sexta-feira, 22 de março de 2024

POEMA XVII






Fechou-se o diálogo 

amiga.


Ter-se-á fechado uma 

porta

um desejo

uma vontade

ou um túnel

voluntário 

estranho

indeciso?


Um túnel

esbatido

sem trilhos e sem luz

no fundo.


Que diálogo era

amiga?


Quando nos sentaremos 

ansiosos no café

na fonte

na beira do rio?


Quando falaremos de nós

ininterruptamente?!

(que coisa diferente)


Talvez não mais, amiga.


O túnel esbateu-se

por completo.


Já não há vontade 

nem porta.


E para sempre, amiga: 

que diálogo era o nosso

em que tanto ou tudo 

ficou

por dizer?


Marcolino Cepeda

FLORIR


teimosamente, insistentemente, 
persistem em florir amarelas, belas
e de tanto insistir, a primavera, 
todos os anos, acontece
e agradece por vir florir

flores amarelas, belas,
roxas, algumas azuis,
brancas até e violetas,
pequeninas violetas
que me fazem sorrir

gosto de estar no jardim
sem pensar, sem ouvir, 
sem ver o fim de existir
de tantas e tantas crianças
envoltas em sangue
que já não conseguem sorrir

Maria Cepeda (Poema e fotografia)

 

SÓ SEI QUE NÃO VOU POR AÍ! (Teresa Martins Marques)


(Aqui têm um exemplo da função social da literatura em que eu acredito.)

O «Cântico Negro» de José Régio (Poemas de Deus e do Diabo - 1925) é um dos textos de maior notoriedade na poesia portuguesa do século XX , tornando-se pelo seu veemente tom declamatório  um hino emblemático de rebelião, a própria rebelião por antonomásia, vindo a adquirir a função social que Régio certamente lhe não previra: Poema-bandeira de todo o inconformismo, de toda a incompreensão, de toda a diferença relativamente a uma norma-doxa que é, ou se supõe ser, por demais impositiva e violentadora da individualidade do homem.

Corroborando esta «tradição de leitura» do poema, afigura-se-nos um trágico grito de solidão na diferença, consubstanciado na rejeição do caminho que é o dos outros, o «nunca ir por aí». Os outros, são delimitados no poema como «alguns com olhos doces», «estendendo-me os braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse». (vv 1,23, – 1ª est.). Não existe qualquer marca textual que incrimine estes outros como possuidores de más intenções relativamente ao Eu poético. A alteridade que se estabelece entre Eu e os Outros é baseada na diferença, o que não implica necessariamente ainda um juízo de valor. Esse juízo surge mais tarde (5ª estrofe) através da desvalorização que os Outros sofrem relativamente ao Eu:

«Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós.

e vós amais o que é fácil!»

Os Outros representam o velho, o ultrapassado (romântica recusa da «herança») vista da perspectiva do Eu que representa o novo, tudo o que é preciso conquistar: «Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada,

O mais que faço não vale nada» (4ª estrofe)

Os Outros («Vós») representando o velho, não poderão compreender o novo, ainda que lhe «estendam os braços». Quer se leia este estender de braços como solidariedade amiga ou imposição camuflada de hipocrisia, o certo é que o gesto redunda em inútil pois o Eu não acredita que a sua salvação dependa deles:

«Ao que busco saber nenhum de vós responde» (v. 3, 3ª est.)

[...]

«Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?» (vv 1-3 – 5ª est.)

Os Outros representam a quietude na pacatez da ordem estabelecida dentro dos conceitos do Útil («as estradas», «os tectos»), do Belo («os jardins», «os canteiros») do Sapiente («regras, e tratados, e filósofos, e sábios).

A utilização cumulativa da vírgula e da copulativa «e» transmite ao verso um tom de redundância, de organização desmesurada que ressalta ainda mais pelo violento contraste do 5º verso desta 6ª estrofe: «Eu tenho a minha Loucura!»

A loucura vista como um «bem» porque singular, porque produto de uma singular forma de individualidade, assumida como uma glória – maiusculada – em contraponto com a enumeração dos «teres» dos Outros. Loucura que é a suprema honra do Eu, a luz da sua noite/vida: «Levanto-a, como um facho a arder na noite escura». (v. 6 – 6ª est.). «Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...»

(vv. 6, 7 – 5ª est.);

assumindo o canto de raiva sangrenta:

«E sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios...

(v. 7 – 6ª est.);

assumindo a fatalidade da sua origem:

«Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo»

(v. 4 – 7ª est.).

O 2º verso da 7ª estrofe – «Todos tiveram pai, todos tiveram mãe» soa mais como um lamento do que como gloriosa afirmação de diferença que nem a condição de intemporalidade (o velho sonho do homem) consegue colmatar:

«Mas eu que nunca principio nem acabo».

Condição de eternidade no sofrimento, pela diferença, carregando uma culpa original que o transcende e que o condiciona:

«Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém»

(v. 1 – 7ª est.).

«Mais ninguém», excluindo os Outros, exclui também o próprio sujeito que passa à condição de «objecto guiado» e se perde, perdendo a liberdade. É a imagem de um Prometeu agrilhoado pelo que há de contraditório no seu ser dividido entre os impulsos positivos simbolizados por Deus e os impulsos negativos simbolizados pelo Diabo.

O sujeito poético tem consciência da sua condição de herói romântico e da necessidade de «derrubar os obstáculos» (v. 3-5ª est.) que o separam afinal de umanorma, podendo ler-se «obstáculos» como os primeiros muros de incomunicação que o cercam e que sente não poder derrubar, numa (lógica) contradição inscrita na duplicidade do (seu) ser.

A última estrofe insiste nessa contradição explicando a vida do sujeito poético através de metáforas que vão da exuberância («A minha vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que se alevantou» (vv. 4, 5) até à pequenez da matéria:

«É um átomo a mais que se animou».

Átomo a mais entre tantos outros (semelhantes) mas que se animou, isto é adquiriu uma anima que lhe concedeu a diferença. O próprio título do poema inscreve em si mesmo a conotação positiva «cântico» e a negativa «negro» que para além da associação a satânico, implica o negrume da vida do homem complexamente oblíqua mas cuja  grandeza consiste, segundo Nietzsche, em ser uma ponte e não um fim e o que podemos amar no Homem é justamente a transição e a perdição.

Ponte como forma de vida superior (átomo com anima) que liga (pela inteligência) as restantes formas de vida entre si. Como ponte é transição para o divino (a perfeição) que não atinge e por isso se perde e se destrói através da auto-ironia com que se aceita, mas também se recusa.

O sujeito poético diferente dos Outros e diverso em si mesmo inscreve-se numa tradição romântica em que predominam «o desafio à norma, ao razoável, ao racional, a obsessão do diferente, o desejo de permanência na ruptura. Permanência do Eu, ruptura com tudo o que possa ser ou transformar-se no «não-eu».