Aconselhamos a leitura da entrevista que nos concedeu.
Aqui deixamos alguns excertos.
Penso
que o ter participado no “25 de Abril” teve um pouco que ver, ou talvez muito,
com o ter nascido nesta região. Como disse, sou filho de um guarda-fiscal, sou
um filho já tardio, tinha dois irmãos muito mais velhos que, por acaso,
estiveram em África mas, tinham regressado antes dos acontecimentos que se
verificaram, os acontecimentos relacionados com a guerra ultramarina. O
regresso, de pelo menos um deles, deveu-se ao falecimento do meu pai.
A
minha mãe viu-se com um miúdo de oito anos para criar. A única coisa que sabia
fazer era a lida da casa. Como o meu pai era guarda-fiscal e, numa aldeia, isso
significava mais que ser remediado, quase significava ser duma classe alta,
porque havia dinheiro, a minha mãe fez das tripas coração, virou-se como se costuma
dizer. Ela ainda está viva, tem 98 anos, está num lar em Miranda, mas foi
sempre uma pessoa que me marcou muito porque fez realmente um esforço fabuloso
para conseguir educar-me com aquilo que ficou. Quase diria que teve de inventar
formas de fazer dinheiro para me educar. Tive o azar de ser de uma aldeia, de
não ter feito o exame de admissão na devida altura, o que me obrigou a ir para
um colégio em vez do liceu que ficava mais caro e, assim, estudei em Miranda e
diga-se de passagem que ao fim do primeiro ano já estava a dizer que não queria
estudar mais, porque via os miúdos que estavam a trabalhar na barragem e não
tinham que ir preparar as lições para casa. Aí valeu o meu irmão, regressado de
África por causa da morte do meu pai que disse: se tivesses tirado más notas,
talvez, assim como tiraste boas notas tens de continuar a estudar. Também lhe
devo muito a ele, como é evidente, por causa disso.
Fui
criado de maneira a perceber as dificuldades que existiam em casa. Fiz o 2.º e
5.º anos, vim fazer exames a Bragança e, depois do 5.º, tive de mudar para o
Porto. Eu não podia vir para o liceu, como disse e tudo isso ficava bastante
caro. Fiz os estudos equivalentes ao terceiro ciclo e aí voltei a Bragança.
Tive
sempre uma ligação com Bragança e quando chegou a altura de ir para a
universidade escolhi a academia militar fundamentalmente por questões
económicas. Percebia, perfeitamente, que não podia ir para a universidade. Até
gostaria de ter ido para engenharia, mas percebia perfeitamente que não tinha condições
financeiras para tal.
Ouvi
dizer que na academia militar pagavam um salariozinho, enfim, davam subsídio,
davam alimentação e não pagava pensão. Foi isso que condicionou a minha ida
para a vida militar, não foi efectivamente a minha vocação especial. Foi mais
uma condição económica que, diga-se de passagem, aconteceu a muita gente que
depois veio a participar no “25 de Abril”, vieram a ser capitães de Abril.
Temos que nos lembrar que nessa altura já tinha começado a guerra. A frequência
na academia era alimentada, fundamentalmente, por classes ricas. Enfim toda a
tradição da nobreza, mas quando começou a guerra deixaram isso para os pobres e
os pobres preferencialmente, do interior, por isso é que nessa altura a
frequência na academia militar era de Trás-os-Montes e das Beiras.
Falemos de liberdade e Capitães de
Abril. Comente, por favor, a incursão das Caldas.
