terça-feira, 27 de março de 2012

O Serro

Voltei à primavera de que tanto gosto. Mais floridos os campos, mais perfumado o ar, mais verdes os montes... mais chilreios de passarinhos novos. 
Era ainda muito cedo. O sol despertava preguiçoso, ligeiro como quem mal dormiu. Lentamente, estendia os seus cálidos raios pelas pequenas flores que enfeitam os lameiros. As árvores abrem os olhos multicores das muitas e belas flores, promessas de doces frutos.   
Ao longe, impõem-se o Serro pela sua particularidade e beleza.  A sua quotidiana visão transporta-me, sempre, para lendas de Mouras Encantadas, de cavernas que parecem palácios, de passagem secretas que chegam até ao rio Tuela...
É primavera e, por isso, está verde, muito verde, apenas as cristas rochosas estão despidas de vegetação.  É um lugar que transpira magia. O seu perfil é inconfundível. Mantenho-o no meu olhar quando, preguiçosamente, me deixo arrastar por devaneios saudosistas.
Recordo-me das muitas histórias que me contava a minha avó. A da bela princesa moura, sentada ao sol, penteando os longos cabelos negros com um pente de ouro fino, prisioneira de um amor proibido, guardadora de tesouros incomensuráveis. 
Cantava canções tão tristes que, ao ouvi-las, turvava-se o céu e grossas bátegas de chuva caíam inundando de vida a aridez das pedras, cobertas de cravelinas, ainda sem flor. 
"O teu tio viu-a, uma vez, sentada naquela pedra, a pentear os lindos cabelos e a cantar as suas mágoas. Tão triste era a cantiga que o teu tio chorou. As suas lágrimas, ao caírem sobre o pedregulho onde se escondia, fizeram despertar a princesa do seu enleio e, por artes mágicas, desapareceu transformando-se em linda borboleta azul."
"Ó avó, isso não é possível! Ninguém se pode transformar em borboleta, seja ela azul ou amarela..."
"O teu tio jurou a pés juntos que foi verdade e tão triste ficou que nunca mais teve alegria.  Definhou, definhou e acabou por desaparecer num dia de primavera, manhã cedo.  Nunca ninguém conseguiu encontrá-lo. Junto à rocha onde a moura encantada se sentava, encontrámos um ramo de violetas atado com um fino fio de ouro e uma pequena lágrima transformada em pérola."
"Ó avó!" Sorri, ela sorriu e continuámos a caminhar em direção à horta, nas margens do Tuela. Regámos as favas, as ervilhas, as alfaces... silenciosamente, sonhávamos as duas. 
O deslumbramento daquela paisagem tinha o poder de me paralisar.  Ali não havia dor, medo, tristeza... apenas a natureza ditava vontades no gorgolejar da água a bater nas pedras. As pequenas cascatas espumavam, caudalosas, das últimas chuvas. As salgueiras cobriam-se com belos vestidos de folhinhas novas. Os amieiros, mais sóbrios, vestiam-se de verde mais escuro.
No remanso das margens alinhavam-se as pequenas plantas que ali habitam, pintalgando-se, já, de coloridas flores. Os peixinhos brincavam junto às suas raízes e, todos à uma, ao mais leve roçagar, desapareciam entre os seus pequenos e frágeis caules.
“Vamos embora, filha.”
“Já avó? Ainda é cedo. Vamos ficar mais um bocadinho!”
“Não que já é quase meio-dia. A tua mãe já tem o almoço feito.”
Amuada, segui-a. Sabia que tinha de ser.
“Ana, vem almoçar!”
Ouvi-me dizer: “Já vou avó.”
“Avó!? Estás a sonhar ou o quê?”
“Ó Helena, desculpa! Estava a pensar na minha avó…”
Os meus pais e o meu tio já estavam à mesa. Não me tinha apercebido da passagem do tempo. Tinha na mão o telemóvel, a câmara em espera… dezenas de fotografias aguardavam ser imitações de primavera.   

Mara Cepeda

1 comentário:

  1. Essa é a nossa casa, a memória. Cultivá-la é uma maneira de não vivermos no passado, mas de sabermos quem somos. É um texto muito bonito, Mara, e muito bem escrito.

    Bien haias.
    Beisico
    A.

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