domingo, 14 de outubro de 2012

Entrevista: Dr. Arnaldo Cadavez


Bem-vindo ao “Nordeste com carinho”. Chamámos à sua entrevista “À procura do que é nosso.”

A primeira coisa, e eu lamento e tenho que pedir desculpa aos responsáveis do programa, aos autores, que eu não estava a par desta designação que, na verdade, é uma expressão que me enternece, “Nordeste com carinho” e eu não tinha chegado ao conhecimento desta belíssima expressão “Nordeste com carinho”, precisamos muito.

Temos carinho pelo Nordeste e pelas pessoas que por ele tanto fazem. Por isso é que está aqui hoje… Nasceu em Ferradosa, pequena aldeia do concelho de Mirandela. Que recordações guarda da sua meninice, da sua juventude?

É muito interessante e é curioso porque tantas vezes tenho dado conta de mim próprio a dizer-me o seguinte: Todas as minhas idas ao passado têm sempre a ver com a minha aldeia e nessas idas que são figurações mentais do que foi a minha infância, pergunto-me, eu próprio, porque é que me aparece sempre a imagem dos olivais que se estendem a sul e a sul poente da minha aldeia e, associados aos olivais, os ninhos. Os ninhos, porque os ninhos nas oliveiras, daqueles pássaros a que nós chamávamos lá, os chinchilhões, era a expressão usada pelo povo de Trás-os-Montes, tentilhões. Nós dizíamos chinchilhões e os ninhos também se me prefiguram sempre, talvez, pelo facto de eu ficar frustrado em criança, pois eu era incapaz de dar com um ninho se os outros garotos da minha aldeia me apontassem com o dedo a poucos centímetros para verificar que estava lá um ninho e depois, mais tarde, eu associei estas imagens, aquilo que eu considero sempre uma componente, um património invulgarmente belo de Trás-os-Montes que é aquilo que eu chamo os ambientes, as paisagens, os recantos bíblicos do nosso Trás-os-Montes, terra quente, os olivais. Ao que nós chamávamos as baixas, a nora com a pavieira, aquela árvore do fruto extraordinário que é a pavia que, para mim, é o fruto mais deslumbrante do mundo. Aquilo que aqui na zona da terra fria chamam pêssego de rilhar e hoje…
Se vê que estou a adiantar-me demais nas considerações pode interromper-me quando quiser…
Hoje olho para trás e quando verifico, neste momento, que certos pormenores desses recantos bíblicos como as noras, e o saber e ter constatado que algumas foram, simplesmente, arrasadas. Não houve quem transmitisse às pessoas do nosso campo, este tipo de sensibilidade que é manter uma nora como manter um pombal, como manter uma curriça… Pode estar a fazer parte do património, valor para o futuro. Há esse conjunto de coisas, como certo tipo de paredes, que separam as propriedades que bordeiam os caminhos…

Coisas características de Trás-os-Montes…

Exactamente, exactamente.

Foi seminarista e mais tarde frequentou o liceu de Chaves. Como era ser estudante, naquela altura, em Trás-os-Montes?

Ser estudante em Trás-os-Montes e recuo aos tempos em que foi feita a quarta classe, que implicou ir a pé desde a Ferradosa à Torre de Dona Chama, onde havia um médico que era natural da minha aldeia, Ferradosa, de uma família de uma casa abastada para tirar um certificado, um atestado médico. A viagem na carreira da manhã para a Torre de Dona chama de nove quilómetros mas, como rapazinho de dez, onze anos, ainda não era vulgar fazer a pé mas, muitas vezes, com doze, treze e catorze anos e fazíamos com gosto. Íamos às feiras da Torre de Dona Chama que eram ao dia dezassete de cada mês e, portanto, aí vai o rapazinho acompanhado de seu pai na carreira. No regresso, isto porque estava já na altura da caça, viemos a pé desde a Torre de Dona Chama à Ferradosa porque o meu pai aproveitava para matar umas perdizes e ter algumas peças de caça. Era a grande oportunidade para termos em casa carne porque, naquela altura, comia-se nos dias de festa, aos domingos, meio quilo de carne. Íamos da Ferradosa à Bouça ou a Vale de Gouvinhas e o recado era trazer três quartos de quilo de cordeiro. Hoje, os antípodas disto é  a abundância, hoje é a abarrotar. Hoje as doenças são consequências dos excessos e naquela altura, quantas vezes, consequência das carências, das privações.

Depois dos estudos secundários foi para Coimbra, onde se licenciou em Direito. O que o levou a seguir esse caminho?

