domingo, 30 de setembro de 2012

Entrevista de Dr. António Gonçalves, médico, Ex Presidente de Direcção da APADI

Nasceu em Dine, uma pequena aldeia do concelho de Vinhais. Como foi a sua infância e juventude?

Sou uma pessoa do campo. Nasci na aldeia. Os meus pais eram agricultores e, desde sempre, estive ligado à aldeia, à vida rural, que é uma vida realmente diferente daquilo que é a vida actual da cidade e mesmo a vida actual das aldeias. Eu cresci numa altura em que as aldeias eram pujantes, eram agradáveis, bonitas, cheias de crianças, cheias de barulho. As pessoas vinham do trabalho, divertiam-se, depois, em conjunto. Havia uma verdadeira vida comunitária e é isso que eu recordo essencialmente da minha infância: é a vida comunitária, é a vida alegre das aldeias, esse tal barulho dos carros de bois, aquelas histórias do serão, à noite… Sabe, eu nasci em Dine mas, depois, com cinco anos a minha família mudou para a aldeia da minha mãe que é nas Peleias também no concelho de Vinhais e o que eu recordo é que, sobretudo no Inverno, os Invernos eram grandes as pessoas guiavam-se pelo sol, guiavam-se muito menos pelo relógio e, de Inverno, havia menos que fazer nas aldeias. Havia menos trabalho, as pessoas tinham mais tempo para o convívio e sobretudo durante a noite, as pessoas juntavam-se em casa dos amigos e em minha casa. Era tradicional, todas as noites, as pessoas juntarem-se e jogarem a sueca, contarem histórias, aquelas histórias imensas que nunca mais acabavam. Havia uns contadores de histórias fantásticas e as pessoas sabiam conviver, sabiam falar. Não se precisava, de facto, da televisão.

Histórias que faziam as crianças ir para a cama com um bocadinho de medo…

Sim, sim e depois, durante a noite, vivenciávamos, em sonhos, essas histórias fantásticas de mouros, de cavaleiros, de termos muito engraçados que, de facto, nessa altura, se usava a história do mama na burra, do arranca pinheiros, do arrasa montanhas. Essas histórias que eu depois fui guardando e que são fantásticas porque representam elas próprias um património imenso que era a alma do nosso povo. A forma como se vivia nessa altura traduzia-se nessas histórias por isso eu, às vezes, tenho dito: Cada idoso que morre é um património nacional que se vai embora e que nós perdemos na nossa região e que não se tem sabido aproveitar porque, esse património traduzia-se em pessoas que sabiam muitas histórias, os contos tradicionais populares, o cancioneiro popular, aquelas cantigas populares que, quando morrem essas pessoas, que neste momento ainda são portadoras desse património deixam, digamos, de existir. Deixam de se conhecer porque, conforme vão morrendo essas pessoas, e eu tenho assistido à morte dessas pessoas mais idosas que com elas vão levando esse património genuíno e que era a alma do nosso povo, e isso entristece-me. Não temos sido capazes, não digo essa forma de viver antiga, que é uma forma, se calhar, com aspectos muito negativos porque envolvia aspectos de pobreza alguns de extrema miséria, dificuldade na acessibilidade às aldeias, o isolamento imenso que havia.
Esse aspecto não nos interessa voltar a viver mas, ao mesmo tempo, envolvia um conjunto de valores, de formas de ser, de formas de viver, de formas de sentir as coisas, de sentir o mundo que eram muito próprias dos transmontanos, até formas de falar, a própria pronúncia das palavras, a forma como nós nos relacionávamos nessa altura através da própria forma de falar, era diferente e, como era diferente, em tão poucos anos, como isto mudou! Como as coisas mudaram!
As aldeias, neste momento, são aldeias isoladas e aldeias silenciosas, tristes, onde o carro de bois já não se sente. Ainda recentemente, no meio de uma consulta numa aldeia, numa extensão de saúde, ouvi um carro de bois a cantar e pedi à doente: “Olhe, vamos parar um bocadinho e vamos ouvir ali aquele carro de bois a passar:” e abri a janela. Se calhar, a doente também convidaria um pouco a isso e ouvi o que é o prazer de ouvir esse som que ficou gravado na minha memória de infância.

Como transmontana, nascida numa pequena aldeia de Vinhais, entendo perfeitamente a sua saudade. Dela partilho e também a valorizo, sempre com pena de não podermos juntar o melhor de dois mundos… É o mais novo de uma família numerosa. Deve ter sido muito difícil, para os seus pais, educarem os filhos.

