Bem-vindo ao “Nordeste com Carinho”. À sua entrevista vamos chamar “À procura da flora portuguesa”. Onde nasceu e que recordações guarda da sua infância?
Bom, eu nasci no Porto e vivi até aos 17 anos numa cidade ao lado, em Matosinhos e que recordações guardo? Olhe, dum pais que já não é igual ao de hoje. É basicamente essa a recordação que guardo, muito diferente dos dias de hoje, onde a actividade agrícola e piscatória… olhe, do sítio onde eu vivia, marcava muito o dia das pessoas e, enfim, era a fonte de riqueza de toda aquela zona e agora quando volto… repare, já sai há muitos anos, tenho 42 anos, encontro uma cidade que já não tem nada a ver com aquela que eu conheci.
Fale-nos brevemente do seu percurso de estudante.
Igual a todos os outros. Fiz o ensino público. Na altura experimentei o Unificado. Foi a primeira vaga do Unificado e, depois, com 17 anos, ainda não tinha feito 18, mudei-me para Lisboa e estudei no Instituto Superior de Agronomia, na Tapada da Ajuda. Terminei o curso e recordo muito bem, com um colega meu que é lá professor, metemo-nos num Vokswagem à procura de emprego e vim parar a Bragança, num carocha em 1986, mas eu já conhecia muito bem a região, já tinha batido isto tudo a pé. Eu costumava vir para aqui.
E porquê engenharia agronómica?
Boa pergunta. Porquê? Primeiro, porque sempre me preocupou demasiado o futuro, talvez demasiadamente, e sempre achei que a actividade primária, seja a actividade agrícola, enfim, tirar os frutos da terra, que é algo fundamental para todas estas sociedades em que nós vivemos. Tinha muitas opções, devo-lhe dizer, quando escolhi agronomia e, enfim, posso-lhe dizer que não estou arrependido, gostei do que estudei e gosto do que estudo.
A sua vida profissional está ligada à Escola Superior Agrária de Bragança desde 1987. Fale-nos um pouco desse percurso.
Conforme lhe disse, eu conhecia razoavelmente a região. Garoto de 15, 16 anos, vinha para aí, mais uns amigos, de mochila às costas. Apanhava a linha do Tua, o comboio saia às 06:10 de Campanhã e chegava a Bragança às 2 e tal da madrugada e, depois olhe, fiz isto tudo a pé. Dormia aí debaixo das árvores, tantas vezes… Montava uma tenda num lameiro perdido, dormia no Coreto à entrada de Vinhais, dormia junto às estátuas, garoto de 15, 16 anos, junto à estátua no sopé, junto às muralhas ali no castelo. Na década de 80 andava por ai a vaguear e a ver, basicamente, andar a pé a ver as coisas, era o que fazia na altura, enfim, tenho uma costela de naturalista muito antiga, gostava de ver plantas, de ver animais, de ver aves e essas coisas não se fazem nos livros, é preciso andar a pé e ver as coisas. Entretanto, foi sempre uma coisa de que gostei e praticava isso com os meus colegas há muitos, muitos anos atrás.
Depois vim cá parar. Exactamente, vim cá parar. Respondendo à sua pergunta, primeiro como estagiário do Parque Natural de Montesinho. Nessa atura o professor Dionísio convidou-me a entrar para a Escola Agrária, que eu aceitei imediatamente. Na altura, não deixa de ser curioso, havia muita dificuldade nestas instituições do interior do país de contratarem pessoas, interessante, porque os concursos abriam e ficavam fechados, as pessoas não concorriam e, entrei logo, não directamente para esta área da botânica, mas uma área similar, próxima e cá fiquei em 1987. Fiz a tropa pelo meio e construi a minha carreira como é minha obrigação, pois em 1987 assinei um contrato com o estado que implica algumas obrigações que tentei cumprir da melhor forma.
Faço 25 anos para o próximo ano, no próximo ano receberei a medalha dos 20 anos com muito gosto.
Como é que um engenheiro agronómico se liga à botânica?
E, já agora, uma pequena curiosidade. Um dos grandes botânicos portugueses, chamado António Xavier Pereira Coutinho foi o segundo agrónomo aqui em Bragança em 1875. Um pouco no espírito da época fundaram uma espécie de quinta experimental e o segundo agrónomo distrital, chamado agrónomo distrital foi, digamos, um dos grandes responsáveis pelo ressurgimento da botânica logo a seguir às invasões francesas, revolução liberal e, todo esse período conturbado que Portugal passou e o António Xavier Pereira Coutinho era agrónomo e foi professor na instituição que precedeu o Instituto Superior de Agronomia e, a partir dessa altura, cria-se uma tradição em Portugal dos botânicos serem agrónomos ou silvicultores, que nasce com o António Xavier Pereira Coutinho que viveu em Bragança e que tem uns relatórios muito interessantes, que vale a pena ler, onde descreve um pouco a região, e é muito interessante porque na carreira dele e nas publicações que ele vai fazendo, há sempre referências a Bragança que nos permitem, um pouco, sentir o que é que era a época. Estamos a falar dos finais do século XIX.