Perdi a oportunidade de lhe ter explicado porque fui para o seminário. Dentro daquele quadro, daquele quadro que era um quadro próprio, na altura, dos filhos das famílias pobres das aldeias, pretendendo que os seus filhos tivessem algo mais que aquele destino, que era de vida dura, de vida cheia de adversidades, da agricultura. Os nossos pais usavam a expressão: “A ver se livramos os nossos filhos da lavoura.”, porque a lavoura dava pouco. Era uma actividade de subsistência, com todo o encanto que tinha, com todas as suas privações e que hoje, muitas pessoas até mais idosas que eu, traduzem de uma maneira muito interessante.
Tenho ouvido aqui na rádio (RBA), reportagens que são feitas a pessoas das aldeias e, curiosamente, já ouvi várias vezes esta expressão: “Sabe, antigamente havia pobreza, não havia a abundância que há hoje. Hoje há de tudo, mas não sei se não havia outra alegria”. Havia, no sentido da vida. Havia uma solidariedade natural, espontânea.
Eu, nesse quadro daqueles valores típicos da aldeia, vou para o seminário, mas eu fui para um seminário não diocesano, destes de dioceses. Eu fui para um seminário de missionários em Fátima, quase quatrocentos e cinquenta quilómetros da aldeia. Implicava sair da Ferradosa de manhã, apanhar a carreira às oito da manhã para chegar a Mirandela às nove e meia, esperar que o comboio nos levasse até ao Tua, chegar ao Porto às sete e esperar pelo comboio-correio. Chegávamos às sete ao Porto e… o fascínio que era no Porto! Aquele ambiente da estação de São Bento com o comboínho que girava, onde se metia uma moeda para tirar um bilhete com o peso e vinha lá traçado um destino, uma sina não é? Aqueles curgidosos que tentavam impingir, vender umas certas canetas de tinta permanente, era uma coisa invulgar uma caneta de tinta permanente… Para chegar a Fátima, onde havia o Seminário de Missionários pelas seis e meia da manhã. Quase vinte e quatro horas para fazer os tais quatrocentos e cinquenta quilómetros e eu digo isto porque, também, está sempre presente quando eu vejo em retrospectiva a minha vida porque, do seminário me ficaram muito boas recordações, sobretudo, no que respeita à formação. Formação no aspecto humanístico, o sentido em que nos incutiam valores autênticos, os valores da solidariedade, do amor ao próximo. Eram de facto missionários a sério e eu tenho que dizer: Havia uma certa diferença dos seminários diocesanos.
Essa boa formação até terá sido prejudicial para pessoas como eu que desejam que na vida haja algum conforto material. Acho que era preciso terem-me incutido que a vida não é para viver com ingenuidade e aí, eu creio que terei sido… isto é uma forma de dizer, de ser pragmático e fazer teoria na medida em que me incutiram valores tão positivos e eu acreditei que o mundo era muito melhor do que aquele que, realmente, eu vim a verificar que é. Não é assim tão bom como eu esperava que fosse.

Uma pessoa que sai do Seminário Missionário, opta por Direito em Coimbra. O que é que o levou a seguir esse caminho?

Depois de feitos quatro anos nesse seminário, tive de fazer um exame, chamado de transição, para o liceu que, curiosamente, fiz aqui em Bragança. Estive quase em vias de me deixarem passar para o sexto ano devido à minha boa formação e ao saber acima do normal mas, houve alguém que entendeu que não e eu, portanto, entrei para o liceu para o quinto ano. Depois, em consequência de conveniências familiares, fiz a transição para o liceu e fui fazer depois o quinto ano, sexto e sétimo anos ao liceu em Chaves. Isto, em consequência de uma irmã que ajudou muito a família que tinha feito um curso na Escola Comercial e Industrial e que nos ajudava. Eram os pais e depois essa irmã mais velha que, também, vive aqui em Bragança, que deu essa ajuda aos irmãos. Temos um irmão médico, especialista em ortopedia, que trabalha no Hospital de Santarém. Isto deve ser referido porque eu sei que é comum a muitas famílias de Trás-os-Montes e aqui em Trás-os-Montes tem algo de particular, que é uma característica das famílias do interior em relação a outras do litoral. Nós, marcadamente rurais, essencialmente rurais e vivendo as famílias, exclusivamente, da agricultura e, no litoral, as famílias já viviam dos trabalhos, já havia um certo proletariado e era uma ajuda, um complemento dos rendimentos tirados da fábrica. Depois de feitos esses estudos secundários, vou para Chaves. Recuando nas minhas memórias, Chaves aparece-me sempre como aquilo que nós chamamos o jardim das freiras.
O que era o jardim das freiras? Era um jardinzinho em frente ao então Liceu Nacional de Chaves, belíssimo. Os quintos, sextos e sétimos anos eram os dezasseis, dezassete, dezoito anos. Naquela idade em que, enfim, naquele jardim onde passavam as meninas e os rapazes que iam para o liceu…

