Antes de mais, queria agradecer o convite que me fizeram para participar nesta série de entrevistas. Disseram ter seleccionado pessoas que, de algum modo, se notabilizaram, sendo naturais do distrito de Bragança. Enfim, modéstias à parte, queria dizer que, talvez, da única forma que me notabilizei, foi pela normalidade da minha vida e pela vulgaridade da minha prestação ao longo da vida.
A minha infância, em Bragança, foi um bocado como a de todos os jovens daquela altura. Traquinices e brincadeiras e eu tive a possibilidade de acompanhar o meu pai em miúdo por muitas aldeias. Pelas aldeias, não direi todas, do concelho mas, quase todas, porque o meu pai era médico municipal e levava-me com ele. Eu era um miúdo e então levava-me com ele quando ia fazer as suas visitas médicas e eu tive oportunidade de conhecer bastante bem, vivendo na cidade, a vida da aldeia. Conhecia aquela gente toda, brincava com os miúdos das aldeias e eu gostava imenso de ir porque tomava contacto com aquela realidade, com a bicharada e com as aldeias daquele tempo que não eram nada do que são hoje. Não tinham luz eléctrica, não tinham telefone… quando era preciso chamar um médico, vinham as pessoas a pé chamá-lo. Depois, o meu pai levava-os para as aldeias no seu próprio carro. De maneira que, tudo aquilo, era um mundo diferente. Para além disso, a minha vida desenvolveu-se em três polos, em três localidades, devido ao local onde eu morava, eu morava mesmo pegado ao patronato e, então, os meus grandes amigos e os meus grandes companheiros de brincadeiras eram os rapazes do patronato para onde eu ia e onde eu passava grande parte do tempo. Tinham lá um director ou um encarregado que era extraordinário, o padre Ribeiro, acabou por ser ele quem me casou mais tarde e era, de facto, muito meu amigo e proporcionava-me, ali, uma integração muito grande com toda aquela rapaziada. Para além disso, havia a esplanada, a célebre esplanada que hoje já não existe, que hoje é a rua Dr. Herculano da Conceição o nome do meu pai. A Câmara quis ter essa gentileza e fazer essa homenagem ao meu pai. Então, as nossas brincadeiras passavam-se, ali, na esplanada para onde acorriam os rapazes para fazer os jogos de futebol e as brincadeiras que se faziam na altura.
Enfim, tive uma infância normal. Acho que um bocado privilegiada naquele tempo, porque eu não me esqueço que o meu companheiro de carteira, na escola primária, era um rapaz que morava na Vila e hoje é quase inacreditável lembrar isso e pensar isso, mas ele andava descalço o ano todo e no Inverno vinha para a escola, andava na escola, estava sentado ao meu lado e estava descalço. Era assim, a vida e eu levava o meu lanche e a maior parte das vezes, partilhava-o com ele porque ele, coitado, tinha fome, não tinha que comer, tinha pouco que comer e talvez metade ou mais de metade dos rapazes da minha escola primária era assim. Hoje, as pessoas têm dificuldade em perceber isso e quando hoje digo isso aos meus filhos eles não entendem ou acham que realmente foi uma situação muito difícil, mas era assim a vida do momento. Para além disso, claro, as brincadeiras normais. Não quer dizer que só tivesse colegas pobres. Tinha outros colegas que andavam também na escola do patronato, muitos outros como o Xavier que é o irmão do actual presidente da Junta da Sé, o irmão do Dr. Telmo Moreno, Rui Moreno que hoje é desembargador, enfim, tinha outros rapazes que singraram na vida, tiraram os seus cursos mas, a grande maioria… eu tenho imenso gosto em vê-los, e vejo-os muito frequentemente por aqui, eram rapazes de gente modesta e humilde porque, naquele tempo, as carências na cidade eram muito grandes.
Fui sempre um aluno, não direi muito bom aluno. Fui um aluno sem dificuldades e os anos foram passando. Nunca reprovei. Não posso dizer que gostasse muito de estudar, mas lá estudava aquilo que era necessário e indispensável e lá fui passando os anos normalmente. Depois, havia as longuíssimas férias de verão, as férias grandes que a gente passava por aqui porque, na altura, não se pensava em ir de férias para fora da cidade. Ir de férias era continuar na cidade sem trabalhar. As pessoas estavam de férias, passavam a ir para o café, não iam ao emprego e eram assim as suas férias. Acabei por ser um bocadinho privilegiado porque, houve um ano ou dois em que fui de férias para as praias e aquilo foi uma coisa realmente do outro mundo.