Se calhar, na altura, até pela pouca industrialização havia muito mais a descobrir, não é?
Olhe, a primeira estrada em macadame que chega a Bragança, chega em 1875, portanto, dá para sentir o que é que era o isolamento da região. Estradas em macadame são estradas de terra batida só que feitas de acordo com os preceitos do senhor Macadame, que era um inglês que trouxe a técnica para Portugal.
Penso não estar a faltar à verdade se disser que o Engenheiro Carlos Aguiar é uma das pessoas que melhor conhece a nossa flora. Fale-nos brevemente da especialidade da nossa flora e das suas virtudes.
Bom, há um ditado que diz que “Em terra de cegos quem tem olho é rei”. Bem, a Botânica Portuguesa não é constituída por muitas pessoas. Na realidade, haverá vinte pessoas ou menos que identifiquem de forma fiável plantas em Portugal. Não é difícil ser especialista quando o número de pessoas que sabem identificar plantas é tão pequeno, não é.
Bom, sobre a flora aqui da região, a flora de Trás-os-Montes foi estudada nos finais do século XIX, conforme referi pelo António Xavier Pereira Coutinho e, ao mesmo tempo que isso acontece, a universidade de Coimbra, enfim, estava numa fase de reconstrução se assim quiser dizer e há um famoso professor de botânica, na atura uma pessoa com uma história muito curiosa, morreu com quase 100 anos e, que aos 75 anos, chamava-se Júlio Henriques, aos 75 anos foi colher plantas para São Tomé… repare nos anos, século XX, repare a figura desta gente...
Dá vontade de viver!
E esse professor, Júlio Henriques, manda um colector, mais ou menos nos anos 78, 80 colher plantas aqui à região. Pouco depois há um outro bacharel, não sei o nome, também aqui a colher plantas, estamos a falar dos anos 90, final século XIX, aliás, uma pessoa muito interessante, que vem aqui porque o irmão era bispo e veio dar umas voltas… enfim está tudo escrito. É muito interessante porque o irmão vai fazer uma visita às paróquias do seu bispado e ele acompanha o irmão...
E colhe uma plantas…
E colhe umas plantas. Chamava-se Joaquim de Mariche, e o bispo de Mariche é referenciado pelo Abade Baçal com algum carinho, porque era um homem, de facto, superior. Depois há um interregno e, nos anos 20 já do século XX, há um retomar dos estudos aqui na região, basicamente, porque o comboio chega a Bragança. Portanto, já é possível apanhar o comboio. Há um famoso professor do Porto chamado Gonçalo Sampaio, talvez algumas pessoas conheçam porque há o grupo Cavaquinho dos Gonçalo Sampaio em Braga, porque ele era também etno musicólogo, muito respeitado na época, erudito que é uma palavra que começa a falhar nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, há também dois padres, o padre Miranda Lopes e outro padre do Seminário de Bragança, o padre Carneiro que fazem algumas colheitas na região. Nos anos 30, 40 param, praticamente, os estudos de flora da região.
Reparem, cinco ou seis pessoas bateram a região. É muito pouco, muito pouco. Nos anos 50 e 60 há o retomar de alguns estudos mas é, sobretudo, nos anos 70 em que mais uma vez um engenheiro agrónomo, engenheiro Pinto da Silva, que faz a sua tese nas rochas ultra básicas de Bragança e o engenheiro Teles que é outro agrónomo da Estação Agrónoma Nacional que é daqui de Argozelo, suponho que ainda seja vivo.
O engenheiro Teles estudou os lameiros e o engenheiro Pinto da Silva estuda a flora das rochas ultra básicas. Portanto, com este apanhado que lhe faço, dá para ver que o número de pessoas que bateram a região é, relativamente, pequeno.