Era um jardim florido…
           
Era um jardim muito florido. As aventuras e a sala de aula que tínhamos… a janela que dava para esse jardim e aqueles cafés tradicionais. Ainda me lembro de um café chamado “bica” que custava, na altura, doze tostões o que significa, para quem não sabe, um cêntimo e doze milésimos. De Chaves também me ficaram essas belíssimas recordações de outros colegas do liceu. Houve pessoas que fizeram o liceu e depois continuaram e hoje há pessoas altamente colocadas.
Feitos o sexto e sétimo anos não houve ali nenhum drama, nenhuma situação comigo, nem com a família porque estava, naturalmente, destinado a ir para um curso de letras, tendo em conta a formação de latim, de história, aquela cadeira da literatura portuguesa que tínhamos no sexto e sétimo ano do liceu eram muito interessantes e, de modo que a minha formação implicava ir naturalmente para Chaves e porquê? Porque do lado das ciências gostava muito da física. Química não acertava uma. Na matemática não acertava nenhuma também e foi um caminho muito natural. Acabei por ingressar no Direito. Se fosse filho de famílias ricas, talvez tivesse ido para história porque era uma inclinação natural. Na altura, natural era fazer do curso, um investimento e, feito o curso de Direito era certo e sabido que escolhíamos os lugares. Tanto podíamos ir para a magistratura como seguir a advocacia como arranjar um lugar em qualquer ministério. Eu vim para este ministério que é o herdeiro do ministério das corporações, onde se ganhava mais do que ir para magistrado do ministério público. Uma consequência natural daquilo que foi a minha preparação.

Que recordações guarda do seu serviço militar realizado antes do 25 de Abril?

Do meu serviço militar, as recordações não são boas nem más. Ocorrem-me, de vez em quando, algumas passagens desse período do meu serviço militar e principalmente esta: Depois de terminado o liceu, tive um problema, uma doença que me obrigou a estar internado, o que significou um ano de atraso no meu curso e depois, graças a isso, e sabendo eu que havia gente importante, diz-se que houve pessoas que com as radiografias de pessoas que tinham esta doença conseguiam figurar como estando doentes e assim ficavam isentos do serviço militar. Eu tentei tudo para ficar isento de serviço militar porque fui à inspecção militar ao fazer os vinte anos e, justamente, quando estava a ter alta do Sanatório onde estive internado durante dez meses e os cavalheiros que depois vim a identificar, eram oficiais superiores que tinham aqueles galões que são os galões de coronel, médicos do exército e decidem remeter-me para os serviços auxiliares e eu disse: “Nem tão mal”. Já não tinha de andar de espingarda às costas, porque disso gosto para a caça, mas não para andar a matar gente e acontece que eu tive que fazer o serviço militar. E eu encarei aquilo com um sentido de contrariedade. Mais tarde vim a agradecer ter feito o serviço militar porque, depois de feita a recruta em Mafra e a especialidade em Lisboa, era a chamada Escola Prática da Administração Militar, fui seleccionado para aquilo a que se chama o Curso de Acção Psicológica e, nesse curso, éramos apenas nove agora lhe digo que foi bom o serviço militar. Aquilo acabou por representar um privilégio para mim. Deu-se o caso de que, nesse curso, dos nove especiais de acção psicológica, os meus companheiros eram um tal Dr. António Franco, que veio a ser Chefe da Casa Civil do Presidente Sampaio; era um Seixas que lhe chamávamos lá na tropa o Quicas que veio a ser Secretário de Estado dos Assuntos Europeus e é hoje embaixador ou cônsul em Brasília ou Rio de Janeiro. Também tive como colegas nesse grupo de nove, na altura dizíamos companheiros de armas, o Dr. Jaime Nogueira Pinto que veio a trocar comigo a ida para Angola por via da coerência que ele tinha e que tem e posso dizer, que é das raras pessoas que eu encontrei com uma coerência a toda a prova. Eu estava mobilizado para Angola e ele foi no meu lugar porque ele sempre defendeu, defendia na altura a tal pátria multicontinental, pluricultural e pluriétnica e, portanto, ele queria ir ao ultramar e foi no meu lugar. Havia mais pessoas, um deles veio a ser Governador Civil, um que era primo do que veio a ser Presidente da República Costa Gomes, um Dr. Cavaleiro de Antão, meu colega de Coimbra, figura destacada do CDS e havia, enfim, três, que não tínhamos um apelido sonante que era e eu e dois que foram mobilizados para Angola.

Profissionalmente tem exercido funções ao nível da Inspecção do Trabalho com um interregno de um ano e meio quando coordenou a Sub-região de Saúde de Bragança. Fale-nos um pouco do seu percurso profissional?

