em Bragança, foi referido numa entrevista,
por mim e pelo meu colega José Brilha, como um exemplo do interesse da
protecção daqueles afloramentos, porque, de facto, é uma idade polémica. Eu e os
meus colegas datámo-los em mil milhões de anos. Embora seja polémica, porque se
se confirmar que eles têm essa idade, é que em Espanha há…
Voltando um pouco atrás, estes corpos
geológicos existem na Galiza, três ou dois em Portugal, o de Bragança e de Morais.
Estas rochas resultaram de uma tectónica de placas que se começou a processar
por volta dos 400 milhões de anos até aos 320 milhões de anos, processo de
fecho de um grande oceano e da colisão de dois continentes, que agora já não
existem. Há vestígios dessas rochas, o que seria, mais ou menos, à latitude atual,
a América do Norte, as Américas. Portanto, o fecho desse oceano começou dos 400
milhões… Eu estou a falar um pouco de cor, posso não estar a dar as idades
precisas, entre os 400 milhões e os 320 milhões de anos, altura em que se deu o
fecho completo desse oceano.
E o que é que acontece quando há o
choque de duas placas tectónicas continentais? Há todo um material do fundo da
crosta oceânica e sedimentos do oceano que vão desaparecer, e há outra parte
que cavalga, que sobe. Sobe porquê? Há um encurtamento do espaço, há uma
incapacidade física de ocupar esse espaço, esse volume e, esse material cavalga.
Esta unidade imensa calcula-se que tenha cavalgado sobre um outro continente,
nas actuais latitudes cerca de duzentos quilómetros de oeste para leste e a
esta unidade chamamos nós… Os geólogos dividem a península ibérica
geologicamente em várias zonas estruturais e esta é uma delas. A zona chama-se
Galiza/Trás-os-Montes e, a característica dela é a presença destes corpos que
são deslocados doutras origens...
São
rochas do mar...
C.M. - Algumas são rochas do mar. Outras,
como é o caso da zona dos Altos Pereiros, são rochas da crosta continental ou
manto. Portanto, estamos a falar em profundidades. A crosta varia dos oito
quilómetros no oceano até aos quarenta, cinquenta quilómetros de profundidade.
Neste caso, será crosta continental. Estaremos com rochas de profundidades de quarenta
quilómetros e formaram-se com temperaturas à volta dos 600, 700 graus, com
pressões enormíssimas de 12 ou mais kilobares. Estão preservadas. Penso que são
as rochas mais preservadas, portanto, serão as rochas mais favoráveis para
fazer essa datação.
Voltando outra vez à datação, nos
maciços espanhóis nunca se encontraram estas idades e, daí, a polémica. Mas o
interesse daqueles afloramentos serem preservados e de não serem cimentados,
destruídos simplesmente, é para permitir, por um lado, que as pessoas, o
cidadão comum, sejam informadas, e que o espaço seja devidamente valorizado
para divulgação dos afloramentos da geologia, da complexidade da geologia que
está ali presente e, por outro lado, para que nós, os geólogos, possamos
continuar a estudar, a observar, porque de facto ainda há muito trabalho a
fazer. A ciência não acaba; vai evoluindo...
Que
importância podemos atribuir a essa descoberta?
C.M.
- Bom, por um lado é
o prazer da descoberta que temos que ter sempre presente e de conhecermos o
nosso próprio planeta. Portanto, conhecermos a história do planeta, digamos, da
evolução, da complexa evolução do terreno que pisamos, que abrangerá desde
rochas que terão mil milhões de anos, andarão próximo disso, seguramente mais
de 600 mil milhões de anos, até rochas que tenham, que sejam mais actuais, da
ordem dos 20 milhões de anos, por exemplo, é o prazer de apresentar descobertas.
Acho que os geólogos deviam partilhar
mais. Gostava de ver, nos nossos cidadãos, esse prazer da descoberta. Portanto,
temos a obrigação conhecer a geologia, a história da Terra. Nós precisamos de
conhecer a história humana, do passado até ao presente e aprendermos com isso,
aprendermos com os erros do passado e projetarmos para o futuro. Também
precisamos de aprender a evolução do planeta onde vivemos.