Sim. Os meus pais não eram pobres. Eram remediados. Eram pessoas que não tinham grandes possibilidades económicas. A minha mãe, antes de ter os filhos, foi professora primária, regente. Ainda hoje, os alunos dela me falam dela com muito carinho. Exerceu durante alguns anos numa aldeia do nosso concelho mas, depois, os filhos começaram a aparecer e ela teve que desistir do ensino primário. O meu pai tinha o seu casal, tinha alguns negócios. Ele negociava em vacas, em porcos, em produtos regionais e terá sido esse esforço imenso que ele fez… o meu pai, com dezassete anos, emigrou para França na altura da guerra civil espanhola etc… o meu pai passou sacrifícios imensos para educar os filhos, mas conseguiu essa tarefa gigantesca que foi formar os sete filhos, dar um curso superior aos sete filhos, sempre com esta ideia, com esta frase, quer dele, quer da minha mãe: “Nós temos que vos tirar desta vida arrastada da lavoura”. Era um pouco esta a maneira como sentiam as coisas e conseguiram essa vitória imensa de tirarem os filhos da lavoura e, enfim, proporcionarem-lhes condições de vida muito mais condignas do que as deles.

Fale-nos do seu percurso estudantil.

Fiz a escola primária nas Peleias, o ensino secundário em Bragança, no Ciclo Preparatório Augusto Moreno, no liceu de Bragança e fiz a Faculdade de Medicina no Porto.

E porquê Medicina?

Essa história da medicina… às vezes a vida tem os seus… o destino funciona, às vezes, um bocadinho, de uma forma aleatória e eu de facto não posso dizer que desde sempre tive essa tendência para a medicina. Há uma fase da minha vida, a fase dos 14, 15, 16, 17 anos em que há alguém que teve uma importância crucial na minha vida que foi um grupo de jovens que era dirigido pelo Senhor Cónego Adelino Pais, pelo padre Adelino Pais que é uma das pessoas mais importantes em todo o processo educacional que me aconteceu e, de facto, foi uma pessoa que me ensinou alguns valores extraordinários, sobretudo, os valores da atenção ao próximo, da solidariedade, até da simplicidade com que se deve aceitar as coisas.
Foi por essa altura que eu descobri que tinha vocação para esta área de lidar com as pessoas, de me dedicar a elas. Aquele sentido mesmo tradicional de poder ajudar as pessoas. Nessa altura, todos nós somos pessoas onde a utopia funciona muito mais. Depois, infelizmente, ao longo da idade essa fase utópica vai-se diluindo, vamo-nos agarrando ao pragmatismo, vamo-nos agarrando às coisas que, se calhar, são cada vez mais supérfluas, menos essenciais. Através da influência desse grande amigo, o padre Adelino Pais que descobri que talvez a medicina fosse a minha vocação. Fiz o curso de medicina e fiz o curso com a ideia fixa de vir cá para cima. Na altura, no meu concelho, havia três médicos. Um deles era o médico da família que era o Dr. Luís Borges e o Dr. Borges funcionava, para mim, como referência daquele médico João semana, o verdadeiro João semana, que ia ver as pessoas a sua casa. Que durante o Inverno nos ia ver quando tínhamos os nossos achaques de doença e foi sempre essa, a minha ideia de medicina.
Acabei o curso de medicina, fiz o internato complementar no Hospital de São João e mantive essa ideia fixa. Acabei por vir para Vinhais na primeira oportunidade que tive. Por aqui fiquei até agora. Foi este, um pouco, o meu percurso.

O que não acontece muito…

Infelizmente, para a nossa região. Temos várias pessoas a dirigir serviços de ponta a nível nacional, em outras regiões que, de facto, não têm ou não tiveram oportunidade ou, muitas vezes, lá está esse tal destino não nos encaminha para a nossa região o que é mau para nós. Se calhar é um ónus que pagamos porque não temos conseguido criar condições, quer a nível do emprego, quer a nível das oportunidades, necessárias para uma pessoa constituir a sua família, a sua vida etc… Cada um de nós, quando pondera radicar-se numa determinada região, numa determinada cidade, numa determinada localidade pondera sempre vários factores: “Será que vivo ali melhor? Será que a minha família tem as mesmas condições que tem noutro lado qualquer?” Quando fazemos esse cálculo, se calhar, muitas vezes, a nossa região acaba por não se constituir como uma região atractiva e, infelizmente para nós, sabemos bem disso.
É uma região com despovoamento acelerado. É uma região de envelhecimento acelerado e, naturalmente, quando uma região se encontra num processo depressivo como é a nossa, com poucos investimentos, com poucas oportunidades de emprego, naturalmente, não é convidativo vir para aqui e talvez seja esse o motivo fundamental porque há muita gente que não regressa a casa.