Na sequência daquilo que lhe disse há momentos acontece que, depois de licenciados tínhamos o privilégio da juventude de então, tínhamos que escolher um lugar e, entretanto, havia a hipótese da magistratura, a hipótese da advocacia… dizia-se nos meus meios de Coimbra que a advocacia, para quem não tinha ligações nenhumas, familiares ou de um parente próximo tornava-se difícil e, na altura, o normal era metermos um requerimento para ir para delegados do Ministério Público. Entretanto, o Ministério das Corporações, que era a expressão, a essência do regime corporativo, pagava melhor e, devo dizer, que também escolhiam as pessoas. Aguçasse-me o apetite porque o vencimento era, substancialmente, superior se compararmos o ir para Técnico Superior daquele Ministério ou para o Ministério Púbico.
Então, entrei para esse Ministério e começo a minha carreira como delegado do então Instituto Nacional do Trabalho e Previdência e, ao fim de uns meses, fui chamado para a tropa. Feita a tropa, deu-se o 25 de Abril, e eu tive a percepção de que íamos ficar uns tempos numa situação… um período em que o poder estava na rua. Houve uma certa bandalheira e isso deu-me direito a andar dois meses na borga.
Tive o privilégio de, nessa altura, ter feito o período de especialidade na tropa que era só de tarde o que significava que eu, de manhã, continuei a ter um trabalho a meio tempo em part time no Ministério das Corporações, na Praça de Londres. O que me permitiu assistir ao que foi o desenrolar desse movimento dos militares do 25 de Abril e permitiu-me, pela vida fora, ter a consciência das manipulações, e das adulterações que se fazem de acontecimentos e circunstâncias. Lembro-me muito bem que, em Fevereiro de 75, a grande manifestação a favor da universidade sindical promovida por uma força muito à esquerda e que referia que tinham estado um milhão de pessoas. No dia seguinte os jornais falavam de trezentos mil, quinhentos mil, seiscentos mil e eu e um companheiro de armas também meu colega em Coimbra, fomos à Praça de Londres para fazer a nossa medição. Nós éramos oficiais da acção psicológica e eu calculei que podíamos ter entre cinquenta mil a sessenta mil pessoas e era muitíssima gente porque juntar cinquenta, cem mil pessoas numa manifestação, atira com qualquer governo abaixo.
Em Lisboa, vivi esse período da tropa e já estava casado. Tínhamos um filho e a minha mulher estava, também, no quarto ano do curso de germânicas e pôs-se-nos a hipótese “de como é que é”? Ela sabia e eu, o meu temperamento rural. Não me sentia com à vontade para a vida de Lisboa e eu disse-lhe: “Eu tenho de ir para a minha terra”. Estávamos no final do curso e a passear na cidade de Coimbra. Falávamos do que queríamos que fosse o nosso futuro e eu lembro-me de ter dito isto: “Eu gostava de uma actividade que fosse entre turismo e agricultura”. Uma pessoa licenciada em Direito… Retomo então, essa circunstância que, face ao meu temperamento, eu vivia numa certa ansiedade. Sair da minha casa no Lumiar para ir para a Praça de Londres, Ministério das Corporações, era uma ansiedade porque eu não sabia se havia de ir a pé. Cheguei a ir a pé. Era preferível porque, a ansiedade de ir de automóvel… eu ficava tão aflito com o facto de poder prejudicar os outros, como os outros de me prejudicarem a mim. Mas, esperar pelo autocarro e depois ir, quando eu ainda fazia o serviço militar na praça, junto a Santa Apolónia no estado Maior do Exército, autocarro e metro e depois mais… isto para mim não serve. Isto servia se eu tivesse um rendimento de mil, mil e quinhentos contos por mês então sim, teria algum conforto… um simples Técnico Superior do Estado… e daí ter decidido vir para Bragança. Então ficou vago o lugar de delegado na Secretaria de Estado do Trabalho. Depois, aquele período como já referiu, isto há dez, onze anos em que cheguei a por a hipótese de que talvez pudesse fazer alguma coisa de útil, aceitar o lugar de Coordenador Distrital da Saúde e foi uma decepção. Aquilo não dá. Dá para pessoas com o perfil de político. Um político tem que ser um artista de calculismo e das manobras e não é o meu feitio.

Falou da agricultura e do turismo e foi a si que se deveu a primeira unidade do turismo rural do distrito de Bragança. Fale-nos dessa paixão.

