quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

“Vim a Bragança buscar a simplicidade”

Chef Hélio Loureiro apresentou o seu 15º livro de culinária no Nordeste Transmontano e não esconde as suas influências.

Mensageiro de Bragança: De que forma é que o Nordeste Transmontano marcou a sua cozinha?

 Chef Hélio Loureiro: Marcou porque desde a infância, com três, quatro anos, vinha para Bragança passar as férias de verão e ficava aqui. O facto de a minha mãe e toda a sua família ser de Bragança fez com que experimentasse sempre em casa todos os sabores e toda a riqueza da cultura transmontana, que para cada festa, para cada época do ano tem os seus produtos tradicionais. Aqui sempre senti o regresso à terra, ou seja, sabíamos que quando havia trutas e peixes do rio era isso que se comia, na altura da caça era caça que se comia, na altura do fumeiro eram as alheiras... ou seja, houve sempre uma sazonalidade e um respeito pela terra que me obrigaram a pensar e a refletir muito ao longo da vida. Uma coisa tão simples como uma sopa de unto, pão de centeio e alho podia aquecer-nos tanto a alma e o corpo. Daí que talvez tenha vindo buscar a Bragança a simplicidade que gostava de transmitir.

MB.: Dos sabores do Nordeste Transmontano há algum em especial que o marque mais?

CHL.: A sazonalidade sempre foi uma vertente muito grande nestas terras. Por isso, as filhós do Natal eram ótimas, os económicos, as mimosas, os folares da Páscoa, o cabrito assado, o leitão assado no espeto, o fricassé de canela ou de dobrada que se fazia lá em casa. Todos esses sabores estão guardados na minha memória. Não comemos só hidratos de carbono e proteínas, também comemos imaginário. E esse imaginário está aqui guardado. Às vezes vêm-me à memória esses sabores, esses cheiros que me transportam de novo à infância e aos sabores e aos carinhos que recebi aqui.

MB.: Acha que ainda há muito por explorar na cozinha transmontana?

CHL.: Há por explorar várias vertentes mas, sobretudo, uma, que é manter a autenticidade da cozinha transmontana. Para que seja, de facto, autêntica, tem de se refletir sobre ela. E não deixar, de forma nenhuma, que haja grupos ou produtos exteriores que possam adulterar a cozinha transmontana. Tem na sua essência várias coisas mas uma delas é o respeito pela terra. O espaço geográfico encerra a cozinha transmontana, a sazonalidade, o respeito pelas tradições, pela cultura dos povos que por aqui passaram, dos judeus aos cristãos. Toda essa cultura, para ser mantida tem de ser respeitada. E por isso tem de ser transmitida. Dizer que se mantém a tradição, de tradição tem muito pouco quando não se pratica. Tradição, semanticamente, quer dizer transmitido. Outra coisa em Trás-os-Montes que é muito particular, que é o comer. É comer na companhia ‘de’, nunca é um comer solitário. Não há uma mesa transmontana que não tenha um lugar a mais, que não haja sempre comida a mais para quem chega, para quem bata à porta.

MB.: Relativamente à religião, tem sentido influências da espiritualidade no seu trabalho?

CHL.: Deus está em tudo e nós podemos fazer todo o nosso trabalho virado para Deus. Cada momento da nossa vida deve ser uma inspiração divina, deve ser de alguma coisa que estamos a partilhar e a receber de Deus. Todos nós temos o nosso talento. Sinto desde muito novo que tinha algum talento que seria dar a conhecer a cozinha portuguesa, o ser cozinheiro. Por vezes, paro para pensar que todo o Evangelho é à volta da mesa. Ou seja, desde as bodas de Canaa, que é o primeiro milagre de Jesus, quando se manifesta publicamente, e que é um casamento. Deus não nos quis ver tristes, não disse que o vinho já chegava. O vinho acabou mas fez multiplicá-lo para que continuasse esta festa, esta alegria, que é uma alegria tão cristã que às vezes esquecemo-nos e que vivemos como se fosse uma grande tristeza. Esquecemo-nos que ser cristão é ser alegre. Se Deus nos deu o pão para saciar a fome deu-nos o vinho para mantermos esta alegria. A última ceia também foi à volta da mesa. Sempre pensei muitas vezes quem é que terá cozinhado aquela última ceia. E sempre acreditei que tenha sido a própria mãe de Jesus que tenha feito a ceia. Ela estava lá, estava presente em Jerusalém quando Jesus morreu e ressuscitou. Era normal que fossem as mulheres que fizessem o jantar. Daí que acho que este trabalho deve ser um trabalho de amor, de dedicação, e só pode vir quando estamos espiritualmente bem definidos e seguros daquilo que queremos e do caminho que percorremos.


(Entrevista completa disponível para assinantes)
Retirado de www.mdb.pt

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