Conheci o Amadeu em Janeiro de 1986, na primeira aula a
que assisti, do meu curso de Direito, na Faculdade de Direito da Universidade
Clássica de Lisboa.
Como era trabalhador-estudante e vivia no Alentejo, só podia frequentar as
aulas em dois dias por semana. Por isso, o meu professor de Filosofia de 12º
ano, creio que se chamava Herminio, aconselhou-me a procurar um seu conhecido
que ia frequentar o mesmo curso, na mesma Faculdade e que seria a pessoa
indicada para me auxiliar, sobretudo quanto à obtenção de apontamentos de aulas
que eu não frequentasse. Além disso, dizia-me esse professor, o Amadeu tinha
uma capacidade intelectual fora do comum e uma forma de ser que cativava de
imediato.
E assim foi. Conheci o Amadeu e ganhei, de imediato, um amigo sincero e alguém
que havia de ser decisivo no meu curso.
No mês seguinte, Fevereiro de 1986, tive exame de Constitucional I. Não estava
preparado para o exame e não passei.
A constatação de um mundo diferente do meu Alentejo, a dificuldade das cadeiras
do curso e o meu cansaço, determinaram uma depressão que me tirou todo o alento
e levou-me a pensar desistir do curso.
O meu recente e leal amigo acompanhou-me, após o exame, desde a Faculdade até à
estação dos autocarros, no Campo Pequeno, sempre a convencer-me que aquilo era
um percalço que não merecia a minha desistência.
Foi o primeiro de muitos actos que eu considero determinantes para a conclusão
da minha licenciatura. Hoje posso afirmar que o Amadeu não me deixou desistir e
recuperou-me.
Além do valor intelectual, acabara de compreender o valor da humanidade deste
homem que conhecera havia tão pouco tempo.
Fiz toda a minha licenciatura na mesma sub-turma do Amadeu. Creio, aliás, que
esse foi o factor decisivo: o Amadeu.
Durante os cinco anos de licenciatura, o Amadeu acabou por ser a referência de
quase todos os alunos de Direito. Muitos, mesmo muitos colegas, devem-lhe
grande parte dos seus estudos.
Com efeito, o Amadeu fazia apontamentos por cadeiras e temas que toda a gente
utilizava, qual Bíblia da faculdade.
No segundo ano inscrevemo-nos no turno da noite. O dia era para trabalhar.
Eu já tinha filhos e o Amadeu também. De vez em quando reuníamos a família em
convívio, porque foi sempre muito fácil conviver com ele.
A palavra simples e fácil do Amadeu cativava, desde logo pela sua visão das
coisas, pela simplicidade e simultaneamente riqueza das ideias, mas igualmente
porque era fácil aprender consigo. Na verdade, ao longo dos cinco anos de
licenciatura discuti inúmeras vezes com o Amadeu sobre os variados temas de
cada cadeira. Quando podia «puxava» por ele. É que eu conseguia aprender muito
mais a ouvi-lo do que a ler os livros ou sebentas. Ele tem esse dom do ensino.
Torna as coisas fáceis e compreensíveis.
Recordo que um dia o Amadeu me disse que ia ensinar creio que era Direito do
Trabalho, aos funcionários de um banco. Penso que isto foi no terceiro ano e
Direito do Trabalho só iríamos ter no ano seguinte. Perguntei-lhe como era
possível, se ainda não conhecíamos a cadeira. Respondeu-me, na sua
simplicidade, que ia estudar a cadeira e ficava já em vantagem para o ano
seguinte.
Eu ficava surpreendido, embora já não assim tanto, com a capacidade que ele
demonstrava. Eu aflito para conseguir acompanhar as cadeiras do ano e ele
estudava já uma do ano seguinte… Mas não era só isto. Eu sei que ele frequentou
o curso de Alemão e creio que o Conservatório. Penso que terá sido já no final
do curso, ou algo do género.
A inveja que eu tinha. Durante o liceu, do 10º ao 12º ano, fui sempre o melhor
aluno. Ali, na presença do Amadeu, sentia-me pequenino, intelectualmente
limitado, mas com uma admiração que não consigo descrever. Aliás, à medida que
vou escrevendo, vou tomando consciência de que não conseguirei descrever
integralmente o que foram esses cinco anos. Não sei transcrever fielmente esse
tempo.
Os testes, em regra, versavam sobre uma hipótese prática que abrangesse um
grande número de figuras jurídicas estudadas.
A solidariedade do Amadeu era tão grande, e a dependência da turma era tal que
ele fazia o levantamento e o esqueleto da solução em 10 minutos e depois
passava para toda a gente poder resolver a solução, sem a ansiedade da
incerteza.
No quinto ano, antes de cada exame, reuniam todos os alunos numa sala e o
Amadeu explicava, com palavras suas, o que era realmente importante na matéria
do exame.
Gravávamos as aulas teóricas e entre todos passávamo-las para o papel e
entregávamos ao Amadeu. A partir dessas aulas o Amadeu concebeu sebentas que
eram autênticos manuais, imprescindíveis no estudo. Creio que ainda hoje essas
sebentas circulam pela Faculdade. Para nós eram preciosidades, porque nos
permitiam estudar com um esquema simplificado da matéria.
O Amadeu foi não só aluno, amigo ou companheiro, mas a salvação e o professor
de muitos colegas. Por isso lhe foi prestada, no final do curso, uma justa homenagem,
num jantar que reuniu em seu redor todos os colegas que lhe quiseram demonstrar
o seu reconhecimento.
Pela minha parte, não tenho qualquer dúvida em admitir que sem a companhia do
Amadeu, o seu apoio, os seus ensinamentos, não teria coragem, espírito de
sacrifício ou perspicácia intelectual suficientes para concluir o curso.
Mas o Amadeu não se distingue apenas pelas suas capacidades intelectuais, ou
pela sua íntegra humanidade.
Os laços de amizade que se estabeleceram entre nós estenderam-se às respectivas
famílias. Saímos inúmeras vezes juntos e até com outros colegas do nosso grupo,
como o Frota, o José Carlos, e outros mais.
A forma como encarnava o papel de marido e de pai deixava-me com inveja. E com
enorme admiração. Aquele homem era, aliás foi sempre, um exemplo para mim. Eu
queria ser como ele, ter a sua estrutura genética. Queria ser tão bom marido e
tão bom pai. Ele exalava uma espécie de paz que me fazia sentir outro, sempre
que estávamos juntos.
Talvez tenha feito do Amadeu o meu herói. Mas nunca conheci ninguém
assim.
Sei que haverá muito mais a dizer. Honestamente, tenho rebuscado nas minhas
memórias outros episódios, outras situações que pudesse relatar. Infelizmente
muitas coisas já não as retenho, talvez porque a minha vida não tem sido fácil
e memórias de outros tempos vão sendo substituídas por preocupações dos tempos
actuais.
Do que ficou por dizer, só peço que me perdoe.
Estremoz, 20 de Outubro de 2012
Publicado
por Teresa Martins Marques – O Fio das Lembranças. Uma Biografia de Amadeu
Ferreira