Essa paixão é uma coisa curiosa. Isto tem a ver com um apego às origens. É ter o sentido daquilo que nós temos de bom e, quando eu procuro um sítio que pudesse ser encarado como meio ao serviço do lazer da família, aparece-me um velho moinho e disse para alguém conhecido: “Está aqui este velho moinho abandonado, tão perto da cidade… neste rio passam pescadores da cidade… é porque não vendem porque senão alguém da cidade já tinha dado umas centenas de contos por este moinho.” E diz-me a pessoa amiga que me leva lá: “Nunca se sabe. Vamos ver quem é o dono”. Eu presto homenagem a um senhor a quem chamavam Ginja que me leva lá e a quem comprei uma peça insignificante um oratóriozinho de madeira e o senhor António Ginja que já morreu, leva-me ao António Rasga de Castrelos, que vendia e como é que ninguém comprou isto? As centenas de contos que paguei, para o esquema mental das gentes daqui, era caro. Quando eu o adquiri, lembro-me de um dia entrar numa aldeia e ouço uma senhora que diz assim: “Olha, vem ali o homem do moinho ele para que o quererá?” e diziam: “Que sorte teve o Rasga.” Uns tempos depois, quando viram para que se destinava, diziam assim: “Afinal o Tonho Rasga deu-lhe aquilo dado”.
Para mim, o que me surpreendeu mesmo, foi haver alguém de formação universitária que me diz: “É pá, tu compras-te aquilo lá em baixo, para quê? Para isso? Acreditas que haja gente que queira ir lá para baixo para aquele buraco e a pagar?” E assim surgiu a primeira unidade de turismo rural do distrito de Bragança. Entretanto as pessoas passaram a ter o sentido e uma certa moção de patrimónios, coisas que nós vemos como insignificantes poderem não valer nada, mas eu digo: “Aí está uma parte das potencialidades para uma certa economia da nossa região.” Quem diz os moinhos, diz os pombais, diz as azenhas, as forjas dos ferreiros. Aqui está para quem vem de fora da cidade, está lá restaurada, para os de Lisboa, do Porto, estrangeiros, para que vejam.
É assim que as terras mantêm a sua alma. Quando nós deixarmos acabar isto tudo, e eu tenho algum receio de que há-de haver algum espírito, de grupos de pessoas que poderão estar a demonstrar que isto tende a acabar-se. Tantas coisas que há, que eles vêm como empecilhos. Os de capital não se compadecem e aqui também vai um reparo ao nosso poder local que se inebria, se deslumbra com os de fora e aos de fora nós aceitamos dar uma ajuda invocando eles que investem um milhão de contos e damos uma ajuda de cinquenta mil ou cem mil, mas a ter em conta que aqueles que são naturais daqui e que com vontade e com algum sacrifício, se dispõem a fazer com cinquenta mil ou sessenta mil contos. Aí é que ficava bem dar a ajudinha que se traduz em coisas que podem nem ter grande peso naquilo que são os orçamentos do município mas, para isso, acho que ainda não estamos devidamente preparados.

É um homem de muitas paixões ou gostos como lhe queira chamar, dentre as quais destaca, além do turismo rural, a agricultura, a história, a literatura, as crónicas, a caça. Fale-nos um pouco dessas suas paixões?

No que toca à literatura tenho pena de não ter o tempo disponível para me dedicar bastante a isso e, principalmente, agora nesta idade e a reforma nos próximos meses ou no próximo ano pelo menos, gostaria de enveredar para isso mas, como já verificou, a família é grande, são quatro filhos. Deles, apenas um devidamente arrumado. Ainda estão dois, um a estudar medicina, outro, engenharia no Porto. Eu tenho que manter algumas preocupações. Há um vício que eu acho que tenho que é a preguiça. Há muitas coisas que eu não gosto muito de fazer, faço aquilo que gosto. Temos que fazer aquilo que não gostamos muito. Ainda tenho coisas que tenho que suportar, embora não goste muito. O que eu queria era estar virado para fazer as coisas que gosto bastante mas, em qualquer dos casos, não me posso queixar. Na literatura, por exemplo, digo-lhe que para mim, dado que não posso ler boa parte do que há de bom mas, eu gosto de pegar nos Lusíadas de vez em quando e, então, no Fernando Pessoa também aquilo que é o mais importante, sabe porquê?
Porque eu digo assim: Se uma pessoa entende, lê Camões, os Lusíadas, outros poemas, um grande épico e depois conhece Fernando Pessoa, também, não sei se é possível gostar de outro tipo de literatura, isto em termos de poesia. Na prosa, eu penso isto no que toca a grande escritores a nível mundial: Miguel Torga, o que me dá uma satisfação tão grande porque é um transmontano…

E foi excluído do processo curricular nacional nas escolas…

Veja bem a desgraça. Em França, as pessoas de letras, admiram, verdadeiramente, Torga. Lembro-me, quando foi do prémio Nobel, disseram: “Porquê agora, porque é que não a Torga há uns anos.” Porque o Torga, diz-me um amigo que é especialista em teoria da literatura, formado em teologia e românicas, grego, latim e em direito, Dr. Baía que é uma figura conhecida em Bragança, diz-me: “Torga, o nosso conterrâneo, nos contos, é uma altíssima expressão a nível mundial”. E eu digo-lhe que se me perguntassem o que é que eu queria fazer de interessante na vida, responderia: “Olhe, escrever como escrevia Torga.”

