A primavera tardia adentrava, lentamente, no espaço temporal que deveria ocupar em pleno.
Os campos começavam a refletir a sua presença silenciosa e tímida.
Os pássaros chirlreavam contentes escolhendo os melhores lugares para fazer os ninhos. Os ribeirinhos acordavam da secura atípica do inverno. Cantarolavam de pedra em pedra, saltitando e borrifando as margens com pequenas gotas de água fria.
Um sol tímido e envergonhado, espreguiçava-se como se ainda fosse cedo para realizar os desígnios da natureza.
Chegava, com atraso, é verdade... as urzes arroxeavam os montes, as maias floriam as sua pequenas flores amarelas. As estevas, com as cinco chagas de Cristo, estendiam-se viçosas pelos campos incultos.
Na curva do caminho um alarido de gritos e latidos de cães. O chiar das rodas das carroças nas pedras anunciava a chegada de uma caravana de ciganos. O tilintar dos tachos e panelas não deixavam margem para dúvidas.
Lá ao fundo, o pequeno vale encoberto pela sombra dos montes, aguardava-os sobressaltado e ansioso. Um frémito de incertezas pairava no ar.
Seriam os mesmos do ano passado? Trariam com eles o Taludo, causador de tantos desacatos? Teria conseguido, a matriarca, controlar a impulsividade do seu filho mais novo?
Perguntas a que só a chegada da caravana à aldeia poderia responder.
Os animais cansados da longa jornada, suportavam, dolorosamente, a última etapa. Na aldeia o burburinho da população misturava-se com o alarido da caravana. As mulheres, em casa, faziam a retrospetiva dos latos e caldeiros que tinham para consertar.
"Ó de casa! O ti Joaquim!"
"Que queres Mata Mouros?"
"Estamos de volta para mais uma temporada. Queríamos a sua benção..."
"Ó homem, entra lá! Vem beber um copo de vinho."
O ti Joaquim era a pessoa mais influente da aldeia e, tacitamente, todos entendiam necessitar da sua aprovação, fosse para o que fosse.
"Mata Mouros era bom homem. Era o patriarca da família e desde pequeno tinha por hábito passar algum tempo naquela pequena aldeia. Não teria mais de quarenta anos, era casado com Alzira e tinha dez filhos e outros tantos netos.
A família era constituída por cerca de cinquenta pessoas, entre pais, mães, irmãos, tios, tias, avós... o elemento mais velho era a tia Ana que teria setenta anos, talvez. O mais novo tinha nascido naquela noite, dentro de um dos carros.
Era uma grande família de ciganos transmontanos que tinham como ganha pão a latoaria e a venda e compra de animais e seus acessórios como albardas. Tinham, é claro, aquele uso de mendigar, de não terem medo de pedir.
Depois da benção do ti Joaquim, lá se instalaram na eira onde permaneceriam enquanto houvesse latos para compor animais para negociar.
As gentes da aldeia estavam habituadas à grande família e logo as mulheres rodearam a jovem mãe com a criança recém-nascida ao colo. Era um menino, milagrosamente, saudável. Estava embrulhado em alguns panos limpos e chorava desalmadamente. A mãe, mal alimentada, não tinha leite suficiente e a criança tinha fome. Joana, rapariga corada, bem constituída, tinha uma menina de três meses que dormia placidamente no seu regaço. Não podendo ouvir mais o choro do bebé, entregou a sua menina à mãe e, pegando no pequenino Mário, sentou-se numa pedra e deu-lhe de mamar.
Teresa teria quinze anos. Era o seu primeiro filho. Tinha fome. Estava cansada, preocupada e não passava de uma menina.
Num repente, o pequeno Mário, passou a ser responsabilidade das mulheres da aldeia. Eram tempos difíceis aqueles que se viviam ainda sob os ecos da Segunda Grande Guerra. A miséria era muita, a solidariedade também.
Mara Cepeda
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