O que acha das notas que se exigem hoje em dia para se entrar para as Faculdades de Medicina, em Portugal?

É uma coisa que, até por problemas familiares, tenho vários sobrinhos que têm vindo a entrar em medicina, outros que têm ido para outras áreas, tenho acompanhado com alguma angústia porque sinto que cada vez mais os jovens de hoje são submetidos a uma pressão tremenda quando é a altura de escolherem a sua vocação profissional e só uma pequenina parte deles é que consegue aceder àquilo que quer; no meu tempo era mais fácil era mais… havia muito menos aquele sentido da concorrência entre os jovens, havia, até, uma entreajuda muito grande. Neste momento estou a ver que os jovens concorrem entre si desde muito pequenos e só os mais capazes, só eventualmente os mais apoiados, aqueles que têm melhor envolvência familiar, só esses é que conseguem triunfar e aceder àquilo que se propõem seguir.
Vejo com alguma angústia que para medicina só vão os melhores alunos isto porquê, muitas vezes, o ser bom aluno não corresponde a algumas condições de personalidade, de forma de ser, de forma de sentir a vida e o mundo que as pessoas deviam ter para serem médicos.
Ser médico não é apenas saber medicina. Há aquela célebre expressão “Um médico que só sabe medicina nem medicina sabe.” E é verdade e isso mantém-se cada vez mais actual. Neste momento, também, sou formador de jovens médicos e vejo que essa selectividade que se introduziu para aceder a medicina, medicina será o curso que, desde há alguns anos para cá, tem médias mais altas para se conseguir chegar lá, para se conseguir entrar nas Faculdades de Medicina e vejo que esse critério leva a que pessoas que, do ponto de vista da sua personalidade, não seriam as pessoas mais indicadas para serem médicos e que depois ficam com o curso na mão e, naturalmente, vão exercer medicina e vão canalizar-se para áreas mais técnicas porque não têm essa capacidade…

Há mais de dezasseis anos preside à direcção da APADI, Associação de Pais e Amigos do Diminuído Intelectual, uma instituição particular de solidariedade social, uma IPSS já com 26 anos de existência. Que representa para si esta associação?

Representa a oportunidade que eu tenho de traduzir, dar corpo, a esse sentido humanista que todos temos de ter na nossa vida. Os poucos momentos para a APADI são momentos de prazer. Funciona como um escape ao stress do dia-a-dia porque aqueles bocadinhos que temos com a APADI, são momentos para mim relaxantes, momentos de prazer. A APADI é uma instituição que me tem dado muito mais a mim do que eu à APADI. Integrei-me na direcção há cerca de dezasseis anos e, neste momento, é algo que funciona como uma das coisas mais importantes que faço na minha vida. É o chegar à APADI, o sentir o carinho das pessoas à minha volta, o sentir que para além da nossa vida, das nossas pequeninas coisas há outras coisas que são muito maiores e muito mais importantes e há gente que continua a precisar cada vez mais de nós, vai-nos lembrando isso.
A APADI é acima de tudo, gente, pessoas… é uma estrutura que nasceu de um movimento de cidadania, constitui um lar residencial e, em 1980, começou a aceitar os primeiros utentes, cerca de oito utentes. Os anos 78, 79 foram os anos cruciais para o nascimento desse movimento de cidadania. Na altura, o distrito de Bragança não tinha nenhuma estrutura de apoio à deficiência que pudesse preencher essa lacuna de receber pessoas, aceitar no seu seio e as poder, no fundo, institucionalizar. Era necessário criar alguma coisa que respondesse a várias situações que havia pendentes nessa ocasião.
Esse movimento de cidadãos conseguiu abrir uma pequenina casa que foi cedida por um sócio da APADI. Aceitaram oito utentes e, a partir daí, foi todo um trajecto, um caminho que se foi fazendo. Construiu-se um edifício novo. Depois um segundo edifício… aceitou-se, inicialmente, jovens e depois adultos e, neste momento, a APADI tem, desde jovens a adultos, pessoas com deficiência mental, com multideficiência, com paralisia cerebral, alguns cegos, algumas sequelas de traumatismos. Tem uma diversidade de pessoas no seu seio que têm ali a sua casa, têm ali a sua família e que nós procuramos que seja assumida como tal. Que não seja uma instituição homófona, uma instituição onde todas as pessoas são tratadas de igual forma, não. Procuramos que cada pessoa tenha uma atenção especial que potencie as suas capacidades cada vez mais.