Enfim, chego cá nos anos 80. Já tinha algum gosto pela botânica, tinha começado pelos insectos, depois passei para a botânica, tinha algum gosto pelas orquídeas pois, na Tapada da Ajuda havia muitas, e comecei a apanhar plantas. Resolvi encaminhar a minha carreira nesse sentido. E, de facto, havia um mundo a descobrir, havia um mundo a descobrir aqui na região. Na realidade, Bragança, Açores e Madeira eram as últimas fronteiras da botânica aqui em Portugal. O resto já estava tudo mais ou menos estudado e pude encontrar aqui algumas novidades, plantas novas para a flora de Portugal, aquelas coisas que divertem os botânicos, porque a botânica tem algo de colecção de cromos, a procura daquela coisa rara, daquela planta rara, daquela coisa que ninguém viu, daquela novidade, enfim, há esse entusiasmo, às vezes, um pouco infantil e que faz correr os botânicos. Andar com um botânico no campo, suponho que seja uma experiência engraçada, algo de obsessivo a maneira como eles andam no campo e procuram as plantas.
Sempre a olhar para o chão.
Sempre a olhar para o chão, sim. Como eu costumo dizer a botânica não se dá muito bem com a reumatologia mas, enfim, havia aqui algumas coisas por estudar, sobretudo a serra da Nogueira que era a zona mais interessante, porque só tinha sido na realidade estudada no século XIX e o tempo tinha passado. E os grandes vales, o vale do rio Sabor onde também havia algumas novidades. No Douro Internacional também havia algumas coisas interessantes para descobrir e, posso dizer, que com os trabalhos que temos feito juntamente com a Escola Agrária, também com alguns colegas da UTAD, a flora da região é actualmente bem estudada, aliás a flora da Europa actualmente é bem estudada.
Qual é a especialidade dessa flora e quais são as suas principais virtudes?
Bem, a palavra virtude depende de com quem estiver a falar. Se estiver a falar com um botânico profissional, virtude é aquilo que ele procura em raridade. A virtude qual é que é? É a presença de elementos raros, por exemplo, a presença de endemismos. Eu explico. O endemismo é uma planta, um animal, um ser vivo, que tem uma distribuição muito restrita e que só existe num pequeno espaço. Bragança tem as suas plantas. Bragança tem plantas que só existem aqui, por exemplo, ali naquele vale, estávamos a falar da ribeira de Alimonde, há lá uma plantinha que no mundo só existe ali, em dois ou três quilómetros quadrados e há outras que só existem naquela zona, em Bragança e no Monte de Morais. Onde é que estão essas plantas virtuosas para os botânicos, as tais raridades, os tais endemismos?
Em Trás-os-Montes, basicamente, em três ou quatro sítios. São eles, nas chamadas rochas ultra básicas, que são uma rochas muito estranhas que nós temos na zona de Bragança, Vinhais e no Monte de Morais, já no concelho de Macedo de Cavaleiros. Também entra um bocadinho pelo concelho de Mogadouro. Depois, nos vales dos grandes rios, estou a falar do vale do Sabor e do vale do rio Douro e há, ainda, algumas plantas curiosas nos planaltos, na serra de Montesinho, mas essas são menos interessantes porque, na realidade, são plantas que prolongam a sua distribuição para norte. Portanto, se fossemos a dizer quais são os dois grandes habitates, os dois grandes lotes de plantas com interesse, porque são raras, porque são endémicas, são as rochas ultra básicas e os vales dos grandes rios. E tenho, ultimamente, dedicado muito tempo a isso e, mais ou menos, já está bem estudado.
Que tipo de investigação realiza neste momento no Centro de Investigação de Montanha, o CIMO?
Ora bem, o CIMO é um centro que está sediado na Escola Superior Agrária de Bragança. Conforme se entende pelo nome, dedica-se ao espaço de montanha. É um conjunto muito grande de investigadores e de interesses muito largos de investigação. No que me toca, é apenas uma pequena parte, uma ínfima parte daquilo que se faz no CIMO e, enfim, aquilo a que eu me dedico mais, actualmente, conforme lhe referi, à flora e à vegetação, estamos a fazer uma flora das montanhas de Portugal, juntamente com a UTAD e tenho um interesse paralelo na flora e na vegetação dos Açores, coisa que eu já ando a fazer há uns cinco ou seis anos, com uns colegas dos Açores e com uns colegas espanhóis e, enfim, todos temos sonhos. Eu gostaria de um dia me meter por outros espaços, quem sabe, espaços tropicais, era o meu sonho, de facto. Já conheço razoavelmente a flora de Portugal e gostava de experimentar os espaços tropicais, sobretudo Angola.
O que mais o fascina no espaços tropicais?
Olhe, a diversidade, a diversidade. A Europa, no fundo, é pouco diversa. Há razões paleo geográficas, históricas para explicar isso, que agora não é o momento. Por outro lado, é a região mais bem estudada no mundo e é um pouco o olhar para o umbigo. Os investigadores europeus olham um pouco para o umbigo e há a necessidade de sair, é preciso sair, é preciso sair, é importante sair.