A
incursão das Caldas, ou seja, 16 de Março é realmente um movimento feito por
pessoas ligadas ao 25 de Abril, em que se verificou uma descoordenação bastante
grande. Nessa altura, eu já tinha feito reuniões com elementos da comissão
coordenadora do MFA; nessa altura tínhamos uma organização que, como costumo
dizer, era uma organização desorganizada. Uma vez tive de explicar numa
entrevista, precisamente, a seguir ao 16 de Março das Caldas, e que me
perguntaram: "Mas como é que vocês conseguem funcionar tendo a PIDE (que
era a polícia política) à perna?" Embora nos sentíssemos vigiados e
tivéssemos de andar meio fugidos, o que respondi a esse jornalista foi: "A
gente lá se vai defendendo porque isto é uma organização desorganizada. Eles
ainda não perceberam muito bem quem são os cabecilhas e, por isso, a
dificuldade de actuar. Andam a tentar seguir-nos, a gente troca-lhe as voltas
conforme podemos e, se calhar, isto vai dar certo precisamente por causa desta
forma muito portuguesa de criatividade, há quem lhe chame desenrascanço, sempre
nos resolveu muitos problemas e continuará a resolver."
Nessa
altura do 16 de Março, já estava na Escola Prática da Administração Militar.
Sou chamado pelo comandante do aquartelamento que, manda reunir todos os
oficiais por volta das quatro da manhã e, explica-nos que há tropas a caminho
para invadir Lisboa, tropas não, uma coluna, diz ele. Quando eu ia entrar no aquartelamento,
aparece-me um oficial que fazia parte da comissão coordenadora do MFA, a
dizer-me que já havia tropas a movimentarem-se, designadamente, os comandos de
Lamego, que iriam ocupar o Porto e que vinha muita tropa sobre Lisboa e,
portanto, fiquei assim sem perceber o que se estava a passar porque,
oficialmente, o comando diz-me que era uma coluna militar, a fonte interna do
MFA dizia-me que havia muita tropa. Eu próprio não tinha ainda objectivos
definidos, dentro das minhas funções de comandar essa unidade. Não sabia qual
era o objectivo que me competia ocupar, por outro lado tinha sido feita uma
reunião com o comando para verificar o estado de operacionalidade da unidade e
quais as funções que lhe poderiam ser atribuídas.
Tinha-lhe
sido apenas atribuída uma função de reserva em segunda prioridade, isto é, nem
sequer era reserva em primeira prioridade e o comando, ao dizer-nos que vinha
uma força sobre Lisboa, diz-nos também, que lhe tinham sido dadas ordens para
ocupar uma das entradas de Lisboa, designadamente a entrada do Lumiar; achei
estranho e pus ao comandante a seguinte questão: Então, se nós tínhamos,
apenas, uma missão pouco prioritária, agora diz-nos que vamos defender Lisboa?
De certeza absoluta que vem realmente muita tropa? – “Não, vem só uma coluna,
são as ordens que eu tenho e as ordens que eu cumpro, preciso de oficiais que
se ofereçam como voluntários para comandar uma companhia que vai posicionar-se
e defender uma determinada entrada de Lisboa”.
Nessa
altura ofereci-me como voluntário e disse: “Cá dentro não sei bem o que se
passa, vou lá para fora”. Houve mais uns oficiais que se ofereceram, formamos
uma companhia e fomos então situar-nos, por acaso, junto a uma escola. Tivemos
que pedir às professoras dessa escola para ficar ali, dizendo-lhes que ia haver
ali um exercício militar e que podia haver uma bala perdida, embora fosse de
madeira, que dispensassem os miúdos da escola e elas, efectivamente,
mandaram-nos para casa. As pessoas andavam por ali. Lá nos fomos posicionando
e, entretanto, dei indicações aos oficiais, que transmitissem aos soldados que
não havia tiros; isto é, íamos verificar o seguinte: se viesse muita gente, se
viesse muita tropa faríamos apresentar armas e íamos marchar atrás deles por
Lisboa, se fossem poucos íamos tentar dissuadi-los, porque assim não valia a
pena. Ficámos, assim, nessa posição. Ainda houve uma altura em que se perdeu o
contacto, foi precisamente quando essa coluna voltou para trás, aí ficámos
mesmo aflitos e pensámos que ia aparecer mesmo. Enfim, não apareceu, tudo
correu bem.