Acha que as pessoas com deficiência são bem tratadas em Portugal?

Eu acho que não. Nem em Portugal nem noutra região. A pessoa com deficiência é a pessoa que neste momento, na sociedade, devido aos problemas e aos constrangimentos da sociedade são os elementos mais frágeis, o elo mais frágil da cadeia social é a pessoa com deficiência. Se olharmos para as nossas comunidades antigas no mundo rural, as pessoas com deficiência, no seio daqueles problemas todos, com as dificuldades todas que havia, eram pessoas reconvertidas em algumas actividades muito interessantes e eram aceites no seio da comunidade à maneira das pessoas, algumas delas, eventualmente, poderiam até servir em certos momentos como chacota, como mas, nos momentos importantes, essas pessoas eram aceites na comunidade. Entretanto, as nossas comunidades rurais foram-se desestruturando. As comunidades mais urbanas são sempre comunidades mais agrestes, menos atentas à pessoa em si e àqueles que têm mais dificuldades.
Neste momento estamos numa situação e, concretamente, na nossa região transmontana e também no nosso país, em que as pessoas não têm muitas saídas, não têm um elo de solidariedade a nível das nossas aldeias porque essa cadeia de solidariedade está muito deficitária. Já só temos lá quase pessoas idosas, algumas com dificuldade de assumir a sua própria autonomia, a sua actividade do dia-a-dia e muito incapazes de ajudar seja quem for e a pessoa com deficiência não tem muito onde se agarrar, não tem possibilidade de se apoiar localmente e, por outro lado, não criámos estruturas que permitam que essa pessoa continue integrada no seu seio, na sua comunidade e tenha a atenção que precisa. Isso era o ideal.
O ideal era que ninguém tivesse que estar em instituições como são os lares residenciais… que tivessem de estar fechadas numa instituição. O ideal era que as pessoas continuassem no seio da sua comunidade mas, na nossa região, é cada vez mais difícil que isso aconteça.

Qual é a capacidade da APADI?

A APADI, neste momento, tem várias estruturas. Tem um lar residencial, que tem 77 utentes. Tem a sua capacidade lotada. Infelizmente, já tem lista de espera o que é muito mau e esse lar residencial tem desde crianças a jovens e adultos. Depois, tem um Centro de Actividades Ocupacionais que é a ultima aposta, a última estrutura que nasceu agora na APADI que é um centro que se destina exactamente a dar resposta, em ambulatório, àquelas pessoas com deficiência que têm possibilidade de continuar no seio da sua família e que podem usufruir de um centro de actividades ocupacionais. Essas pessoas, realmente, podem aceder através das actividades ocupacionais e, esse sim, tem disponibilidade de lugares e as pessoas podem inscrever-se ainda e devem inscrever-se lá. Pessoas com deficiência mental grave, que é para isso que se destina, pessoas que não tenham capacidade profissional de ser integradas num meio laboral normal e têm essa alternativa no Centro de Actividades Ocupacionais onde podem, com as suas deficiências, ser acompanhadas de uma maneira específica, de uma maneira própria, que lhes permita potenciarem as suas aptidões e as suas capacidades.

Além desses, que outro tipo de serviços oferece a APADI aos utentes e aos seus familiares?

Depois, temos uma Unidade de Reabilitação, a unidade onde se pode fazer fisioterapia, onde se podem fazer alguns tratamentos de reabilitação psicomotora. Temos uma unidade que é qualquer coisa parecida com um centro de terapia, onde se encontram os vários tipos de equipamentos para prestar esse tipo de cuidados e onde temos, também, outros equipamentos específicos, dirigidos a pessoas com deficiência mental, uma sala que está dotada de equipamentos de estimulação, outros de relaxamento psicomotor, dirigida a pessoas deficientes que tenham crises de agitação psicomotora, que tenham problemas a nível do seu relacionamento com o meio exterior. Temos esses e outros equipamentos que, de facto, permitem que haja uma especificidade de recuperação para essas pessoas. Temos, ainda, uma consulta de terapia da fala a funcionar nas instalações. Temos técnicos especializados: uma fisioterapeuta, uma fisioterapeuta ocupacional, professores, animadores, temos um conjunto de técnicos que permitem lançar mão de determinadas técnicas para ajudar à recuperação psicomotora e funcional das pessoas.