E tinha também paixão pela terra…

Uma forte paixão pela terra. Depois, é evidente que ainda vejo ali retratadas situações, sentimentos, aquilo que é a alma de um povo. Está ali. Exactamente, como eu a conheci na minha infância, mesmo na minha juventude. Para mim, o deslumbrante de literatura é Torga, claro. Se me disser outro tipo de literatura, aquele livro que se recomenda às pessoas que tenham preocupação com literatura, também tive muita sorte quando alguém me fez chegar às mãos o livro de Marguerite Yorcenar que se chama “Memórias de Adriano”. Isso, como dizia um amigo meu, cada frase é o enunciado de um grande princípio da vida, o mundo e isto é que eu acho que tinha que se divulgar como cultura.
Diz-me que Torga foi excluído dos currículos escolares. Pois dou-lhe os parabéns a essa gente. Só posso dizer isso. Depois, diz-me da agricultura e é uma certa paixão pela agricultura porque eu não consigo abstrair-me das imagens da minha infância. Imaginar o que era vir o mês de Setembro e ver os pais aflitos: “Ai vem a chover… e então os figos?” E apanham os figos e já não se secam e ir a fugir para os recolher, porque os figos vendiam-se para fazer não sei se aguardente, se para fazer as passas. A terra quente era diferente da terra fria. Na terra fria não há noras. Temos pequenos rios, ribeiros, regatos, há muita água que dá para regar pelo pé. Ora, na terra quente transmontana regar pelo pé não se podia. Era pela mão, pela força física de fazer funcionar os baldes das cegonhas, as noras com o burriquinho a andar à roda e eu digo: “Que maravilha de terra esta nossa!” Há uma complementaridade, uma diferença em termos climatéricos. A terra quente tem três ou quatro graus mais que a terra fria; a terra quente tem vinho, azeite, figos, enfim, todos os frutos do microclima mediterrânico, só não vejo tâmaras em lado nenhum mas, alfarrobas também há, havia em Freixo em tempos. Isto que a terra quente tem, a terra fria não tem mas, a terra fria tem a belíssima batata, a castanha, a carne de bovino.
Tenho falado com estrangeiros em consequência dessas actividades e que me dizem: “Isto é uma terra verdadeiramente bonita.” São eles que espontaneamente se manifestam e às vezes com um certo cuidado. Sabe o que significa? É o cuidado de não nos fazer, a nós, depreender que estão a dizer: “Vocês são uns atrasaditos. Têm aqui tanta coisa boa e não aproveitam.” Mas está subentendido no pensamento deles e é isto que era preciso que nós desenvolvêssemos, que nós divulgássemos, competindo aí um grande papel aos municípios, associações, tudo aquilo que formalmente já vem existindo mas a substância é que ainda é muito fraca.

E a caça?

A caça. Eu, de criança, quando o meu pai me leva ao médico a tirar o atestado para ir para o seminário, aí começa o vício da caça e quando vinha nas férias do Natal à aldeia, começava por pegar na espingarda do meu pai, ilegalmente, porque não tinha documentação como diz o nosso povo e nunca me aconteceu nada. Matava uns tordos, foi assim que matei a primeira lebre… Houve circunstâncias da actividade cinegética que foram enormes borgas, momentos de festa, de grande alegria com amigos, com conhecidos dos relacionamentos de Bragança mas, também, das gentes de fora. Cheguei a estabelecer relações de amizade com pessoas de fortuna que vinham aqui. Só que deixou-se terminar aqui aquela boa tradição que tinha concretização nos chamados encontros. Houve depois um certo conflito, houve um desentendimento e, desgraçadamente, consequência dos interesses político partidários e eu fui-me retirando aos poucos. Ainda temos um grupo com quem, na altura de Janeiro, Fevereiro, praticamos a caça ao tordo, mero pretexto para nos juntarmos e em cada quinta-feira, cada um toca fazer a merenda. São momentos de belíssima e boa disposição. Não vamos à caça para poupar, para ter alguma carne para esses tempos. É uma forma de entretenimento e de convívio.

Na sua pequena nota biográfica que fez o favor de nos enviar, mostrou-nos que, além de ser um homem culto é, também, uma pessoa com um enorme sentido de humor. Fale-nos desses seus serões, da sueca, do bilhar ou do cortar à casaca.