Os espaços tropicais são uns espaços diversos, sobretudo, África. Se quiser, é o nosso território primordial, são as paisagens primordiais. Há que não esquecer que a nossa espécie nasce em África, nascemos há 400 000 anos, são os últimos dados publicados e saímos de África há só 30 000 anos. Só há 30 000 anos é que há homens na Europa. Aliás, esta pele branca e os olhos azuis do Rui Mouta são uma invenção recente. Têm menos de 30 000 anos, têm a ver com a última glaciação, são coisas muito recentes e, portanto, África é, se quiser, as nossas origens e a savana é o bioma onde o homo sapiens nasce.
Bom, passando estes comentários que são uma curiosidade científica, é preciso sair da Europa e é preciso estudar outros espaços e nós, portugueses, temos obrigações. No caso da flora há que referir que, sobretudo, na última metade do século XX, houve uma investigação muito activa nas áreas da botânica, da agronomia, da zoologia, da mineralogia, no sentido lato, muito intenso, em África e há que não deixar morrer, mas isto é apenas um comentário que vem no seguimento da sua pergunta.
Desde há vários anos que se vem vindo a reflectir sobre as políticas do ambiente, em particular, sobre conservação da natureza. Fale-nos um pouco sobre isso.
Bom, conservação da natureza. Conservação da natureza não é um capricho. É fundamental que as pessoas entendam isso. Muitas vezes é vendido - pessoas que não concordam com o que os ambientalistas dizem - que o ambientalismo é um capricho. Não é capricho nenhum. O ambientalismo é uma forma profunda de egoísmo porque, no fundo, os ambientalistas são pessoas preocupadas com o futuro, se assim quiser. Aquelas pessoas que pensam num longo prazo, isto é, que pensam as sociedades e o funcionamento das sociedades humanas em escalas temporais muito latas, têm que ser ambientalistas. Não há outra alternativa, porque o modelo de sociedade que nós temos não é viável e digo-lhe uma coisa: os mais novos ainda hão-de ver essas mudanças e não falta muito. E, portanto, o ser ambientalista é alertar para o facto de nós, enfim, talvez programados pela evolução, termos uma certa tendência a idealizar, construir as sociedades numa perspectiva de curto prazo, mas hoje em dia não pode ser assim. Para mais, sabemos que o raciocínio é simples. As nossas sociedades estão praticamente baseadas, as sociedades actuais, em consumos intensivos de energia. A energia fóssil é finita. Sendo finita há que pensar no que fazer quando acabar, raciocínio simples e, portanto, nesse sentido, os ambientalistas tentam dar a sua contribuição para pensar o futuro.
Por outro lado, os ambientalistas também sabem que o mundo é finito, não só o petróleo, o mundo é finito e neste mundo global apercebemo-nos, de dia para dia, que cada vez é mais finito. Acontece uma coisa qualquer do outro lado do mundo e sentimos como se fosse na nossa própria pele. Repare, é muito distante, está do outro lado do mundo e, o facto de o mundo ser finito faz-nos pensar que os recursos são finitos, que a própria história é finita e, portanto, o facto de nos preocuparmos com o nosso habitat que é o mundo. O mundo é o nosso habitat, não dá para sair daqui, estamos presos aqui.
Antigamente, quando as nossas vistas eram mais curtas, podemos analisar o mundo sobre várias escalas, temporais e espaciais, há uns anos atrás o nosso mundo, era a nossa aldeia e quando a nossa aldeia era finita, saíamos da nossa aldeia e íamos para a cidade. A certa altura, o pais ficou finito e então saíamos daqui e imigrávamos. Agora o mundo é finito. Já não há mais para onde ir e, então, o ambientalismo nasce dessas preocupações. Obviamente, os ambientalistas têm a sua própria visão do mundo, sobretudo porque vivemos num mundo democrático felizmente, e há que manter o mundo assim. Obviamente, as suas opiniões são sujeitas à crítica das outras pessoas, assim como aqueles que também não acreditam em nós, são sujeitos à nossa própria crítica. Não sei se respondi à sua pergunta?
Sim. Neste momento concentra a sua investigação na flora e na vegetação do arquipélago do Açores. Porquê os Açores?
Porquê os Açores? Porque, primeiro calhou. Fui parar aos Açores há alguns anos atrás. Apaixonei-me pelos Açores. É fácil apaixonarmos pelos Açores. Os Açores, se assim quisermos, são dos arquipélagos mais isolados do mundo. As pessoas não têm noção disso. Uma espécie de Hawai do hemisfério norte, hemisfério ocidental. É muito, muito longe. É surpreendente chegar aos Açores e encontrar a qualidade de pessoas, a qualidade dos açoreanos é uma coisa surpreendente. É uma sociedade portuguesa, de portugueses que viveu no mais completo isolamento. As pessoas não fazem a mais pequena ideia do que era o isolamento. Uma ilha como, por exemplo, as Flores, são nove ilhas, o grupo ocidental, Flores e Corvo, nos anos 60 só para dar um exemplo, as Flores têm dois concelhos. A estrada que liga os dois concelhos é dos anos 60, tem quarenta e tal anos, se é que tem quarenta anos, não me recordo bem agora a data, era visitada nos anos 60 por um barco, de mês a mês, e que às vezes, por causa dos temporais, não ia, ficava ao largo. Dá para perceber mais ou menos a dimensão daquele isolamento e, no entanto, encontrei nas ilhas açoreanas pessoas absolutamente brilhantes, absolutamente brilhantes com um conhecimento profundo da vida, dos homens, da natureza, das sociedades humanas, gente de uma erudição absolutamente notável, como é tradição nos açoreanos. Basta recordarmos dois presidentes da República Portuguesa que foram açorianos. Escritores, pensadores, primeiros-ministros, já agora, presidentes do Brasil, quatro com descendência açoriana e, por outro lado, fui encontrar um território absolutamente diferente do nosso, não vale a pena, agora, explicar o porquê, que é uma história muito longa e há esse entusiasmo da novidade e, de facto, os Açores são diferentes, são novos, têm particularidades próprias.
Sabe, os cientistas, não há que ter medo da ciência, Portugal não é um país com medo da ciência, é uma característica dos portugueses. Nós damos mais rapidamente um louvor público, uma condecoração, a um obscuro, a um intelectual do que damos a um professor universitário que soube educar os seus alunos para a ciência e que soube manter viva a chama da ciência. É um pais onde há uma certa tradição de desprezo pela ciência, de uma certa desconfiança pela ciência e, continuamente, se acha que a ciência não é relevante para o nosso dia-a-dia, os cientistas não têm nada a dizer, é uma tradição muito portuguesa, é muito curioso. Nós achamos que apenas pelo exercício puro da nossa razão, sozinhos conseguimos descobrir razões para como o mundo deve ser, como é que as sociedades devem funcionar e, isso está muito enraizado no poder político, não, a ciência traz-nos a “real life”, o modo como as sociedades funcionam, o corpo humano, como funcionam os ecossistemas…
Às vezes acaba por ser inoportuno...
Às vezes, acaba por ser inoportuno, pois os cientistas têm coisas a dizer, percebe e, às vezes, é uma espécie de refúgio. Repare, os cientistas são estudiosos profissionais. São pessoas que são pagas para estudar, então, há que ouvi-los pois, são pagos para isso, não há que ter medo em ouvi-los. Agora, aquilo que eu posso dizer que é esse exercício de estudo diário, porque a ciência tem uma coisa muito interessante, a ciência é profundamente democrática, a democracia nasce com a ciência. Não é a ciência que nasce com a democracia. A ciência é profundamente democrática, profundamente aberta. Oferece o seu conhecimento dia-a-dia para ser testado, para ser confrontado, para ser, se quiser, agredido e é essa democracia, essa profunda liberdade que está por detrás do exercício da ciência que às vezes também assusta as pessoas.
Eu nem sei porque é que cheguei a esta conversa, talvez porque é uma oportunidade de chamar a atenção, de que há ameaças em curso. Este enorme património do saber e do conhecimento que nós construímos desde o século XVIII e eu tenho orgulho de pertencer a essa movida e que há que estar atentos e eu acho que há que valorizar os cientistas em Portugal e dar-lhes valor, não há que ter medo.
Há que lhes dar o devido valor.
Há que lhes dar o devido valor e há que pô-los em causa. Os cientistas têm de ser postos em causa, tem de se dizer: Não concordo consigo. Explique lá, porque é assim, porque não é de outra maneira. Os cientistas são treinados para isso, temos que aceitar que a ciência é uma autoridade perfeitamente democrática. É a ciência que nos dá, atenção que isto é muito importante, é a ciência que nos dá o que é que é a realidade e a realidade é, de alguma forma, intelectualmente, falta-me a palavra em português, atingível.
Colaborou na aplicação da directiva “Habitas” de Portugal e foi consultor da União Europeia. Fale-nos brevemente sobre este seu trajecto.