Acha que o nosso distrito está bem servido no que concerne instituições de apoio a pessoas com deficiência?

Este tipo de estruturas nunca são demais mas, o que eu sinto é isto: O que faz falta é a nível local, sobretudo, a nível dos concelhos, a nível das comunidades locais, pequenas estruturas que permitam fazer um diagnóstico das situações que temos lá e, localmente, encontrar alguma forma de resposta que permita que essas pessoas fiquem inseridas no seu meio ambiente, na sua comunidade. Há algumas formas de resposta que podem ser e têm de ser específicas para nós, porque as nossas comunidades são todas muito afastadas umas das outras, são todas muito dispersas, muito distantes e, às vezes, aqueles problemas da solidão…
Vir de outro concelho a Bragança não é fácil e, se isso for diário, ou se for várias vezes por semana, muito mais difícil se torna, apesar de nós termos uma carrinha para transporte de pessoas em cadeira de rodas, com condições específicas para isso, mas não é fácil, alguns concelhos pela distância, e temos uma forma de resposta para que as pessoas possam vir cá regularmente. Há uma necessidade de, pelo menos em alguns concelhos, arranjar uma forma de resposta local que, eventualmente, ainda não está instalada. Por outro lado, há outras formas de deficiência que têm outras instituições. Estou a pensar na ASCUDT e, em Mirandela, há algumas instituições que têm respostas específicas para essas pessoas que ajudam, que respondem a esse tipo de necessidades mas, a nível da deficiência, o que se nota é isto: O deficiente é, acima de tudo, um cidadão e todas as condições que permitam que essa pessoa se integre o melhor possível na sua família, núcleo fundamental para a pessoa com deficiência, quer na sua vida laboral, que é também outro dos aspectos essenciais, quer a nível da escolaridade e aos vários níveis que fazem parte da vida de todos nós.
Temos de encara a pessoa com deficiência como um cidadão que tem os seus direitos, que tem os seus deveres, mas que tem de ser um cidadão bem integrado. Se ele não for integrado, a vários níveis, é um peso social e ninguém quer ser um peso social. A sociedade tem que tentar abolir os pesos, digamos que existem, seja a nível da deficiência, seja a nível da toxicodependência seja a nível dos vários problemas que afectam a nossa sociedade.
           
O que cada um de nós poderá fazer para melhorar a situação dos milhares de deficientes existentes na região?

Acho que essa pergunta é muito interessante. O que é que cada um de nós pode fazer? Penso que, de facto, a resposta à deficiência, a resposta nessa área, tem de ser uma resposta essencialmente traduzida na vontade colectiva e na vontade individual de cada pessoa. A APADI nasceu de um movimento de cidadãos, não nasceu de uma determinação do Estado, não nasceu de estruturas que o Estado monta para a resposta à deficiência que são estruturas, todas elas, que muitas vezes respondem de uma forma muito precária. As que respondem bem, as que respondem melhor são aquelas que nascem de movimentos de cidadania. Nós temos que pensar assim: O problema dos deficientes, como agora dissemos, não está minimamente ultrapassado. Não está, aos vários níveis: a nível educacional, a nível profissional, a nível de integração social, as barreiras arquitectónicas que a sociedade ainda tem, no apoio às actividades da vida diária.
O deficiente precisa de tomar o seu banhinho de manhã, de tomar as suas refeições, de utilizar as várias dependências da sua casa, precisa de ir fazer as suas compras e precisa de ir numa carreira de rodas e, muitas vezes, não é possível ir fazer as compras. Tantas vezes na nossa cidade e na nossa região não é possível aceder a estes locais onde todos nós vamos tão facilmente. Eles não têm essa facilidade. O seu handycap, a sua dificuldade não lhes permite isso.
Se abrirmos um bocadinho os olhos, se olharmos, de uma forma atenta, à nossa volta, constatamos isso mesmo. Constatamos que as barreiras que nós colocamos e, sobretudo, as barreiras que estão dentro de nós próprios, muitas vezes são enormes e isso impede que a pessoa deficiente se integre, totalmente, na sociedade. Cada um de nós tem um caminho a percorrer a esse nível e esse caminho nunca está concluído. Nunca está, porque os problemas que se levantam hoje, não são os mesmos de há dez anos e os problemas daqui a dez anos serão bem diferentes para todos nós, para os deficientes, para os não deficientes, para a sociedade, para a educação… É necessário que nós, em cada momento, tenhamos a disponibilidade, sobretudo, psicológica para aceitar que podemos fazer mais alguma coisa.