Estão agora presentes estes problemas
do aquecimento global. Nós temos que estudar muito bem o clima do passado para
tentarmos compreender o clima actual, não é? Que condicionantes é que estão em
jogo para modificar o clima? Portanto, eu vejo isso como um prazer, de
descoberta, puro. É a curiosidade inata do ser humano.
Já
nos falou da importância dessas rochas, mas como seria o mundo nessa altura e o
porquê de se ter dado esse choque tectónico?
C.M. – Porque o planeta é, felizmente, um
planeta vivo. Porque o planeta tem atividade. Os exemplos dessa atividade são
os sismos, os vulcões e a atividade vulcânica que é espantosa. Muitos
cataclismos se deram, e muitas modificações do clima se deram por cataclismos
vulcânicos, principalmente. Porque, se não houvesse vida, esta atividade do
planeta, com certeza, não haveria vida.
É
verdade que se encontram conchas marinhas nas serras de Montesinho e Nogueira?
C.M. – Sim. As conchas são raras. Encontram-se
pistas, não na Serra de Nogueira, mas na serra de Montesinho, mais na serra das
Barreiras Brancas, mas encontra-se pistas, traços da actividade de seres vivos.
Não ficaram registos dos corpos fossilizados desses seres, mas ficaram as suas
marcas do fundo marinho, que era uma praia. Imagine uma plataforma continental
muito plana. Enfim, um mar muito amplo e com uma areia muito bonita, muito
fina. Deveriam ser umas praias esplêndidas, isto, há cerca de uns 480 milhões
de anos.
Pena,
é que foi há tanto tempo.
Tem
desenvolvido importante trabalho na elaboração de cartas geológicas com
especial incidência na região norte, nordeste de Portugal. Porquê esta
preferência?
C.M. – Não foi propriamente uma
preferência, mas foram indicações de política do serviço. Quando ingressei em
finais de 1985 nos serviços públicos, na ex Direção Geral de Geologia e Minas,
mais concretamente, nos serviços geológicos.
A Direção Geral de Geologia e Minas
tinha dois departamentos. Um, ligado à prospeção, que era o serviço de fomento
mineiro, tinha sido criado nos anos 39, 40, durante a guerra, e os serviços
geológicos de Portugal, que é uma instituição centenária. Em 1998 foi
comemorado o centenário desta instituição. O trabalho dos serviços geológicos é,
essencialmente, de cartografia geológica. Procura-se fazer uma cartografia à
escala 1:50000 do país todo. E foi, portanto, por essa incumbência do serviço,
que fui destacado para trabalhar aqui em Trás-os-Montes.
Fale-nos
das particularidades geológicas dos parques naturais de Montesinho e do Douro
internacional.
C.M. – Conheço melhor o parque de
Montesinho porque é onde tenho trabalhado mais. Tenho dado colaboração aos meus
colegas que trabalham na zona de Miranda. Aliás, estou a fazer cartografia,
como há bocado disse no princípio da entrevista, em São Martinho de Angueira,
que está no limite norte do Parque do Douro Internacional.
Sobre a geologia do parque de
Montesinho considero que, voltando um pouco atrás, àquelas pinceladas do parque
geológico do planeta, é uma das regiões do país com uma geologia mais complexa
e, portanto, mais rica em termos de património, em termos de cultura, em termos
de cultura científica e é tão diversificada, que eu, pessoalmente, considero
que se não fosse tão complexa e tão diversificada, não condicionaria a
morfologia, a geomorfologia da própria paisagem. As rochas condicionam a
presença de vegetação. A situação mais marcante são os afloramentos de rochas
ultra básicas do maciço de Bragança que têm uma flora própria, autóctone,
porque são rochas muito ricas em níquel e crómio. Níquel, portanto é um veneno
muito grande e nem todas as plantas se conseguem adaptar, e há uma flora muito
própria.