Bom, directiva Habitas… directiva Habitas é um instrumento de política comunitária, dirigida à conservação da natureza. É o mais importante instrumento e os países membros foram obrigados a aplicar uma directiva. Aplicação essa, que obrigou a reunir um conjunto de cientistas portugueses, onde tive o orgulho de participar e foi nesse sentido que já fiz algum trabalho. Fiz a minha obrigação porque, como professor, tenho um contrato com o estado, sou funcionário público e esse contrato obriga-me a produzir conhecimento, produzir saber, produzir técnica, utilizando termos que as pessoas possam entender, com interesse para os cidadãos, se quiser, com valor social.
Que seja atingível para todo o cidadão.
Sim, que seja útil para todo o cidadão. Foi nesse sentido que eu colaborei na directiva “Habitas”. Foi um exercício muito interessante e convém, aliás, referir uma coisa: Quando a directiva “Habitas” arranca em Portugal, o conhecimento que havia dos habitas e de alguns aspectos da fauna e da flora de Portugal eram bastantes escassos e, de facto, em cinco anos houve um progresso muito acentuado, muito acentuado e a directiva “Habitas” foi o grande instrumento desse progresso. Hoje em dia já se sabe muita coisa. É pena que muitas coisas que se sabem, não estejam adequadamente divulgadas. Às vezes, falhamos em Portugal na divulgação, para as pessoas, em documentos que sejam legíveis. Cada grupo social inventa as suas próprias linguagens, próprios rituais. Os cientistas também têm de ser chamados à “pedra”. Às vezes tem que se lhes dizer: “Vocês têm que falar uma linguagem mais perceptível. Simplifiquem os vossos conceitos e vamos por as coisas numa linguagem que toda a gente entenda”. Também é necessário que a sociedade esteja alerta para isso e que não tenha medo de lá chegar.
Colabora como assessor regional da Flora Ibérica e do “Atlas Flora Europeia” que são publicações de referência mundial. Fale-nos brevemente da importância deste tipo de publicações.
Bom, um dos objectivos da botânica, enfim a botânica mais tradicional, muito ligada à sistemática, botânica sistemática é a inventariação da diversidade. A sistemática, enfim, que é um ramo da biologia que se dedica a essa inventariação esteve um bocado na mó de baixo, desculpem a linguagem. Quando aparece a biologia molecular, com a explosão da biologia molecular nos anos 80 e anos 90, começámos a aperceber-nos, aparecem uma série de documentos internacionais, onde se chama a atenção para as perdas diversificadas à escala mundial. Ao que parece, todos os dados indicam isso, que estaremos a perder bio diversidade, diversidade biológica a uma velocidade comparada às grandes extinções que existiram no passado. Convém referir que houve várias, muitas extinções maciças ao longo da história, nem todas ainda bem compreendidas. A mais famosa e que toda a gente conhece, foi a extinção dos dinossauros há cerca de 63 milhões de anos, em que há um cometa, um asteróide que colide com a terra, na zona do México. E, essa perda acelerada de bio diversidade faz muitos biólogos pensar que envolve grandes riscos, porque os ecossistemas são frágeis e à medida que nós vamos tirando peças desses ecossistemas corremos o risco de os ecossistemas, de repente, converterem-se rapidamente noutro tipo que seja menos útil.
Repare, é uma perspectiva perfeitamente egoísta e é assim que funcionam as coisas e é um problema. É curioso, como os sistemas climáticos, se mantêm mais ou menos estáveis mas, depois, há pontos de rotura. Os sistemas complexos funcionam assim, não mudam gradualmente, mantêm-se mais ou menos estáveis, enfim, com oscilações e, de repente, há catástrofes. Aliás, é muito interessante porque isso é modelável matematicamente e a própria matemática veio a convergir. Os próprios biólogos estavam a ler nos registos da história da terra. Há uma aproximação matemática, enfim, há uma convergência, actualmente, entre alguns ramos da matemática que estudam esses fenómenos caóticos em sistemas complexos e aquilo que os biólogos têm lido, conforme eu dizia, da história da terra. E, a partir dos anos 90, há uma chamada de atenção para a comunidade científica em que se chama atenção, atenção, é importante saber o que é que temos e, para saber o que é que temos, tem de haver pessoas formadas, especializadas, para saber o que é que temos, os chamados taxonomistas.
