sexta-feira, 11 de maio de 2012

Sentimento

O sol brilhava inclemente. Princípio de tarde, caminho por percorrer.
O homem caminhava devagar. Pensativo. A mochila às costas devia pesar. Era volumosa e grande mas o homem não dava por isso. Caminhava como quem não tem pressa em chegar mas que sabe que lá chegará. Nunca lhe soube o nome ou de onde vinha. Apenas sei que buscava... como quem procura algo que não tem a certeza se existirá.
Chamei-lhe Peregrino porque peregrinava o seu santuário, o santuário do seu corpo que ele cuidava como se amanhã fosse o último dia.
Cabelos brancos, barba farta e grisalha, alto e musculado, parco em gordura supérflua, tinha o charme de quem tem muito para contar sob uma aura de mistério.
Interessei-me, claro, por descobrir quem seria. Era um homem bonito. Não era velho mas, tinha nas pernas e no corpo muitas vivências. Parecia sábio de vida.
Segui-o com o olhar, sentada na varanda, a lutar contra aquela morrinhice que se sente a seguir ao almoço, num dia quente.
Parou, olhou para os lados e para a frente. Virou-se e olhou para o caminho atrás de si. Parecia acordado de um sonho, sarapantado com o brusco acordar.
Viu-me na varanda. Voltou para trás e deu as boas tardes com um carregado sotaque inglês.
"Boa Tarde!"
"Diga-me, por favor, onde estou."
"Está na aldeia da Ribeira que pertence ao concelho de Vinhais."
Apesar do sotaque, falava fluentemente. Tinha, da língua, um conhecimento informado.
"Devo ter-me enganado. Queria ir até Bragança. Venho das arribas do Douro e pensei passar uns dias a estudar os monumentos da cidade." Riu-se, meneou a cabeça... "Vinha bem distraído!"
"É verdade! Devia ter continuado pela estrada principal. Daqui a Bragança ainda são uns bons vinte e cinco quilómetros!"
"Isso, para mim, não é nada. Tenho muitos milhares de quilómetros nas pernas... mas, sabe... alguma coisa me fez virar para aqui. Acredito que há algo que me faz tomar as atitudes que tomo. Nada acontece por acaso."
"Há uma certa predestinação nas nossas vidas. Também acredito nisso."
"Já agora, importa-se que eu suba para a sua varanda e descanse um pouco da minha caminhada?"
"Não, faça favor! Quer comer alguma coisa, beber?"
Ato contínuo, subiu os cinco degraus que nos separavam da rua, cumprimentou-me com um aperto de mão e pediu licença para se sentar num banco corrido que ali existe. Só então reparei no azul  incrível dos seus olhos. Nunca imaginei que alguém pudesse ter olhos de um azul tão puro. Tinha a pele tisnada pelo sol, os cabelos queimados e secos das muitas léguas percorridas. As mãos eram incrivelmente belas, como uma primaveril paisagem transmontana.
Encostou-se à parede e fechou os olhos por um instante e só então respondeu que sim, que aceitava uma refeição. Perguntou se poderia refrescar-se. Disse-lhe que sim e indiquei-lhe o caminho da casa de banho. Ofereci-lhe uma toalha, que ele recusou. Apareceu dez minutos depois. Trazia outra roupa vestida e o cabelo molhado. Apercebi-me que havia tomado banho de água fria pois o esquentador não deu sinais de vida.
Na mesa já estava um prato de sopa e um bom prato de cozido à portuguesa que havia sido o nosso almoço. Como sobremesa uma maça e uma banana. Coloquei, ainda, uma garrafa com vinho e uma caneca de água. O cesto resplandecia com o bom pão de Trás-os-Montes, cozido em forno de lenha, ainda quente. Saíra do forno pouco antes do almoço.
Agradeceu e sentou-se. Sentei-me, também, para lhe fazer companhia. Fez uma pequena oração e comeu a sopa devagar, saboreando-a. Recusou as carnes do cozido. Era vegetariano. Comeu o pão com imenso prazer. Bebeu um pequeno copo de vinho e muita água. Comeu a banana e guardou a maça na mochila, não sem antes me ter pedido autorização.
"Obrigado! Fez-me sentir um privilegiado. Um príncipe. Caminho, sem parar, há muitos dias. Tenho dormido pouco. Sinto uma urgência muito grande de chegar, não sei bem aonde. Deve pensar que sou meio doido!" Olhou para mim e riu-se timidamente.
"Não, de maneira menhuma!" Disse veementemente.
Estava fascinada com aquela pessoa. Algures, nos meus mais profundos e encobertos sentimentos, estava aquela figura. Não tinha consciência, de nada assim mas, no fundo da minha alma, sabia que aconteceria. Sabia que tinha de viver aquilo.
"Importa-se que eu descanse um pouco nesta penumbra da lareira? Está muito calor para seguir viagem e eu sinto que ainda não posso sair daqui."
Era surreal. Deixei-o sentado no escano. Tirei a louça da mesa. Coloquei-a na bancada junto ao louceiro. Deitei fora os restos e voltei para a varanda. Na casa imperava o silêncio. Na rua também. Os meus avós dormiam a sesta. Parecia que a vida tinha pedido licença para descansar.
Saí para o terraço e voltei a sentar-me na cadeira onde estava quando tudo começou. Aguardava, calmamente, o próximo episódio.

Mara Cepeda
       

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