Lá está, a geologia, a ser o
substrato, a condicionante da geomorfologia da envolvente da paisagem, a
condicionar a própria flora, a condicionar a própria presença humana. Depois,
em função da geologia, também há um aspecto que é um importante recurso geológico,
as águas subterrâneas. Conforme a fracturação, conforme a própria qualidade
destas rochas, assim teremos maior ou menor quantidade de água subterrânea e,
as águas subterrâneas são um recurso muito importante para o ser humano, para o
seu consumo e bem-estar. A geologia do Parque Natural de Montesinho, atrevo-me
a dizer que se esta geologia não fosse tão complexa, não teríamos parque. Ela,
de facto, vai condicionar, está na base de tudo o que temos por cima. Toda a
morfologia, toda a paisagem…
E
o que distingue a Serra de Nogueira e o Monte de Morais, geologicamente falando,
do resto desta região?
C.M. – O Monte de Morais faz parte desse
tal maciço, maciço de Morais, que é, fundamentalmente, constituído por rochas
da crosta oceânica. Repito, o maciço de Morais é, fundamentalmente, constituído
por rochas da crosta oceânica. Aqui em Bragança predominam as rochas da crosta
continental. Também há crosta oceânica que está muito mais deformada. O que
predomina aqui são as rochas da crosta continental e rochas como aqui, na zona
de Vila Boa de Ousilhão, que são as rochas ultra mórficas, muito importantes
para a exploração de crómio. A exploração das minas de crómio do Aberredo foi mais ou menos na mesma ocasião em que o jazigo
Bushveld na África do Sul começou a exploração do crómio e da platina, se não
estou em erro, em 1906 ou em 1907. Foi descoberta a cromite, no maciço de
Bragança, mais ou menos na mesma altura, e teve, aqui, uma actividade mineira
importante. Nessa altura, o serviço mineiro teve muito trabalho de pesquisa e
de apoio aos concessionários mas, curiosamente, com o fim da 2ª Guerra Mundial,
caíram os preços porque, a África do Sul começou a produzir em grande e,
praticamente, os trabalhos aqui terminaram pela dificuldade da prospeção. São
uns jazigos muito difíceis de seguir, de ver onde há mais massa desses minerais
e, portanto, com o esgotamento superficial do minério, a atividade cessou. Mas
é curioso que a descoberta das cromites aqui em Bragança se tenha dado, exatamente,
na mesma altura dos jazigos de cromite na África do Sul. Desculpe, começo a
falar e perco-me...
Foi
muito interessante ouvi-lo divagar sobre estes assuntos, mas temos de voltar à
Serra da Nogueira e ao Monte de Morais…
C.M. – A Serra da Nogueira é uma serra
gerada por um bloco, um terreno que está levantado e, está levantado por esta
actividade já mais recente que controla esta falha que temos aqui e que provoca
os sismos que têm acontecido em Bragança, Vilariça,… Portanto, que tem um
desligamento. As tensões da terra levaram a um deslocamento de blocos.
Aqui no norte, neste sector tem um
deslocamento horizontal de uns quilómetros e, além do deslocamento horizontal,
há elevação de blocos e abatimento de outros e aquele sector de Montesinho,
porque isso vê-se muito bem na paisagem, aprecia-se muito bem do miradouro de
São Bartolomeu. Virando para norte, uma pessoa vê, à esquerda, um bloco
levantado, Serra de Montesinho e todo aquele sector levantado. Aquele bloco
subiu, ficou exposto o granito. A zona de Baçal é uma zona abatida. É aquilo a que
a população chama muito bem, a baixa lombada. Depois, a zona de Babe é alta
lombada. Há um outro conjunto de falhas que faz levantar o bloco de Babe. A
Serra da Nogueira é uma situação dessas, está a sul de Bragança e foi erguida
por esta actividade tectónica.
Fale-nos
um pouco dos fenómenos que terão dado origem ao muro de Abalona.
C.M. – Bom, o que se passa é que aquele
vale, o rio Douro, da parte de Espanha, é um rio com um percurso tranquilo. Aliás,
ele atravessa uma bacia sedimentar antiga e o encaixe, todo o alto Douro, desde
a entrada na zona de Paradela, norte de Miranda, desde a entrada do Douro na
fronteira até Barca D`Alva é aquilo que nós chamamos um canhão. Este canhão foi
gerado a partir... O Douro desaguava por uma bacia interior, antes de abertura
do Atlântico, antes de se dar este choque entre o Atlântico e o rio Douro
correr para o mar e, por isso, esta zona, quando se vai para Zamora ou para
Valladolid, vê-se uma grande planura. Era um mar interior onde o Douro
desaguava. Depois, com esta tectónica complexa da abertura do Atlântico, há um
retomar, um avanço do rio, desde a latitude do Porto que foi avançando e retomou
esta bacia. A partir daí, o rio Douro começou a correr para o mar e, portanto,
tem um percurso muito juvenil. Ainda está em grande actividade geológica,
erosiva e criou este canhão. A construção das barragens vai impedir um pouco
esta ação erosiva. Precisamos de controlar o rio para evitar problemas de
inundações e cheias e para termos energia eléctrica para nosso conforto. Portanto,
a acção do homem neste aspeto, vai cortar um pouco a evolução natural. Nesse
aspeto, o Douro é um rio jovem, muito jovem e, digamos, a própria geologia que
atravessa, mais granítica, rochas mais resistentes à erosão do que os xistos,
vai dificultando a sua passagem. A partir de Barca D`Alva até ao Porto entra-se
no vale do Douro, onde as rochas, com mais de 500 milhões de anos, são rochas
muito mais brandas, relevos mais suaves, o vale é um pouco mais aberto. Este
canhão do Douro, que é toda a fronteira de Portugal e Espanha desde Miranda até
Barca D`Alva é um percurso juvenil do rio Douro.
Neste
momento desenvolve trabalho na elaboração de cartas geológicas de Bragança, São
Martinho de Angueira e Vinhais. Fale-nos brevemente sobre o tema.
C.M.
– São trabalhos que
estão a decorrer, agora estão um pouco interrompidos, porque estou mais
centrado nos meus trabalhos de investigação e logo que concluído isso, espero
retomar os trabalhos, quer na carta de Bragança, quer na carta de Vinhais. A
carta de Vinhais é a que está mais atrasada. Eu tenho praticamente feitos os
levantamentos da zona de Bragança. Há uma carta 25000, uma carta 50000, são
quatro 25000. Há uma carta 25000 que ainda precisa de uma revisão minha. Nós, nos
serviços geológicos, trabalhamos em equipa. Era um geólogo, um auxiliar e um
coletor. O coletor era uma pessoa que em tempos fazia uns reconhecimentos
rápidos e que nos poupava muito tempo porque, enfim, a não ser que houvesse
depois algumas dificuldades, algumas complexidades da própria geologia, e que
me levaram a fazer um levantamento quase quilómetro a quilómetro. A correr,
quase, cada quilómetro quadrado a pé ou de jipe. Portanto, é assim que fazemos
os nossos levantamentos, mas esse trabalho de coletor foi bastante precioso
porque dá logo uma pista ao geólogo, para direccionar um pouco mais os seus
levantamentos onde acha que há problemas para resolver, e portanto, o trabalho,
neste momento, na carta de Vinhais, embora tenha os levantamentos feitos pelo
meu coletor, está meia feita. As minhas revisões é que estão um pouco mais
atrasadas. Vão ter que esperar que eu acabe o meu trabalho de investigação.
Quais
são as principais diferenças geológicas entre Trás-os-Montes e o resto do país?
C.M. – Bom, é um pouco, voltando atrás,
aquela situação de termos aqui uma unidade que foi deslocada, que resultou de
um choque de placas bastante antigo, um processo há volta dos 300 milhões de
anos e, desse choque, desse choque entre dois continentes, resultou também
actividade granítica, que é aquele eixo do Minho até às Beiras, depois a zona
sul também é mais complexa, complexa e diferente mas, aqui, tem a vantagem de
as rochas aflorarem bem, haver bons afloramentos.
Por exemplo, em relação àquela zona do
Alentejo, zona de Beja até Évora, é uma zona já com uma erosão muito intensa,
uma geologia muito polémica, muito complexa também, mas não tem a vantagem de
aflorar tão bem como se vê aqui em Trás-os-Montes. Do ponto de vista da geologia,
Trás-os-Montes é um local privilegiado. O canhão do rio Douro, com uma garganta
profunda, com cortes de geologia muito bons. A região de Trás-os-Montes, aqui
de Bragança e Vinhais com bons afloramentos, bons cortes, é a exposição da
geologia, que leva a que muitas excursões, congressos geológicos e encontros
internacionais se realizem em Trás-os-Montes, aqui no nordeste. Por acaso, a
última que foi realizada aqui em Bragança, foi uma reunião do Oeste Peninsular,
que reuniu pessoas de vários pontos do globo, portugueses, espanhóis, australianos,
colegas argentinos… Esta geologia é importante, não só pelos recursos naturais…
Voltando um pouco atrás, a curiosidade humana leva a que nós queiramos saber
mais do passado mas, entretanto, desta complexa evolução geológica do planeta
resultam recursos que são importantes para a actividade humana.