Os taxonomistas são pessoas muito caras a formarem-se, um bom taxonomista pode demorar… demora mais de dez anos a formar e é extraordinariamente caro formar um taxonomista. Um taxonomista é uma pessoa que publica pouco em revistas pouco valorizadas, de pouco interesse e, por outro lado, o aparecimento da biologia molecular, deixou um bocado para trás esses estudos e nesse ressurgimento, agora volto à sua pergunta, aparecem projectos internacionais como é o caso da Flora Ibérica e do Atlas da Flora Europeia que já vem um bocadinho mais de trás na sequência de uma outra publicação que foi a chamada Flora Europeia que terminou em 1980 ou 81 com a publicação do último volume, onde participaram inúmeros botânicos portugueses. Obviamente que ninguém conhece porque dá-se pouco valor à ciência em Portugal. De uma erudição absolutamente fantástica. Dou-lhe só um exemplo. Um dos professores que colaborou nessa “Flora Europeia”, professor João do Amaral Franco, que tem neste momento 83 anos, fez o discurso em latim. Fez um discurso de dez ou quinze minutos em latim para uma assembleia de cento e tal pessoas, uma coisa absolutamente deslumbrante. As pessoas que assistiram, muitos botânicos estrangeiros, ficaram, absolutamente, deslumbrados com a erudição. Ninguém conhece o professor João do Amaral Franco, apesar de ser um dos principais cientistas portugueses do século XX. E, portanto, esses trabalhos são, essas publicações, um é liderado pelo Real Jardim Botânico de Madrid e o outro pelo Museu de História Natural de Helsínquia, na Finlândia, onde há muitos botânicos que colaboram e há vários botânicos que trabalham nele em Portugal. No Atlas da Flora Europeia, são três os botânicos portugueses que colaboram, quatro contando com o colega dos Açores e na Flora Ibérica há vários assessores regionais portugueses.
Repare, há muitos investigadores em Portugal. Uns trabalham numa coisa, outros trabalham noutras. A mim calhou-me trabalhar como assessor regional. São trabalhos muito estimulantes e que se fazem com enorme entusiasmo e, claro, é a minha obrigação contratual, como funcionário público, tenho um contrato com o estado que me obriga a fazer trabalhos desse género.
A flora de Trás-os-Montes e Alto Douro é extremamente rica. De que maneira podemos tirar partido dela sem a destruir?
Ora bem. A questão sem a destruir é complicada e levar-nos-ia a estar aqui a falar durante várias horas. Ora bem, de que forma podemos tirar partido dela? Há um partido que nós podemos tirar, que são chamados os serviços de ecossistema. Vou tentar explicar o que é isso. As plantas fazem parte dos ecossistemas, os ecossistemas são uma mistura de plantas, de animais, de solos, de energia vinda do sol, do espaço e que põe isto a funcionar e as plantas fazem parte desse ecossistema. Os ecossistemas oferecem-nos serviços, serviços esses que nem todos são valorizados pelo mercado. O que é que isso quer dizer? Nem todos, no dia-a-dia, os contabilizamos em dinheiro. Por exemplo, chove na serra do Montesinho e aqueles prados que lá estão absorvem água e essa água depois pinga lentamente e vai descendo pelos rios e nós bebemos essa água. Esse é um serviço que podemos contabilizar. Há um conjunto imenso de serviços que nós, no dia-a-dia não convertemos em euros e que as plantas nos fornecem. Repito, são serviços ecossistémicos que não são valorizados pelo mercado. Depois há outros que são valorizados pelo mercado, como por exemplo, muitas dessas plantas que são os hospedeiros dos cogumelos que se comem por ai...
Como é que se podem colher esses sem se destruírem?
Eu não sou um especialista na matéria. O que lhe posso dizer é que tem que ser obviamente regulamentado e há aí várias questões fundamentais. Há aí uma questão fundamental que é a questão da propriedade, questão da propriedade. As colheitas de cogumelos em Portugal, não é só cá, é pela Europa fora, as pessoas na realidade cortam cogumelos em terras que não são as suas e os cogumelos, assim como, no meu entender, a caça, não está privatizada. Deviam ser privatizadas. Isto é: os cogumelos deviam pertencer a quem fosse o dono da sua terra. Isso era um bom princípio para um desenvolvimento sustentável dos cogumelos. Nessa área, estamos a começar a sentir um problema que é comum com a caça, com a pesca, que é o chamado dilema do prisioneiro, que são ganhos privados e custos públicos. Isto é: Eu posso pescar o que quiser mas, depois de deixar de haver peixe, o problema de não haver peixe é dividido por todos. Os economistas estudam muito isso, é a chamada tragédia dos comungos. O mesmo raciocínio se pode aplicar às áreas baldias mas, voltando à pergunta de plantas, há outras utilizações mais imediatas, as plantas medicinais, etc., etc. Olhe, a paisagem, isso é importante, mas o papel mais importante que as plantas têm agora que estamos a atravessar o abandono rural, é a restauração da fertilidade do solo. Nunca se sabe, um dia voltaremos a cultivar estes solos que estamos a abandonar.