E o Governo, o que é que pode fazer?

O Governo, em relação às instituições, penso que as pode apoiar mais. Nós, no caso da APADI, temos cerca de 60%, 70% das nossas actividades que são apoiadas pelo Governo. Estas instituições, naturalmente, são instituições que têm orçamentos muito caros. A APADI tem um orçamento que ultrapassa os duzentos mil contos por ano. São, de facto, instituições que tem um peso muito forte em termos financeiros, em termos de saúde financeira mas, mais de 30% das nossas necessidades, conseguimos angaria-las sem sermos um peso para o Estado. Aliás, estamos a tentar cada vez mais, formas de resposta que nos permitam essa tal autonomia, essa tal solidez financeira que permita à instituição não estar dependente, não ser subsídio-dependente. Nós recebemos apenas, aquilo que faz parte do acordo que temos e que é o acordo nacional das IPSS (instituições particulares de solidariedade social) com o Ministério, com o Estado e é isso que nós recebemos. Não pedimos mais nada que isso. São candidaturas como qualquer outra instituição na área da formação, dos equipamentos, e candidatamo-nos e, naturalmente, seguindo os critérios normais dessas candidaturas, temos conseguido algumas aprovações no sentido de lançar estas obras que temos lançado mas, o que eu sinto é que alguns aspectos, nomeadamente, em relação à reabilitação, há alguns aspectos que nós, no fundo, prestamos um serviço de saúde, num acordo proposto ao Ministério da Saúde já há alguns anos e ainda não está consumado. Se calhar, há potencialidades que estão instaladas no terreno que não são aproveitadas, e era muito importante dar resposta a mais pessoas porque, a capacidade económica das pessoas, é pequena.

A APADI tem levado a cabo uma série de actividades com o fim de angariar recursos financeiros. O que tem previsto fazer proximamente?

Nós temos um calendário anual de actividades de angariação de fundos. Fizemos, recentemente, um almoço que fazemos todos os anos, habitualmente, por altura do mês de Maio, Junho. Temos uma venda de material, que constitui, ao mesmo tempo, uma actividade ocupacional da casa. Os nossos utentes e os nossos funcionários, durante o ano, vão fazendo alguns trabalhos, diversas coisas, algumas delas vendáveis e, na altura do natal, organizamos uma venda que, também, já está no calendário de muita gente aqui da nossa cidade e há muita gente que está à espera da nossa venda de Natal, da nossa quermesse para ir visitar a APADI e comprar algumas coisas na APADI e é uma fonte de financiamento importante para nós. Depois, temos o pirilampo mágico que tem alguma importância para nós como fonte de financiamento e temos outras actividades ligadas à cultura que, por vezes, funcionam como fontes de financiamento. Queria aproveitar para agradecer publicamente à associação que temos tido o privilégio de ter com a pintora Graça Morais que tem sido uma grande benemérita da nossa instituição e através da venda de algumas obras dela temos conseguido angariar diversos fundos. Temos várias actividades, algumas delas flexíveis, outras já rotineiras a que vamos lançando mão para angariar fundos para a nossa instituição.

Piu Belle tem tido um papel importante na vossa venda de Natal…

Piu Belle e a Roda Guinia são duas empresas de pessoas transmontanas e de transmontanos genuínos, de pessoas que continuam agarradas à nossa região, à sua região e às suas gentes e têm sido extraordinários no apoio que nos têm dado. São duas empresas que nos financiam praticamente tudo o que é de atoalhados, lençóis, por aí fora. Tudo isso é-nos oferecido pela Piu Belle ou pela Roda Guinia. São amigos de longa data que fazem parte da nossa instituição.

Como transmontano o que acha que poderemos fazer para debelar a desertificação?

