Se Maria fosse viva estranharia estes tempos que vivemos. Seria difícil habituar-se à ideia de mudança.
Não. Não mudaria. Continuaria a sua vida de madrugadas e noites lusco-fusco para ir para a cama, já que "deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer ".
Chamaria seus a todos os caminhos que calcorreava a pé, fosse para ir trabalhar no campo ou para ir às feiras a Vinhais. Eram seus, também, os que criava à força de tantas vezes cortar montes e ladeiras que tinha de andar para apanhar os galhos das giestas e os vimes para as suas cestas, muitas vezes arriscando a vida, sujeita a cair, em equilíbrios impossíveis sobre o rio Tuela, cujo leito coberto de pedras, não servia de colchão a quem tivesse a infelicidade de ali escorregar.
Hoje é quase impossível frequentar esses caminhos delineados à custa de muita persistência e necessidade. A natureza agreste tomou conta deles e vestiu-os de arbustos. Só as cabras e o seu pastor se atrevem a invadir a pacatez desses lugares.
Custar-lhe-ia ver como o seu trabalho foi em vão. Nada restou da sua labuta diária. Apenas algumas memórias acarinhadas pela filha que com ela ia e que as vai transmitindo à neta, com alguma relutância envolta em dor. Duros anos esses, de grande pobreza, fome e trabalho acima das suas forças. Misérias que lhe custa relatar.
Se ela voltasse... Não sei que sentimentos acalentaria. Talvez de incredulidade, surpresa, coisas do demo... "Onde já se viu semelhante pouca vergonha desta gente nova que deixa perder tudo. Tanto sacrifício dos pais e avós para tudo estar perdido, cheio de silvas... Já ninguém se sujeita a estes trabalhos tão difíceis."
Talvez fosse esta a sua reação ou então, o mais provável, seria continuar a sua vida, igual a todo o sempre da sua insignificante existência.
Vivia para ajudar quem precisasse de ajuda e tudo faria para que todos tivessem o mínimo para não morrerem à fome.
Parecia impossível que uma mulher tão frágil tivesse tamanha força e valentia. Tinha o orgulho dos transmontanos de antigamente, cujo sentido de justiça e solidariedade eram capazes de superar todas as dificuldades.
A morte do filho de dezasseis anos matou-a. Andava por temor de Deus e amor à filha que não podia abandonar.
Continuamente sorria a uma pequena borboleta amarela que com ela falava, em amena cavaqueira de solidão e tristeza. Acariciava com cuidados mil uma singela erva do campo e as plantas das suas hortinhas donde tirava o seu e dos outros, sustento.
Contentava-se com pouco. Pensava na filha, nos sobrinhos, nos amigos, nos vizinhos e nos inimigos. Enquanto ela tivesse um cibinho de pão duro, mataria a fome a quem mais precisasse.
Se ela voltasse a este mundo de agora, já não conseguiria. Não poderia, talvez, ser quem fora.
Mara Cepeda
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