segunda-feira, 7 de maio de 2012

O povo do Sol e da Lua

Três pequenas crianças maltrapilhas, sujas, ranhosas, brincavam junto de um monte de sucata e lixo que se aglomerava perto do que parecia ser um barraco coberto com folhas de zinco.
Sorriam as três, correndo, saltando, rindo, gritando em grande algazarra atrás dos pequeninos cães que ali se encontravam, tão sujos como eles.
No acampamento, recheado de barracas improváveis e de carros-casa, o sol brilhava, primaveril, depois das intensas chuvas de abril. Era o primeiro dia de verdadeira primavera e, como tal, era recebido com exuberante alegria.
Para um espectador distraído, o que ali se vislumbrava, cheirava a pobreza, a decadência, a terceiro mundo... para mim não passava de um cenário necessitado de musculada intervenção.
Manter e fomentar a alegria seria um dos objetivos. A limpeza, uma necessidade premente, exigia que muita coisa mudasse. Urgia unir esforços para que aquela situação se alterasse e aqueles meninos e as suas famílias pudessem ter uma vida digna, adaptada às suas tradições. Aquele era o povo do Sol e da Lua.
Eram livres e as amarras transformavam-se em prisões insuportáveis. Incompreendidos, auto-excluídos, esta gente não se insere (não os inserimos) no nosso modus vivendi.
Não conseguimos entender que o seu modo de vida não se rege por um trabalho das 9 às 18. A sua alma anseia campo, animais, verde... hoje aqui, amanhã acolá é assim que vive este povo. Quem manda são as crianças. Não importa que se sujem no ato mesmo de se lavarem e vestirem. Não importa que uma pedrada certeira tombe um triste e pobre cão que, tropego, gane dolorosamente.
Que fazer? Como agir?
Se a minha avó ainda aqui estivesse diria que "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura". Devagar, devarinho, através da educação, da escola, com carinho e compreensão, criando as condições mínimas de sobrevivência digna.
"Os ciganos não têm jeito, são um caso perdido. Há milénios que este povo deambula por aí a mendigar o sustento, a roubar o que está a modo..." Diremos todos ou quase...
E então, os risos transparentes como água cristalina emudecem. O brilho do olhar ensombrece. Os pés descalços sentem o chão frio. O corpo semidespido arrepia-se com a brusca aragem vinda do norte. O nariz sente os cheiros nauseabundos que conspurcam o ar até agora perfumado de flores. As mães-madrastas maltratam os filhos. Os gritos são impotência e revolta. O cibo do pão amarga como a fome que dói.
Estalou-se o paraíso e o purgatório consome as almas que o sol aqueceu.
As crianças choram mágoas suas e alheias de muitos séculos de vidas errantes.
Os lobos anunciam a chegada da lua que não é de mel. A chuva bate nas folhas de zinco como pedras de David.
Dentro das barracas o frio é insuportável. A fome engana-se com sopa de fiolho e pão. O dinheiro gastou-se em vinho insensível e bruto que turva o amor.
As bátegas inclementes arremessam-se contra os carros-casa desassossegando os bebés que dormem. Gritos. Português semeado de romance (a sua língua) brada raios e coriscos contra tudo e todos. O inferno instala-se em dias de paraíso.
O povo do Sol e da Lua não consegue seguir o caminho principal. Segue por atalhos tortuosos e íngremes que o aldeano não ajuda a trilhar.
A tempestade passou. Tudo é silêncio no acampamento.
Amanhã, as crianças sorrirão, soltando gritinhos de alegria, atrás do pequeno cão, sujas, felizes, quase despidas, os pequenos pés a sentirem a frieza do chão...

Mara Cepeda 

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