Como é que um transmontano resolve ser marinheiro?
Isso é uma coisa engraçada. Uma vez, numa festa, no cinquentenário, do Liceu, convidaram o Almirante Sarmento Rodrigues que tinha sido aluno do Liceu de Bragança, e o meu pai, que tinha um camarote porque era médico da polícia e, como tal, a polícia tinha um camarote no cine teatro Camões. Chamava-se assim, na altura. Ele tinha direito de ir para esse camarote e levava-me sempre com ele, às vezes, até filmes não adequados à minha idade e eu sempre muito preocupado porque estava lá o Dr. Carmona e Lima que era o homem que fazia essa fiscalização das idades e eu lá ia assim um bocado…Nessa comemoração do aniversario do liceu o meu pai falou com o Almirante Sarmento Rodrigues, pois tinham sido colegas do liceu e apresentou-me. Conversámos e o Almirante, enfim, já não me lembro muito bem, sinceramente… ter-me-á dito:“Não queres ir para a marinha? Temos aqui um marinheiro.” E eu comecei a pensar nisso.
Tinha um outro colega que era de Freixo de Espada à Cinta, o Elói, que já morreu e que, também, recebia muita influência dessa família Sarmento Rodrigues, que também falava muito nisso e nós éramos muito amigos. Acabámos por começar a pensar nisso e assim foi amadurecendo a ideia. Eu fiz o sétimo ano e andei um ano no Porto em Engenharia Civil mas, aquilo não deu nada. Cheguei a Maio e vim embora e disse que queria ir fazer as provas para a marinha. Assim foi. Fui e lá fiquei. E assim, um transmontano foi para a marinha.
O seu currículo é vastíssimo e extremamente diversificado. Foi muito difícil convencê-lo a dar esta entrevista ao “Nordeste com carinho”. No entanto, o seu currículo mostra-nos que o mundo é a sua casa pois já esteve em diversos países. Fale-nos brevemente das suas muitas missões enquanto Comandante de vários navios da Armada Portuguesa.
Efectivamente, eu tive a sorte na minha vida de Oficial da Marinha, de ter corrido o mundo todo o que não é regra geral. Há muita gente que acaba por ir para a marinha e passa grande parte do seu tempo em secretárias, em missões em Portugal.
Eu tive sorte porque comecei a minha vida de oficial da marinha numa primeira comissão nos Açores. Estive duas vezes durante seis meses em missão de fiscalização numa patrulha nos Açores como guarda marinha, que é o equivalente a tenente, alferes acabado de sair da escola naval, tinha eu vinte e um anos. Acabei a minha vida de marinha, voluntariamente, porque decidi optar por outro modo de vida.
Passei à reserva com cinquenta e dois anos e acabei a vida de marinha numa comissão no mar, a célebre ida ao Golfo na primeira guerra do Golfo, no célebre navio São Miguel que, enfim, tantas peripécias passou e acabou por ser, não sei se se recordam, afundado, carregado de munições já fora de prazo, que eram as munições todas que estavam nos paióis, na zona onde hoje está o Parque das Nações.
Comecei pelo princípio e fui logo ao fim. No meio, tive várias missões. Fui praticamente a todo o lado. Também tive a possibilidade, durante a minha vida da marinha, passar pela Escola Naval como professor, onde acompanhei várias viagens de instrução de cadetes, quer na Europa, quer na América, Bermudas, Venezuela… enfim todo o lado. Claro que as vivências são muito grandes, são muito fortes e tem uma característica que, às pessoas faz-lhe uma certa confusão a vida a bordo de um navio. A gente vê aquele pedaço de metal, aquele barco que parece um fuso comprido. Lá dentro a vida é normal, tem-se os seus compartimentos normais, os quartos, que nos navios se chamam camarotes, tem as salas de refeições, que são as câmaras, têm depois as partes operacionais onde se desenvolvem todas as operações militares, tem a ponte que é onde se comanda o navio.
É um quartel flutuante…
É um quartel flutuante. A vida a bordo não é fácil. Imagine o que é, para dar o exemplo, para mim mais recente, da ida ao Golfo. Fui lá duas vezes, em duas missões. Imagine que Portugal disponibilizou um navio já obsoleto, a que foi necessário fazer muitas adaptações para poder cumprir a missão e, portanto, com o stress do desconhecimento exacto de para onde se ia, porque, não nos esqueçamos, foi a primeira vez que as Forças Armadas Portuguesas tiveram uma missão deste género porque até aquela altura o que é que faziam os militares? Os militares existem para quê? E dizia-se, tradicionalmente: para defender a pátria, para lutar pelo nosso território.
Isto foi a primeira vez em que um navio foi intervir numa missão extra território nacional. Depois, havia o problema e o medo dos mísseis e havia aquela coisa do desconhecido: “Para onde é que se ia, o que é que iríamos encontrar e durante quanto tempo?” A missão durou de Novembro a Abril, portanto, durante estes meses, todos, sessenta pessoas, sessenta homens a viver naquele espaço com todas estas preocupações, com todos estes stresses… não é fácil gerir estas dificuldades e estes problemas mas, enfim, consegue-se. Há uma compreensão muito grande e, sobretudo, há ali um problema muito grande que é quando, por exemplo, há situações de perigo ou de temporal, de mau tempo, em que tanto sofre o Comandante como sofre o grumete menos graduado. O enjoo é para todos, o perigo é para todos. Há ali uma comunidade muito grande e depois há, enfim, toda uma formação que as pessoas vão tendo ao longo da sua vida como marinheiros em que se habituam a ver, no comandante, quase um senhor todo-poderoso.
O comandante, a bordo de um navio, tem poderes para tudo. Até pode fazer casamentos a bordo. O comandante do navio tem essa possibilidade se, eventualmente, levar alguma mulher como passageira. Hoje já há mulheres militares, no meu tempo não havia.
De 1985 a 1988 foi o representante português na NATO, na Agência Aliada de Rádio Frequência, a RFA, onde participou em diversas reuniões em Bruxelas, Otava, etc. Fale-nos dessa experiência.
Foi uma experiência muito interessante sobretudo porque eu era representante da Comissão Rádio Frequência e, nessa comissão, é onde se gere o aspecto rádio eléctrico. Ora, o aspecto rádio eléctrico é um bem muito escasso. Há que o gerir muito bem. Há que atribuir as frequências pelos vários países e essa agência faz a distribuição das várias frequências pelos vários países da NATO. Nesse fórum, discutiam-se todas as problemáticas e interferências e a distribuição desse suporte de comunicações que, de facto, é fundamental para todos mas, essencialmente, para os militares.
Curiosamente, isto vem quase a propósito, numa dessas conferências em que estive, discutiu-se e aprovou-se um novo sistema de socorro e salvamento marítimo, o célebre GMSS (Sistema Global por Satélite Móvel). Isto já lá vão vinte anos ou mais, nessa conferência que durou cerca de um mês em Genebrana UIT, União Internacional de Telecomunicações.
Todos os países concordaram que o sistema existente não satisfazia e que havia que criar um novo sistema o que foi aprovado. Decidiu-se um prazo de cinco anos para todos os países aderirem ao novo sistema de socorro e salvamento.
Foi muito interessante porque havia contactos… estes contactos, já não no âmbito dos navios mas, no âmbito de fóruns internacionais, onde estavam representantes de todos os países da NATO, não só representantes militares mas, representantes das autoridades nacionais nesse âmbito e, de Portugal, na altura, eram os CTT, passando mais tarde a ser Comunicações Tele Portugal e depois Portugal Telecomunicações… e, claro, os pares dos outros países.
Foi várias vezes representante de Portugal em muitas missões. Qual delas foi para si a mais significativa?
É difícil de responder. Ao nível de navios e de viagens, foi uma viagem que eu fiz à Venezuela e ao Brasil logo a seguir ao 25 de Abril, em Junho, em duas viagens de instrução de cadetes. A primeira, ao continente americano e uma segunda, com cadetes já do quarto ano, ao sul da Europa. Foi, de facto, uma experiência extraordinária porque, a gente via a surpresa que o navio causava, um navio que lá fora era tido como um navio de um país onde estava a haver uma revolução comunista. Era isso que as pessoas pensavam e então olhavam para nós de uma maneira um bocado, enfim, como se imagina e depois, acabavam por verificar que não era nada disso que se passava, que nós éramos pessoas que realmente tínhamos participado no derrube de um governo que não servia. O espanto era enorme.
Havia convívios entre as populações locais e as marinhas desses sítios e, no fim, tudo acabava em bem e deixavam de nos ver como perigosos comunistas para nos verem como militares normais.
Sabe, as viagens e, sobretudo, antes do 25 de Abril, davam ao pessoal da marinha e, a mim particularmente, uma abertura muito grande. Nós tínhamos a noção que, de facto, o Portugal onde estávamos não servia. Havia aqui qualquer coisa que estava mal. Eu, por exemplo, julgo que para a maior parte das pessoas daquela idade, 18, 19, 20 anos, a nossa formação política era muito… era praticamente nula. No liceu a gente aprendia a disciplina de organização política e administrativa da nação. Era essa a nossa formação política, que dizia o que é que era o Presidente da República, o que era isto o que era aquilo; a Concordata. Havia um espaço enorme dedicado à Concordata, e era essa a nossa formação política.
A gente, ou se formou com por si própria ou, de facto, não tínhamos essa formação e acabamos por adquiri-la… a marinha acabava por ajudar porque, indo lá fora, víamos muita coisa, tínhamos muitos contactos e uma abertura que era muito importante.
Isto tudo para lhe dizer que, o que me marcou, foi toda a minha vida de marinha, que me habituou e ensinou a ver o mundo de maneira diferente e a ver, realmente, a importância da liberdade e a importância das pessoas terem oportunidade de pensarem o que quisessem e de não haver delitos de opinião essas coisas todas e, sobretudo, o grau de desenvolvimento dos outros países.
Portugal era, de facto, nesses anos, um país muitíssimo atrasado. Lembro-me, isso, hoje, é ridículo, mas lembro-me de que, quando ia lá fora, trazia para a minha família, para os meus filhos e para a minha mulher, coisas ridículas que não havia cá. Trazia coca-cola, que era uma coisa do outro mundo. Não havia coca-cola. Trazia queijos, daqueles queijos franceses e belgas; trazia bombons, uns bombons belgas que não existiam cá; livros que aqui eram proibidos. Viam-se filmes que cá não se viam. Era todo um mundo diferente.
O que lhe apraz dizer da situação que se vive hoje um pouco por todo o mundo desde o Iraque até à Coreia do norte.
Vejo isso com preocupação, com muita preocupação, porque acho que os grandes responsáveis políticos a nível mundial, não estão a ver bem o problema e tudo isso, terá que ser visto na sequência da queda do muro de Berlim. O muro de Berlim e a guerra fria funcionaram como um travão àqueles dois blocos. Eles equilibravam-se, ameaçavam-se uns aos outros mas aquilo estava mais ou menos estável. Hoje, não sei se se poderá acusar o governo americano de tentativa de hegemonia. Se calhar, sim. Se calhar, não. Mas, provavelmente, sim. Eles querem ser os polícias do mundo. Querem ter uma hegemonia muito grande e vão, na minha opinião, actuando mal, fazendo intervenções muito discutíveis e, há por outro lado, a tendência hegemónica do Islão, que querem ser potências regionais. O problema dos israelitas é um problema muito grave. Entendo que eles têm direito à sua pátria, mas não lhes tem sido reconhecido. Tem-se dado alguns privilégios e reconhecido alguns direitos, que não reconhecem a outros países da zona e tudo isto… não sei onde é que isto irá parar.
O mundo sobreviveu a duas guerras mundiais. A terceira guerra mundial, a existir, poderá ser atómica?
Eu acho que não. Acho que não porque, apesar de tudo, o bom senso há-de imperar. Não acredito que haja, hoje, alguém que seja capaz. Antigamente, o Presidente dos Estados Unidos da América e o Primeiro-ministro russo, andavam com um “telefone vermelho” atrás e seriam conhecedores de um código para mandar disparar a bomba. Não quero acreditar que isso possa acontecer hoje. É uma questão de fé.
Muito se tem falado da modernização e apetrechamento das Forças Armadas Portuguesas, principalmente, da Marinha, através da aquisição de submarinos e navios de guerra. Não acha que seria melhor apostar na qualidade e não na quantidade?
Isso, para mim, é um dogma. Eu acho que sim. Acho que Portugal, sendo um país pequeno e com as limitações orçamentais que tem, deveria seguir esse caminho. Uma Marinha muito pequena mas, muito eficaz, muito especializada e muito modernizada, aliás, à semelhança da holandesa. Que, afinal, não é nada de novo. É o que fazem a marinha holandesa e a dinamarquesa que eu conheço, de algum modo, por contactos que tive e por ter lá estado e, ainda, por contactos com diversos oficiais dessas marinhas. Eles têm, de facto, umas estruturas muito pequenas mas, extremamente eficazes, muito eficientes e muito modernas.
É, realmente, uma via porque eu acho que urge seguirmos. Há um problema que eu gostava de referir: em Portugal há um bocadinho… criou-se, não sei se está na moda, o considerar menos as forças armadas. As forças armadas, curiosamente, tanto quanto eu tenho visto em toda a Europa, em todos os países mais evoluídos e mais civilizados que nós, estão a ser, cada vez mais, modernizadas e os membros das forças armadas estão a ser, cada vez mais, prestigiados.
É um exemplo curto, mas que eu tenho contado muitas vezes: Quando fui ao Golfo, a primeira vez desloquei-me duas vezes ao sul de Inglaterra a Portsmouth e, enquanto lá estávamos a preparar o navio para ir para o Kuwait, à noite, as pessoas iam passear e eu estava com mais meia dúzia de pessoas, num pub, conhecem os pubs ingleses, com aquela gente toda, toda a gente a beber cerveja e, qual não é o nosso espanto, eles têm uma campainha que toca às onze da noite. Quando toca a campainha fecha-se, não se servem mais cervejas. Quem quer beber toda a noite, manda vir, por exemplo, dez cervejas mas, após o toque não servem mais. A certa altura, estávamos nós, ainda não eram onze da noite, nem nada que se parecesse, toca a campainha. Parou a música, parou tudo e há lá um fulano que sobe a uma mesa com um copo de cerveja na mão e disse assim: “Agora vamos beber aos nossos compatriotas que estão no Golfo”.Então, toda a gente bebeu, bateram palmas e a coisa continuou. Isto, a mim, marcou-me de uma maneira… Acho que isto não aconteceria em Portugal. O carinho com que alguns povos tratam os militares e as forças armadas, e entendem que as forças armadas são um bem, uma necessidade do país, não se vê em Portugal. Claro que têm de ser credíveis, bem equipadas, modernas, porque são muito caras, é muito dinheiro. Concordo que é esse o caminho.
A reorganização das forças armadas vem-se processando lentamente. Não acha que se podiam simplificar as estruturas de comando e profissionalizá-las totalmente?
Eu acho que sim e desde sempre, em conversas de câmaras, aquelas tertúlias que a gente fazia a bordo dos navios, quer em conversas com almirantes, enfim, pessoas mais responsáveis, sempre houve um grupo muito grande de oficiais no qual eu me incluía que achávamos que haveria que reorganizar, redimensionar as forças armadas portuguesas porque, as Forças Armadas estão, praticamente, iguais em dimensão e estrutura que tinham para a guerra colonial. Já terá havido algumas remodelações mas, de facto, precisavam de uma reestruturação muito grande.
Acho que é inadmissível, em Portugal, haver, por exemplo, e vou dizer um número que não sei se tem alguma correspondência, mas deve estar muito próximo, haver cinquenta oficiais generais, cinquenta almirantes e cinquenta generais. Não pode ser. Alemanha há quatro ou cinco.
Acha que as funções da NATO se sobrepõem à ONU?
Não. Acho que se complementam. As Nações Unidas não têm forças armadas. A ONU pede aos países que as disponibilizem e que cumpram as missões que lhe atribuem. Não se pode, propriamente, falar de forças armadas das Nações Unidas, enquanto, das forças da NATO sim.
A guerra colonial marcou-o muito?