É uma pergunta que dava para conversarmos um largo período. Penso que na região a desertificação é apenas um dos factores e, se calhar, no início da entrevista afloramos um pouco. A desertificação acontece quando a região não oferece oportunidades de fixação às pessoas, sobretudo aos jovens. A desertificação na nossa região acontece, sobretudo, nas pessoas que estejam na altura de arranjarem emprego, de ascenderem a determinados objectivos, sobretudo, os técnicos, as pessoas que têm formação superior, aqueles que poderiam desenvolver a sua actividade na nossa região mas que aqui não encontram oportunidade. A nossa região tem sido, sobretudo para quem já tem uma actividade mais diferencia, não tem sido uma região de oportunidades e, não sendo uma região de oportunidades, leva a que as pessoas vão embora daqui, inicialmente, iam para o estrangeiro neste momento dá-se, sobretudo, a migração interna e o que nos foge, essencialmente, são os jovens e as pessoas que estão à procura do primeiro emprego. Neste momento, em alguns concelhos começa a acontecer uma coisa: os próprios idosos começam a não ter condições para viverem nas suas próprias comunidades. Os seus filhos saíram da casa dos pais e constituíram os seus agregados familiares, muitas vezes em Lisboa, Porto ou mesmo no estrangeiro, os pais foram ficando, muitas vezes, um deles morreu o outro ficou sozinho e depois não é a questão de não terem boas condições em casa, não é a questão de não terem dinheiro, o que não têm é saúde suficiente, é terem limitações próprias da idade, do seu processo de envelhecimento e até limitações provenientes da doença, de tromboses, de reumatismo etc… que levam a que eles próprios não sejam capazes de se bastar a se próprios e, na aldeia, queixam-se sistematicamente de que não conseguem arranjar ninguém que trate deles. As estruturas de apoio social que existem, centros de dia, etc… não abrangem aquelas mais pequeninas comunidades, mais afastadas e as pessoas sofrem, além do envelhecimento, o isolamento e esse isolamento torna ainda mais agreste para os idosos, a continuação no seio das nossas pequenas comunidades. Estamos a ter problemas de desertificação através da saída dos jovens, das pessoas que podiam trabalhar, trazer um aporte de maior riqueza para a nossa região e, ao mesmo tempo, os nossos idosos, alguns deles, têm que nos deixar, ir para instituições, para ao pé dos filhos em Lisboa, no Porto, etc… penosamente e, muitas vezes, muito contrariados.

O que podemos fazer para que a interioridade não se torne em isolamento?

Em primeiro lugar, há aqui algumas apostas que são essenciais. Alguns núcleos que têm de funcionar como molas de arranque param a nossa região, nomeadamente, a nossa capital de distrito, pode e deve funcionar como uma mola de arranque para o desenvolvimento nesse sentido. Há outros núcleos dispersos pelo distrito que não podem ser esquecidos e que não devem ser esquecidos, quer a nível das sedes de concelho, quer a nível de alguns núcleos dentro desses concelhos, que têm de ser zonas de atractividade. É necessário criar atractividade nessas localidades. Por outro lado, as acessibilidades, a universidade, o problema de criação de algumas estruturas, inclusive, essas estruturas de apoio à terceira idade. Quando se cria um centro de dia, gera-se localmente, numa freguesia afastada, sete ou oito ou dez empregos nessa comunidade. As pessoas não precisam sair dali para trabalhar e, ao mesmo tempo, arranjamos uma estrutura de resposta, fixamos alguns jovens que trabalham nesses centros de dia e nessas estruturas de apoio domiciliário. Se nós conseguirmos criar respostas, quer a nível do apoio social, quer a nível de fixação dalguns jovens através de formas criativas, dinamismo da parte das autarquias, da parte das entidades que estão instaladas no terreno para criar essas formas de resposta que tem que ser muito bem conseguidas, muito bem geridas. Se nós conseguirmos, através dessas formas, respostas para criar um maior número de oportunidades, vamos conseguir inverter. É evidente que isso é um processo que demora o seu tempo, naturalmente, porque lá está… nós, neste momento, no nosso distrito, temos mil nascimentos por ano porque não temos pessoas que possam estar em idade de procriar. É necessário que venham pessoas jovens para cá, é necessário criarmos esse tal fluxo que não é fácil, de facto…

Fazer o inverso, em vez de levar, trazer…

Tem que haver vinda de jovens que possam, não apenas fixar-se aqui, na cidade de Bragança mas, em todo o distrito. Eu vejo que a cidade de Bragança é uma cidade jovem, relativamente jovem porque tem várias escolas e isso traz pessoas mas, a nível das comunidades rurais, a desertificação é cada vez mais flagrante.

Em que devemos apostar para, sem perder as nossas características mais marcantes, acompanharmos o avanço do mundo em que vivemos? 