Aquilo que na vida mais me incomoda é que haja pessoas que tenham algum comportamento que nos faz ficar um dia ou dois incomodados porque, aí não resistimos. Houve, de facto, pessoas que me conheceram que era dado a um certo tipo de humor nesses encontros da caça. Eu tinha imenso prazer em participar naquelas saudações que implicavam o baptismo quando matavam o javali. Esse conjunto de coisas e, quando eu lhe apresento, veja que há um serão em cada semana que é dedicado à sueca, isso também é um recuar, é uma certa forma de querer recuar aos tempos da minha infância e da minha juventude. Era um prazer, debaixo das amoreiras na minha aldeia, já lá não estão, desgraçadamente, as amoreiras por causa da urbanização e de alcatroaram a estrada, e jogávamos à sueca, também, no Inverno à lareira, à volta do borralho e a terra quente não era abundante em lenha como é a terra fria mas, como na casa dos meus pais havia um forno onde a maior parte do povo cozia, também não era como na terra fria, onde cada casa tem um forno, as duas casas que eu adquiri para turismo rural lá tinham feito um forno e tem-no, uma já não tem porque não foi possível mantê-lo porque veio uma invernia e esborralhou-se. Entretanto, é uma certa forma de retomar esses serões da aldeia o jogar a sueca com tudo aquilo que tem, enfim, a pequena fraudezinha, a habilidade. Eu acho isso interessante mas é uma distracção belíssima.

E chatices?

Não. Isso não há. Aconteceu-me, uma vez, retirar-me de um grupo desses. Não é para chatices, antes pelo contrário e, portanto, já vai nuns anos que mantenho um grupozinho de tertúlia da sueca. É para a boa disposição, quem perde, paga as bebidas. É uma forma de abstrair porque a vida no dia-a-dia também tem as suas contrariedades e nós ali estamos concentrados e às vezes perde-se porque se está a pensar não sei em quê, porque os problemas do dia-a-dia são tão fortes que não nos conseguimos abstrair naquele momento.

Gastronomicamente falando, é um apaixonado da cozinha transmontana. Que partido podemos tirar da enorme riqueza que a gastronomia da região nos oferece?

Eu não sou um apaixonado da gastronomia transmontana. Eu sou um apaixonado do interesse que a gastronomia transmontana pode ter como fonte de rendimento para esta terra. Eu gosto muito da gastronomia transmontana mas, é evidente que também gosto de uns mariscos bem confeccionados. A nossa gastronomia, diria que dentro do país há gastronomias com um grau de qualidade como a nossa: o Minho, o Alentejo e no resto, não sei se haverá, no país, uma gastronomia superior à de Trás-os-Montes porque, veja: O melhor cozido à portuguesa, que é um dos pratos que eu aprecio, creio que em nenhuma parte do país se poderá confeccionar um cozido à portuguesa tão excelente como aqui em Trás-os-Montes desde que feito pelo método tradicional e método tradicional é um método que as pessoas das aldeias ainda sabem fazer. Sabe onde é que está, para mim, uma certa desgraça? Muita gente nunca compreendeu que estes pratos que eram vistos, noutros tempos, como os pratos das famílias pobres, isso determinou um certo constrangimento como que, um medo de o apresentar à gente da cidade, sendo que na cidade, nos restaurantes, unidades de restauração de luxo se apresentam coisas que até eu próprio me surpreendo. Hoje, houve-se falar dos chicharros com couves. O nosso povo dizia: “O que é que vamos comer?” “O que é que há-de ser? Chicharros com couves e, se houver um cibinho de bacalhau com uma pelezita…” Era assim que nós falávamos em Trás-os-Montes e alguma gente não deu por isso.
O cozido à portuguesa… acho que em nenhum ponto do país é melhor que aqui. A feijoada à transmontana também poderá haver igual ou quase igual mas, também, não vejo melhor e isto serve como forma de chamar a atenção às pessoas locais… eu, ainda agora, dizia isto numa conversa informal com o nosso governador civil: “O senhor estava presente num evento em que estavam pessoas ligadas à indústria porque era um seminário ou uma conferência ou colóquio, já não sei bem e tratava-se de falar sobre Trás-os-Montes, uma região deprimida, o que fazer?” O senhor Rocha de Matos disse isto: “Meus senhores, devo dizer-lhes que em Bragança eu nunca consegui comer a tal feijoada à transmontana.” Eu fiquei arrepiado, verifiquei que muitas das pessoas que estavam ali não atingiram o alcance do que disse aquele senhor. Um prato que é tão característico da nossa gastronomia! E eu pergunto: Onde está a casa que seja especializada a fornecer a feijoada transmontana ou o cozido à portuguesa autêntico? Não temos.
Há outros pratos invulgares por aqui como o coelho estufado, o coelho caseiro, as cabidelas de galinha ou de coelho, para não falar do fumeiro, porque as pessoas, ninguém duvida, o fumeiro, salpicões, as chouriças, as alheiras, os presuntos são, de facto, excelentes mas, também, faço um reparo, uma forma de consciencializar as pessoas da nossa terra para o seguinte: No que toca a presuntos, é uma coisa curiosa, verificarmos que aqui ao lado, em Espanha, o presunto de fabrico industrial, não fica atrás do nosso presunto normal. Nós distinguimo-nos, verdadeiramente, no salpicão e na linguiça ou chouriça. Isto é que me faz dizer, muitas vezes, porque é que o município de Vinhais, em lugar de uns premiositos de cinquenta ou cem contos, porque não ter dois patamares de prémios para o fumeiro? Para quem apresente até cinquenta quilos de salpicões ficaria no segundo patamar. O primeiro seria para quem apresentasse mais e de qualidade superior. Depois, mil contos de prémio ou mais. Gastamos tanto dinheiro em tantíssimas coisas sem a mesma importância… O município estimulava as pessoas, até os jovens que fazem cursos no politécnico e que andam por aí a mendigar um empregosito… Mendigar empregos no Estado vai ser cada vez mais difícil e daí que tivéssemos que estimular a nossa malta jovem para trabalhos que são de manifesta rentabilidade para aquilo que se apresenta porque, ninguém duvida que o fumeiro de Vinhais, se for cinco vezes mais ou dez vezes mais, vende-se.