Olhe, eu fui para a guerra colonial com 23 anos. Hoje, olhando para trás, para os nossos jovens e eu, olhando, inclusivamente, para os meus filhos, o meu filho mais velho já tem trinta e tal anos, quando ele tinha 23 anos, eu pensava: “Com a idade deste miúdo, fui para a guerra colonial”. Fui comandante de uma lancha de fiscalização para o rio Zaire onde tinha à minha responsabilidade sete pessoas, um dos quais era o mestre. O mestre é uma figura que, na marinha, existe nos navios. É uma espécie de encarregado geral, responsável pela manobra. O mestre tinha idade para ser meu avô. Eu, com 23 anos, lá fui e, como eu, houve tantos! Andamos centenas e centenas de horas rio Zaire acima, rio Zaire abaixo, com a possibilidade de sermos atacados e de nos defendermos e isso marcou-me muito. Um miúdo, que sentia o peso da responsabilidade daquelas vidas porque, de uma decisão minha, dependia a vida daquela gente.
Estive na Guiné e, também, em Angola onde não tive qualquer contacto de fogo. Na Guiné tive várias. Na Guiné fui comandante de um navio maior, de um navio que tinha sessenta e tal pessoas. Existiam três navios daquela classe, com a responsabilidade de toda a logística da Guiné e pelo transporte de todas as tropas que vinham do continente e a sua distribuição pelo território. Era uma responsabilidade muito grande e um peso muito grande e, a gente sentia que de uma decisão nossa dependia muita coisa. Dava que pensar e eu interrogava-me muitas vezes o que andávamos ali a fazer, se valia a pena, se era justo porque, a gente, entretanto, começou a informar-se começou a ler coisas, começou a abrir o seu espírito e havia situações muito complicadas.
Tenho um respeito muito grande pelos movimentos de libertação e acho que tiveram um mérito enorme. Eles não tinham meios, não tinham… viviam num meio muito adverso com dificuldades e carências de tudo e lá sobreviviam, lá lutavam connosco e lá… e na Guiné, não sei se vou dizer uma barbaridade mas, na Guiné, praticamente, ganharam a guerra quando se deu o 25 de Abril e quando nós começámos a pensar na descolonização. Penso que, na Guiné, era coisa de meses. Eu acabei a minha comissão no dia, exactamente, em que os movimentos de libertação deitaram abaixo o primeiro avião português, com um míssil terra ar. Ora, quando se chega a esta situação é porque está tudo muito mal.
A sua vida profissional tomou outro rumo. Fale-nos dele.
Acabei a missão no Golfo e comecei a deitar contas à vida, como se costuma dizer. Eu tinha trinta e seis anos de serviço, muitas horas de navegação e surgiu a possibilidade de mudar de vida.
Achei que não devia ter casado com a marinha e que havia outras alternativas e assim foi. Decidi passar à reserva e encontrei outra actividade de que, também, gostava muito e era a minha especialidade na Marinha: Telecomunicações. Entretanto, começava-se a regularização dos sectores. Hoje há regulação de tudo. De electricidade disto e daquilo mas, o primeiro organismo de regularização das telecomunicações, foi o Instituto das Comunicações de Portugal. Acharam que eu tinha algum conhecimento na parte da gestão das frequências militares que, para eles era muito importante, já que era necessário haver partilhas e chegar a negociações complicadas e convidaram-me a ir trabalhar com eles como interlocutor e assim foi. Estive dois ou três anos como assessor da administração do Instituto das Comunicações de Portugal.
Entretanto, surgiu-me outro convite, esse mais ligado à minha área que foi o sector das pescas e entretanto acabei a minha vida activa a gerir um centro de formação profissional do sector das pescas em Sesimbra por onde passaram alguns milhares de pescadores que fomos formando, dando-lhes uns rudimentos e não só. Dependia do grau de candidatura e do curso que estavam a frequentar e lá contribui, da minha maneira, para a formação desse sector, da pesca.
Entretanto, de certa maneira, por achar que já chegava, já era tempo bastante, por outro lado, tive um problema de saúde que me fez pensar se devia continuar ou não. Por outro lado, começaram a nascer os netos e decidi que já chegava e abandonei completamente a actividade profissional e estabilizei-me em Lisboa.