Nós temos que encontrar uma conjuntura totalmente diferente. Temos que encontrar uma alma transmontana. Nós tínhamos uma alma transmontana que, neste momento, está numa crise profunda. Nós tornámo-nos mais amorfos, temos uma vida muito semelhante àquela que se tem no resto das comunidades do país. 
Temos uma forma de falar. Já quase não se conhece um transmontano noutro lado. Temos uma forma de encarar as coisas, também, já um pouco mais amorfa, um pouco menos marcante. O que traz as pessoas a Trás-os-Montes é algo que seja diferente e, sobretudo, que tenha qualidade. Nós não temos capacidade para competir através da quantidade em nada. As apostas que temos e que têm dado bons resultados são as apostas que sido dadas na qualidade. O fumeiro de Vinhais foi uma aposta na qualidade desde há muitos anos e está a funcionar como fonte de riqueza para o nosso concelho. A carne de vitela mirandesa é, neste momento, uma carne que marca pela qualidade. Conseguiu uma imagem que a implementou. Ainda, recentemente, estive no Algarve e no restaurante vi, com muito agrado que, um dos pratos que eles tinham como ex libris era a carne de vaca mirandesa.
São experiências que podem funcionar como experiências de interesse. Nós temos vários produtos regionais que são interessantes, que têm imagem para podermos apostar mais neles, pela vertente da qualidade. O próprio azeite, as azeitonas transmontanas, os frutos secos, a castanha que está tão mal aproveitada.
Outro património de que se fala, é o património etnográfico e cultural transmontano. As pessoas quando aqui vêm ou quando acedem às pequenas comunidades, se calhar, acham muita piada e muito interessantes estes resquícios da forma de ser antiga e é isto que levam, essencialmente. Aquilo que vêem e que os liga a um passado que é relativamente recente, mas que para eles funciona como um passado antigo, longínquo e é nisso que nós temos que apostar.

Sendo natural do concelho de Vinhais, não sente pena e tristeza de aquela paisagem não seja aproveitada turisticamente?

Não temos uma resposta. Vinhais tem uma área imensa no Parque de Montesinho e olhe que é pouco agradável sentir que a própria capacidade hoteleira instalada em Vinhais, está completamente desaproveitada. Temos muito poucas camas. Se formos ver, no meu concelho temos uma, temos algumas casas instaladas no Parque Natural de Montesinho e no restante concelho algumas delas com interessantes condições, mas que têm taxas de ocupação que não são muito interessantes e é evidente que oferecer apenas uma paisagem deslumbrante em algumas épocas do ano, como são na altura da primavera e do Outono, não é suficiente. É necessário encontrar uma resposta que seja integrada, que cative as pessoas, que as mobilize para ir a qualquer lado. Se eu sou mobilizado para ir a qualquer lado, se tiver algo que me leve a ir lá e se me oferecerem uma paisagem bonita, é capaz de não ser suficientemente mobilizador. Pelo menos, tem-se revelado insuficiente. Temos de encontrar uma resposta, impor uma imagem, construir uma imagem que leve as pessoas a aderirem. Hoje em dia todos nós gostamos de ir a um sítio que tenha condições onde passar dois ou três dias e não apenas a visitar montes. Essa ideia de “montes de emoções” pode ser realmente desenvolvida em várias vertentes e tem que ser aproveitada.

Para terminar, que personalidade ou personalidades o marcaram mais ao longo da sua vida?
           
Já citei uma delas foi o cónego Avelino Pais pela sua simplicidade, pela sua imensa humildade a tal pessoa que faz a obra e torna-se invisível mas que primeiro faz a obra. Essa foi uma personalidade extremamente marcante para mim. Além da personalidade do meu pai e da minha mãe que foram marcantes em todos os aspectos. Depois, houve um conjunto de outras pessoas que têm sido importantes para mim e que não queria citar algumas, porque poderá haver outras que pudessem ficar. Há um conjunto de pessoas que foram importantes, como todos nós temos, na nossa vida, pessoas que nos marcam mais e com quem convivemos e que às vezes nos agarramos a muitas coisas que essas pessoas nos vão transmitindo. Ao longo da minha vida desde a minha infância passam-me pela ideia várias figuras, várias pessoas mas, sobretudo, essa tal forma de ser e de sentir que era genuinamente nossa e que eu guardo assim, cá num cantinho da minha alma e do meu coração com muito carinho.

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