De
qualquer das formas, não há dúvida alguma, que isso foi extremamente importante
para depois melhor prepararmos o planeamento do Movimento. Permitiu perceber
como é que as forças reagiam. A minha escola ou o meu quartel reagiu mas,
reagiu aparentemente contra. Nós sabíamos que estava a favor, não é?
Percebeu-se que… aquilo aconteceu por má organização mas, serviu para se
retirarem, realmente, muitos ensinamentos. Foi como se fosse um exercício real,
que nos convenceu de que era possível tomar o poder. E, portanto, foi
extremamente importante, se calhar, até mais do que se pensa, porque permitiu
melhorar muito o planeamento e evitar efectivamente confrontos militares, muito
embora, tivéssemos tido situações em que só não aconteceram porque não calhou.
Houve realmente muita sorte em determinadas situações: foi o caso de Salgueiro
Maia no Terreiro do Paço, não andou aos tiros porque não calhou. A fragata que
estava postada no rio teve os canhões apontados. A desgraça era que se
começássemos com o primeiro tiro, não sei como conseguiríamos parar.
O seu papel foi fundamental na
Revolução dos cravos. Sentiu o peso dessa responsabilidade?
Olhe,
estas coisas… quase diria que se fazem sempre, impensadamente, não há heróis
pensados, não há situações ponderadas… o objectivo que eu tomei, a escola
prática… posso dizer que antes de eu ter sido questionado pelo Otelo, sobre se
era capaz de tomar conta dos estúdios da Rádio Televisão Portuguesa, isto
porque era perto do quartel. “É só dares ali um passo. Podes lá ir?" e eu
disse: “Ó Otelo, conta com isso, conta com isso tomado”, e depois o Otelo ouviu
precisamente o Vítor Alves dizer-lhe: “Ó Otelo dizes ao Bento para tomar, ele
não tem tropa!” Porque realmente eu não tinha tropa, eu tinha soldados da
administração e soldados cozinheiros, padeiros, a maior parte deles até se
chamam padeiros, não é? Não sabiam combater com armas. Mais tarde, vim a saber
que tinham sido questionados, primeiro, os pára-quedistas para tomar esse
objectivo, porque era um objectivo importante. Os objectivos de comunicação
social, nessas alturas, são importantes, são extremamente importantes.
Eu próprio, quando li o livro do Otelo, verifiquei que ele tinha feito o seu plano de utilização dos meios de comunicação social com base num manuscrito que estava em anexo e eu, quando vou ver esse manuscrito, reconheci a letra: “é pá, eu conheço esta letra mas, de quem é esta letra?” E verifiquei que a letra era minha. Por acaso conhecia alguém da RDP e fui ouvindo umas conversas, sabia o que é que precisávamos e então fiz, fundamentalmente, uma relação de prós e contras de cada meio de comunicação social nessa altura e qual era, realmente, o mais importante. E o mais importante era, efectivamente, o Rádio Clube Português por uma razão simples. Sabem qual é que era? Porque tinha gerador próprio. Por exemplo, a televisão, a emissora nacional era muito bom, cobria tudo mas, era fácil calá-la, a televisão também não era importante, isto como primeiro meio de comunicação, porque só emitia a sério a partir das seis horas, entre as duas e as seis horas tinha a telescola. Dizia lá, nesse manuscrito que, o principal meio de comunicação era nessa altura o Rádio Clube Português e esse é que era fundamental, e foi.
Ele adoptou essa estratégia; isto só para
dizer que quando falei sobre a importância dos meios de comunicação e quando
decidi tomar a televisão, foi por ingenuidade e inexperiência. Se fosse um
combatente experiente teria respondido, provavelmente, como responderam os paraquedistas:
“Pois, sim senhor é importante e, se depois a coisa dá para o torto, como é que
é?” Porque isto, quer queiramos quer não… tudo está bem quando corre bem e hoje
é fácil dizer que o Regime estava preso por um fio mas, na altura sabia-se lá
se estava preso por um fio, o que é que íamos encontrar pela frente ou não, os
riscos que íamos correr, ninguém sabia.
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