Eu costumo dizer que desde que o homem
começou a pegar numa pedra, a lascar e a começou a utilizar, quer para se
defender, quer para se alimentar, iniciou-se a ligação do homem com a geologia
e, desde sempre, o ser humano está dependente da geologia. Às vezes, nós não
temos muito bem, consciência disso. Claro que dos recursos, há sempre.
Toda a atividade humana tem prós e
contras. Temos que ser capazes, criteriosos e cuidadosos na sua exploração. Não
ser uma actividade desenfreada, sem controlo, sem preocupações ambientais. Temos
de ter isso em conta para tentar minimizar qualquer risco.
A civilização humana está sempre
ligada à geologia, à exploração dos materiais e Trás-os-Montes teve uma
situação importante até aos anos 80, do século passado, século XX.
Trás-os-Montes e o distrito de Bragança, era o distrito mineiro do estanho, por
excelência, no país. Portugal produzia mais estanho nessa altura do que a
Espanha. As minas de Portelo, ou as minas de Montesinho que eram o principal
produtor.
Portanto, o ouro, crómites, estanho, a
própria rocha, as pedras que nós usamos na cantaria, que nós usamos na construção
das casas, são matérias-primas que resultam desta actividade, desta história
complexa da terra que o ser humano precisa de utilizar, inevitavelmente.
As coisas têm de ser bem geridas e bem
exploradas. Há, ainda, o aspeto da atividade lúdica e, voltando um pouco àquela
exposição que foi apresentada há semanas atrás, aqui em Bragança e que resultou
na conclusão do projecto do estudo do património geológico destes dois parques
naturais, há um outro aspecto, uma outra actividade económica que pode ser
assente na utilização da beleza natural, dos afloramentos, da geologia, do
património.
Há determinados afloramentos que
interessa preservar ou, pelo menos, interessa que o homem não os destrua. Que
deixe que a natureza faça o seu papel de erosão. Enquanto eles existirem devemos
tirar partido disso, quer para enriquecer o nosso conhecimento, quer para
enriquecer a nossa formação cultural e científica, não descurando a atividade
económica e turística.
Hoje em dia a actividade cultural tem
uma importância muito grande na actividade económica de um país. Há uns meses
atrás, vinha num jornal um relatório de Bruxelas a realçar a importância da
atividade cultural, no produto interno bruto de um país. Penso mesmo, que para
Portugal, era mais importante do que vender ou exportar automóveis.
A actividade cultural, tudo o que ela arrasta
e, nesse aspeto, o património geológico integra-se nesse nicho de atividade
económica. É um aspeto importante a ser tratado pelos nossos responsáveis do
turismo do nordeste, aproveitando, corretamente, todas as potencialidades da
região.
O
sector mineiro ainda é um sector a ter em conta?
C.M.- Claro. É sempre, até porque, em
primeiro lugar, a função dos serviços públicos a que eu pertenço é fazer uma
inventariação. Não é só fazer a cartografia geológica. Atrás da cartografia
geológica vem a inventariação dos recursos e, portanto, é fundamental
conhecermos aquilo que temos, definirmos e quantificarmos o quanto possível, os
nossos recursos de matérias-primas para definirmos reservas. Até em termos de
um conceito tão falado, o desenvolvimento sustentável. Ou seja, pode não ser
neste momento, por razões de mercado, explorar o estanho, porque os preços estão
muito baixos e os custos de produção são elevados. Não interessa, neste momento,
explorar mas é preciso quantificar. Saber quantas reservas existem, porque pode
não ser útil agora, mas em explorações futuras pode ser importante.