Agora, julgo que, finalmente, conseguirei concretizar um projecto e um sonho que tenho há muito tempo que é vir para Bragança. Não virei, se calhar, definitivamente, para Bragança. Como compreendem, são cinquenta anos a viver em Lisboa, mas virei com alguma frequência, com certeza. Já tenho aqui um sítio para ficar. Ando, aliás, a pensar nisso e terei aqui uma casa para vir cá passar umas temporadas. Os meus netos adoram vir para aqui e assim será.
Ficamos muito contentes por saber isso. Todos os filhos devem, mais cedo ou mais tarde, regressar à terra que os viu nascer. Falemos, então, desta terra, desta Trás-os-Montes. Estará condenada à desertificação?
Eu não sei se está condenada ou não. Sei que se assiste a essa desertificação. Nós transmontanos, bragançanos, não devemos deixar que essa desertificação aconteça. E como é que o podemos fazer? Podemos fazer de diversas maneiras: pressionando os nossos representantes para que pressionem quem tem o poder para que isso não aconteça. Uma coisa que eu acho, se calhar, não é muito politicamente correcto, mas o que eu acho é que às vezes os nossos representantes locais estão tempo demais nos sítios. Entendo que não interpretaram bem o sentir das pessoas. Se calhar, interpretam outros sentires e outros interesses, mas não interpretam bem os nossos sentires e acho que deviam fazê-lo junto de quem de direito, sentir, de facto, os nossos problemas. Se calhar, fazem alguma coisa, mas não é suficiente, aquilo que fazem. Tem é que se fazer alguma coisa e não nos podemos contentar com promessas que os políticos fazem quando lhes convém e quando é oportuno, de que vão por Bragança no mapa e, Bragança continua fora do mapa.
Esse é um aspecto mas, há outro, aquele que nos compete a nós que é pôr Bragança no mapa. Não devemos estar à espera que sejam os de fora a pôr Bragança no mapa. Devemos ser nós a lutar por pôr Bragança no mapa e a dar o primeiro passo.
Eu vejo com alguma mágoa porque vejo televisão, leio jornais e vejo com muita frequência, notícias de todas as cidades do país, de todas as capitais de distrito que têm bienais de dança, bienais de arte, feiras disto, feiras daquilo, que levam muita gente a deslocar-se às localidades. Eu nunca vejo uma notícia de Bragança. É uma coisa impressionante. Nunca acontece nada em Bragança, ou escapa-me mas, coisas que tínhamos em Bragança de que me lembro quando era miúdo e que se têm perdido, o que é uma pena: a Feira das Cantarinhas, por exemplo. Essa feira, quando eu era miúdo, era uma alegria, era uma festa pelas ruas da cidade. Ali, pela rua onde o meu sogro tinha o comércio, por ali abaixo, havia todas aquelas coisas como o cebolo, as cerejas, as cantarinhas, mas de uma maneira bonita, bem expostas, de uma maneira rural. Agora, a Feira das Cantarinhas, é uma barracada lá em cima, com tudo mal-amanhado, mal posto. Aquilo é terceiro mundo. Eu estive em Marrocos várias vezes, Egipto e faz-me lembrar essas terras. É uma coisa sem gosto, sem jeito. Perdeu aquela característica que me atraía. Este pode parecer um pormenor, mas é grande.
Este tipo de coisas é importante fazê-las como contributo para evitar a desertificação. Em primeiro lugar, devemos colocar as acessibilidades, que são fundamentais, não enquanto acessibilidades em si, como fim último, mas as acessibilidades como meio de mobilidade e de dinamismo social, económico e cultural. Não podemos continuar a ser o único distrito que não tem um centímetro de autoestrada. Não podemos continuar e isto, com todo o respeito que eu tenho pelos ecologistas e pela natureza, é necessário defender o homem, proteger o homem, para que o homem tenha melhor vida. Então, não se pode, em nome de rato qualquer, do não sei quantos, proteger o rato, dificultando ou estragando a vida do homem e eu ouvi falar que havia a hipótese de fazer uma estrada estruturante para o distrito que é o IP2, que atravessaria a Lombada e que ia para a autoestrada das Rias Bajas, que terá sido chumbada por questões ecológicas, ou por questões ambientais. Sim senhor. Se calhar há que proteger. Se calhar, o sítio não é o melhor mas, se calhar, poderia passar por outro lado e talvez se conseguisse.