Agora, de uma forma mais rápida, poderemos implantar, em Bragança, unidades industriais de transformação, por exemplo, de chás populares, ou mesmo de princípios activos medicinais, retirados da nossa flora e vegetação?
Sim, com certeza. Há um curso na Escola Agrária que é dirigida a essas questões. Bom, mas é preciso que as pessoas tenham a noção de que a produção de riqueza por essa via é limitada. Quer dizer: Não é uma mina de ouro. Obviamente que sim, em todo o mundo ocidental isso acontece, mas é um nicho de mercado relativamente escasso.
Não daria grandes indústrias?
O que lhe posso dizer, não conheço bem, não lhe posso responder precisamente. O que lhe posso dizer é que é, sim senhor, interessante mas, como tudo tem os seus limites, não vale a pena estarmos a julgar que é por ai que está a criação de riqueza para a resolução dos problemas que nós temos aqui na nossa região.
O que pensa da construção da barragem do Sabor?
A do baixo Sabor? Bom não é novidade nenhuma. Eu faço parte da Plataforma Sabor Livre e temos uma posição contra a construção da barragem do Sabor, porque achamos que esse investimento é enorme e pode ser usado de forma muito mais eficiente, eficaz, noutros tipos de investimento e, portanto, é essa a nossa posição
Para terminar, que personalidade ou personalidades é que mais o marcaram ao longo da sua vida?
Pergunta complicada. Talvez alguns dos meus professores, por exemplo, apesar de não ter sido meu professor, o professor que eu referi há bocadinho, o professor Amaral Franco. Sabe, a erudição e o talento são coisas que a mim pelo menos… falta-me as palavras, fico surpreendido com o talento e a erudição de algumas pessoas. Não é inveja, é uma admiração profunda, como é que há pessoas que sabem tanto, pessoas que souberam dirigir a sua vida porque, saber muito é prestar um grande serviço às pessoas, porque há pessoas que têm que saber muito. Há pessoas que escolhem outros caminhos, mas essas pessoas são necessárias e a erudição, os eruditos são pessoas que, de facto, me fascinam. Não encontrei muitos ao longo da minha vida, mas alguns que conheci, são pessoas que sempre me marcaram. Então, se quiser, aqueles que sabem muito, aqueles que têm muitos bits de memória na sua cabeça, com quem, quando conversamos com eles, o saber, o conhecimento são uma espécie de onda imparável. São essas as pessoas que mais me marcaram. O inverso é o que menos me marcou, que me marcou negativamente, que são pessoas que, aparentemente, seriam poços de saber, mas que, depois, vai-se a ver e é uma maré vaza, plana… Pelo bem e pelo mal, é isso.
Carlos Aguiar. Um Homem profundamente sabedor das matérias e dos assuntos que estuda e de que fala.
ResponderEliminarFoi, para mim, um enorme privilégio, ao longo de muitos anos, ter partilhado com ele momentos inesquecíveis em jornadas de campo, sessões de educação ambiental e tantos tantos quilómetros percorridos a expensas próprias. Outros tempos, outros valores, bem contrastantes com os comportamentos de tantos e tantos que criticam, por puro desconhecimento, ou inveja, os ambientalistas. Continua, para mim, a ser um privilégio saber que tenho o Carlos no rol dos meus amigos.
Grande abraço Carlos.
Obrigado Mara por ter tido o bom gosto e o "olho clínico" ao ter escolhido o Carlos Aguiar para uma das suas entrevistas.
Entrevistou, sem a mínima dúvida, um dos maiores Botânicos Portugueses de sempre.
Penso que faltou referir um nome na entrevista...o Insígne Jorge Paiva.
Olá Henrique.
ResponderEliminarEsta foi uma entrevista que me deu muito prazer realizar. O Professor Carlos Aguiar foi uma absoluta surpresa pela sua jovialidade e dinamismo.
Como referi na pequena mensagem de apresentação da entrevista, aprendi muitíssimo com ele. Fiquei com vontade de aprender mais.
É pena que os valores que refere se tenham perdido e que a leveza das consciências seja cada vez mais o dia-a-dia.
Temos o privilégio de poder contar com um dos maiores botânicos portugueses de todos os tempos que decidiu escolher a nossa cidade para viver e trabalhar.
Foi uma honra poder conversar com este ilustre cientista. Relativamente ao Professor Jorge Paiva... temos pena de não o termos referido. O seu papel tem sido de extrema relevância para a Botânica e para a biodiversidade.
Obrigada Henrique.