Esta actividade pública e, eu friso
bem, pública, embora não pondo de parte a actividade das empresas privadas que
foi importante, mas as empresas privadas trabalham em função do mercado, os
serviços públicos têm obrigação, no meu entender, de trabalharem
sistematicamente para bem do interesse português, aplicando o dinheiro dos
contribuintes, fazendo um estudo de inventariação sistemático e sempre com
vista a procurar definir estratégias de desenvolvimento sustentado.
Em
função das necessidades...
C.M. – Exactamente, o serviço público tem
de fazer um trabalho constante, contínuo, para depois poder informar o poder
político. Olhe, temos não sei quantos milhões de reservas de ferro com estas
características. Foram definidas as reservas. A decisão política de abrir ou
não a mina, depende do mercado, das condições de mercado, mas pelo menos fica
para o futuro, para as gerações futuras saberem que existem, ali, nas Barreiras
Brancas, cinco milhões e meio de toneladas de ferro.
Ainda
há muito minério para explorar em Trás-os-Montes?
C.M. – Sim. E ainda há muito por
investigar e quantificar. Aqui no distrito de Bragança os únicos jazigos que
estão quantificados, cujas reservas estão perfeitamente quantificadas é o ferro
de Moncorvo, as Barreiras Brancas de Guadramil e o jazigo de estanho de
Montesinho. O resto está tudo por quantificar. Há muito trabalho por fazer,
muita investigação de prospeção mineira ainda por fazer. Se quiséssemos
seguiríamos esta política de reconhecimento, de inventariação, de investigação
dos recursos.
Esta
região é propensa a sismos?
C.M. – Sim. Há atividade sísmica ativa pela
falha da Vilariça. Há outra falha a leste de Miranda do Douro, na zona de
Alcanices, que provoca estes sismos na zona de Miranda que são bastante
intensos.
Estamos a assistir à abertura de uma
nova falha, creio que é paralela à da Vilariça. Estas falhas vão começar a
jogar porque, na opinião do professor António Ribeiro da universidade de Lisboa,
estamos a assistir ao fecho do Atlântico. A abertura foi bastante complexa.
Primeiro na zona do Tétis, que é agora o Mediterrâneo há cerca de 200 milhões
de anos, o Atlântico sul abriu há cerca de 150 milhões de anos. Na opinião dele
e pelos dados da geofísica, sísmicas profundas, estamos mais ou menos a 150,
200 milhões de anos do fecho. Há uma certa constância na evolução dos
continentes na terra, os continentes abrem, parece haver um ciclo.
Uma
transformação…
C.M.
- Exactamente, que
permite que abram e fechem. Na opinião do professor Ribeiro, estaremos numa
situação de fechar o oceano. Ele diz na brincadeira que a nossa satisfação
seria cavalgar em cima do oceano, quando o oceano estivesse completamente
fechado e, portanto, ele atribui esta actividade física, que começa a ser muito
presente, aqui, na região, nessa falha que está a começar a abrir na zona de
Miranda, a leste de Miranda, este processo é sempre muito lento.
Que
demora milhões de anos?
C.M. – Para os humanos a escala são os 100
anos. Para o geólogo a escala são milhões de anos…
Não quer isto dizer que os geólogos
vivam mais do que nós…
C.M. – Não. Quando isso acontecer não
haverá sequer civilização humana. Não sabemos que evolução pode ter o planeta
se houver um grande cataclismo vulcânico. Uma boa parte da civilização humana vai
sofrer consequências muito sérias.
Para
terminar, que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua
vida?
C.M. – Enfim, várias. A minha professora
de ciências naturais que me marcou na escolha do meu curso, além da minha
família. Há também um professor, vários professores. Lembro-me, assim de
repente, de vários professores. Um professor de história do liceu, pelo
despertar da consciência cívica. Depois professores na faculdade, os meus mestres,
algumas figuras públicas como Ghandi, o incontornável Cristo, várias figuras
políticas… Algumas figuras políticas portuguesas, algumas figuras históricas
portuguesas, como modelo de civismo e integridade. Uma das figuras que sempre me
foi muito grata: Aristides de Sousa Mendes... Mais próximas e que me marcaram
na família, os meus pais.
Obrigado
pela sua entrevista.
C.M. - Eu é que agradeço, obrigado.
Escrito por Maria Cepeda