Se calhar, a solução mais fácil é não se fazer…
Claro. A solução mais fácil é não se fazer. Outra coisa que tem de se fazer, em minha opinião, para lutar contra a desertificação, é parar esta sangria dos serviços públicos. Não pode ser, porque a cidade esgota-se, esvazia-se… indústrias há poucas e Bragança nunca teve essa característica, nunca se fixaram cá indústrias, nunca houve essa motivação ou condições. Então, se os serviços públicos se vão embora, Bragança fica esgotada, fica esvaziada. Aliás, temos exemplos bem próximos, do que as acessibilidades e o dinamismo podem fazer numa cidade ou numa região que é o que se está a passar em Chaves com o chegar da autoestrada, onde uma grande empresa, julgo que a UNICER se vai instalar. Vão fazer uma plataforma de tráfego, várias coisas que estão ali em vias de se fazer e depois, claro, de forma suscita, acho que são as acessibilidades a dinamizar a parte social, cultural e económica, a não retirada dos serviços públicos e a nossa melhor característica: somos muito boa gente, coração aberto, porta aberta, mas somos um bocadinho fechados e acho que temos de nos abrir um bocado aos nossos vizinhos.
Outra coisa que me faz espécie é, por exemplo, não haver transportes regulares para a Puebla, para Zamora, para Alcañices… poderia haver. Poderia haver uma interligação, uma aculturação. É uma situação que faz sempre os povos avançar.
Com a minha experiência lhes relato uma coisa, nessa conferência em Genebra que fica junto à fronteira da França e eu estava instalado num hotel em França e ia e vinha todos os dias para Genebra de eléctrico. Havia um eléctrico que fazia o trajecto. Em França os hotéis eram mais baratos. Instalei-me lá, deslocava-me para a conferência e, à noitinha, vinha para trás de eléctrico e a Suíça não é da União europeia. Não havia essas facilidades todas mas, na fronteira, aquilo era fácil. O eléctrico chegava à fronteira, um senhor olhava para as pessoas e tal e dizia: “Siga”. Tem que haver esta mobilidade e tem que haver esta interligação.
Para terminar, que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?
Eu sei lá! Desde logo, e julgo que não poderia deixar de ser, o meu pai. O meu pai foi uma personalidade que me marcou muito. Acho que as pessoas mais velhas, mais antigas da cidade se lembram dele. Foi uma pessoa com umas características muito especiais, muito devotado à sua terra, a ponto de a câmara ter feito a homenagem de dar o seu nome a uma rua. Era uma pessoa muito aberta muito disponível, muito boa. Na altura, as dificuldades eram muitas e lembro-me perfeitamente de ele trazer, eu andava muito com ele e ele trazia o banco de trás do carro e aquela parte do vidro de trás cheia de medicamentos para dar às pessoas. Ia para as aldeias, dava as consultas e as pessoas que não tinham dinheiro para pagar, não pagavam. Ele não só dava a consulta, como passava a receia e dava os remédios e o mesmo se passava aqui no consultório. Ele era uma pessoa realmente muito humana e durante muitos anos, foi Presidente da Comissão de Assistência, uma espécie de segurança social da altura e era-lhe atribuída uma verba que ele tinha a possibilidade de gerir, administrar e distribuir por quem precisava e eu julgo que ele fez isso com muita equidade a ponto de, com algum exagero, muitas vezes pessoas velhotas que estão no lar onde também está o meu sogro, me dizerem: “Ai, o seu paizinho era o pai dos pobres.”É imagem, mas tudo isto marca e tudo isto me deu um sentido do humano muito grande.
Outra pessoa que me marcou muito foi o Almirante Sarmento Rodrigues de quem já aqui falamos e que eu acabei por conhecer daquela forma que lhes disse. Acabei, pela minha profissão, por ter oportunidade de o conhecer melhor. Ele era o director e comandante da Escola Naval e era, de facto, uma personalidade extraordinária, uma pessoa com muita competência, muito íntegra, muito vertical, de um profissionalismo muito grande e foi, verdadeiramente, um grande exemplo de vida para mim.
Sem comentários:
Enviar um comentário