O que podemos fazer para que a interioridade não se transforme em isolamento?

Que a interioridade não se transforme em inferioridade… mas temos, desgraçadamente, alguns sinais de que isso pode acontecer. O que poderemos fazer, é termos a consciência de que aqui há potencialidade e há coisas boas e se nós não as soubermos explorar, há-de vir alguém que as aproveite e eu lembro-me de ter aproveitado de Fernando Pessoa, o que há de sublime na poesia de Fernando Pessoa:
“Temos a charrua perdida numa agricultura indefinida
procuremos o nosso irmão
que quer saúde
que quer trabalho
não basta pão.
Outros haverão de ter
o que houvermos de colher”.
Isto é de Fernando Pessoa. Ficamos contentes connosco quando descobrimos que, afinal a poesia tem coisas que traduzem realidades bem prosaicas. Isolamento ainda é. Repare. Ainda estamos nesta situação de isolamento. Eu bem tenho defendido, bem tenho referido tantas vezes o seguinte: defendam o que defenderem, nós precisamos muito das ligações entre municípios, mais estradas nacionais. Ainda temos estradas nacionais que são do tempo da ditadura no que respeita à sua estrutura, o perfil. Não é concebível que a democracia com trinta e dois anos não tenha já feito nada mais por isto. Dir-me-ão: “Via rápida… e daqui e dalém.” Pois sim! Via rápida. Muito mais sacrifício que uma via rápida, foi fazer uma linha férrea desde o Tua até Bragança. Isso exigiu um sacrifício incomparavelmente maior. Se nós tratarmos de ter as nossas acessibilidades, pois esta via rápida, quer seja transformada, alargada, mas que haja ligações entre os municípios de modo que quem entra por aquilo que é a espinha dorsal das nossas comunicações que viva facilmente e comodamente para chegar a Freixo de Espada à Cinta, uma terra tão linda! A terra da excelência dos produtos de microclima. Tem que se chegar com facilidade e rapidez. Sem isso, o isolamento mantêm-se. A nossa região, o nosso interior, este nosso distrito, o Douro o Vale do Douro, parece que não há dúvidas que ali já há interesses que vão concretizar-se, em formas de haver uma economia sustentável mas, igualmente, esta zona, pode ser um complemento dessa zona principal do Vale do Douro.
Eu defendo coisas simples como estas. Um exemplo é dizer: “No Inverno podíamos arranjar um slogan - Venha a Trás-os-Montes, Parque Natural de Montesinho, Bragança. Venha para o calor da lareira!” Dizer às pessoas que temos casas, onde o conforto citadino, uma parte do seu bem-estar é ter uma lareira e ter a lenha a arder e isso fá-las sentir bem. Creio que isto ainda não entrou bem na cabeça de toda a gente.

Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Em primeiro lugar os meus pais pelo trabalho duro que tiveram no campo. No que é o pensamento, no humanismo: Torga. Depois, lembro-me da minha professora de história do Liceu. De um ou outro professor de Coimbra. Porque é que não foram todos capazes de nos estimular como alguns e isto é, para a juventude de hoje, porque hoje, quando a juventude se sente à vontade e faz tudo o que quer e apetece, amanhã torcem a orelha e depois torcem a orelha mas já não bota sangue. Fundamentalmente, a família, a escola e depois, num outro plano, Torga. Essas é que foram, de facto, as figuras marcantes para a minha vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário