(Aqui têm um exemplo da função social da literatura
em que eu acredito.)
O «Cântico Negro» de José Régio (Poemas de Deus e do
Diabo - 1925) é um dos textos de maior notoriedade na poesia portuguesa do
século XX , tornando-se pelo seu veemente tom declamatório um hino emblemático de rebelião, a própria
rebelião por antonomásia, vindo a adquirir a função social que Régio certamente
lhe não previra: Poema-bandeira de todo o inconformismo, de toda a
incompreensão, de toda a diferença relativamente a uma norma-doxa que é, ou se
supõe ser, por demais impositiva e violentadora da individualidade do homem.
Corroborando esta «tradição de leitura» do poema,
afigura-se-nos um trágico grito de solidão na diferença, consubstanciado na
rejeição do caminho que é o dos outros, o «nunca ir por aí». Os outros, são
delimitados no poema como «alguns com olhos doces», «estendendo-me os braços, e
seguros / De que seria bom que eu os ouvisse». (vv 1,23, – 1ª est.). Não existe
qualquer marca textual que incrimine estes outros como possuidores de más
intenções relativamente ao Eu poético. A alteridade que se estabelece entre Eu
e os Outros é baseada na diferença, o que não implica necessariamente ainda um
juízo de valor. Esse juízo surge mais tarde (5ª estrofe) através da
desvalorização que os Outros sofrem relativamente ao Eu:
«Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós.
e vós amais o que é fácil!»
Os Outros representam o velho, o ultrapassado
(romântica recusa da «herança») vista da perspectiva do Eu que representa o
novo, tudo o que é preciso conquistar: «Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada,
O mais que faço não vale nada» (4ª estrofe)
Os Outros («Vós») representando o velho, não poderão
compreender o novo, ainda que lhe «estendam os braços». Quer se leia este
estender de braços como solidariedade amiga ou imposição camuflada de
hipocrisia, o certo é que o gesto redunda em inútil pois o Eu não acredita que
a sua salvação dependa deles:
«Ao que busco saber nenhum de vós responde» (v. 3, 3ª
est.)
[...]
«Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?» (vv 1-3 – 5ª
est.)
Os Outros representam a quietude na pacatez da ordem
estabelecida dentro dos conceitos do Útil («as estradas», «os tectos»), do Belo
(«os jardins», «os canteiros») do Sapiente («regras, e tratados, e filósofos, e
sábios).
A utilização cumulativa da vírgula e da copulativa
«e» transmite ao verso um tom de redundância, de organização desmesurada que
ressalta ainda mais pelo violento contraste do 5º verso desta 6ª estrofe: «Eu
tenho a minha Loucura!»
A loucura vista como um «bem» porque singular, porque
produto de uma singular forma de individualidade, assumida como uma glória –
maiusculada – em contraponto com a enumeração dos «teres» dos Outros. Loucura
que é a suprema honra do Eu, a luz da sua noite/vida: «Levanto-a, como um facho
a arder na noite escura». (v. 6 – 6ª est.). «Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...»
(vv. 6, 7 – 5ª est.);
assumindo o canto de raiva sangrenta:
«E sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios...
(v. 7 – 6ª est.);
assumindo a fatalidade da sua origem:
«Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo»
(v. 4 – 7ª est.).
O 2º verso da 7ª estrofe – «Todos tiveram pai, todos
tiveram mãe» soa mais como um lamento do que como gloriosa afirmação de
diferença que nem a condição de intemporalidade (o velho sonho do homem)
consegue colmatar:
«Mas eu que nunca principio nem acabo».
Condição de eternidade no sofrimento, pela diferença,
carregando uma culpa original que o transcende e que o condiciona:
«Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém»
(v. 1 – 7ª est.).
«Mais ninguém», excluindo os Outros, exclui também o
próprio sujeito que passa à condição de «objecto guiado» e se perde, perdendo a
liberdade. É a imagem de um Prometeu agrilhoado pelo que há de contraditório no
seu ser dividido entre os impulsos positivos simbolizados por Deus e os
impulsos negativos simbolizados pelo Diabo.
O sujeito poético tem consciência da sua condição de
herói romântico e da necessidade de «derrubar os obstáculos» (v. 3-5ª est.) que
o separam afinal de umanorma, podendo ler-se «obstáculos» como os primeiros
muros de incomunicação que o cercam e que sente não poder derrubar, numa
(lógica) contradição inscrita na duplicidade do (seu) ser.
A última estrofe insiste nessa contradição explicando
a vida do sujeito poético através de metáforas que vão da exuberância («A minha
vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que se alevantou» (vv. 4, 5) até
à pequenez da matéria:
«É um átomo a mais que se animou».
Átomo a mais entre tantos outros (semelhantes) mas
que se animou, isto é adquiriu uma anima que lhe concedeu a diferença. O
próprio título do poema inscreve em si mesmo a conotação positiva «cântico» e a
negativa «negro» que para além da associação a satânico, implica o negrume da
vida do homem complexamente oblíqua mas cuja
grandeza consiste, segundo Nietzsche, em ser uma ponte e não um fim e o
que podemos amar no Homem é justamente a transição e a perdição.
Ponte como forma de vida superior (átomo com anima)
que liga (pela inteligência) as restantes formas de vida entre si. Como ponte é
transição para o divino (a perfeição) que não atinge e por isso se perde e se
destrói através da auto-ironia com que se aceita, mas também se recusa.
O sujeito poético diferente dos Outros e diverso em
si mesmo inscreve-se numa tradição romântica em que predominam «o desafio à
norma, ao razoável, ao racional, a obsessão do diferente, o desejo de
permanência na ruptura. Permanência do Eu, ruptura com tudo o que possa ser ou
transformar-se no «não-eu».
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