terça-feira, 22 de maio de 2012

Magia

O Peregrino disse chamar-se James Crawford. Finalmente um nome, indizível para os meus avós, um batismo, para mim. No entanto, continuarei a chamar-lhe Peregrino.
A sua vida revelava-se-me como um romance, uma aventura saída de um qualquer Olimpo. Parecia um deus menor a pagar pelos seus pecados. A busca incessante de um motivo para tal viagem que ainda continuava sem respostas.
O destino havia-o trazido até ali, naquela morrinhice de um dia atipicamente quente de primavera. Porquê?
Envolta nestes pensamentos, regresso ao chamamento do nome da minha avó: “Elvira, vamos lá plantar as cebolas que se faz tarde.”
“Posso ir com os senhores? Gostaria muito de ajudar.” Português perfeito, sotaque muito British, ansiedade na voz como um menino que teme não ser atendido.
“Pode. Vamos ver que ajuda nos pode dar.” Resposta com sorriso malandro do meu avô, pouco confiante no trabalho braçal de um professor universitário, desparafusado, que andava a correr mundo há dez anos.
“Avô, eu também vou!” “Olha esta agora! Agora sim que temos uns ajudantes especiais, mulher!” A ironia inconfundível do meu avô.
Dez minutos depois, saímos com os apetrechos necessários para a função. A égua encarregava-se de os transportar, montada pelo meu avô. A Terronha fica aos pés do Serro. Ainda eram alguns quilómetros até lá chegarmos. Os dias eram grandes, a atmosfera convidava ao passeio. A paisagem deslumbrava.
Chegados ao ribeiro que cortava o caminho, prenhe de água das muitas chuvas de abril, foi necessário escolher por onde passar para não molhar os pés. A minha avô, leve como uma pena, viu-se erguida no ar pelo nosso convidado e pousada do outro lado com muito cuidado, com os pés absolutamente secos. Ria-se, divertida, com a atitude do rapaz... como ela dizia. O meu avô meneava a cabeça, tentando compreender aquela personagem, essencialmente boa, sofrida, ávida de respostas.
Enquanto isso, eu escolhia pedras onde por os pés para não ser arrastada pela correnteza. O peregrino, ato contínuo, volta-se, entra novamente no leito do pequeno ribeiro, mesmo a tempo de me evitar uma queda. As pedras lisas escorregavam como vidro.
Os meus avós esperavam que nos juntássemos a eles. O animal relinchava impaciente. Continuámos a caminhada, desta vez a subir. O pó, as pedras, o cheiro a giestas floridas, as abelhas a voejarem as flores de esteva... A imponência do Serro, a magia de todas as lendas de mouras encantadas, de princesas prisioneiras, de bruxas e fadas, enleava-nos nos seus anéis de energia pura.
A égua parou. Sacudiu a vasta crina. Bateu com os cascos nas pedras do caminho, relinchou, baixou a cabeça como se fizesse vénias...
“Eh, lá! Então minha maluca! Que é que te aconteceu? Alguma cobra? Ó Elvira, anda dar uma ajuda.”
A minha avó pegou-lhe na rédea, puxou por ela. O animal nem se mexeu. O meu avô apeou-se. Tomou o lugar da minha avó, puxou, bateu, tudo tentou mas a égua não saiu do lugar.
De repente, uma brisa quente como uma labareda percorreu-nos a todos por breves instantes. A atmosfera mudou. Tudo voltou ao normal. Estávamos mudos de espanto.
“Parece bruxedo! Que coisa!” Era a voz da minha avó.
O Peregrino estava atónito. “Que se passou aqui? Que foi que aconteceu?” Olhou para mim como a esperar respostas que eu não tinha. Estava estupefacta, tanto quanto ele.
“Há coisas que não podemos explicar. Vamos continuar.” A voz de comando do meu avô.
Fizemos os restantes quilómetros em silêncio. Chegámos ao sítio, descarregámos as coisas e começámos a trabalhar.
Sem que ninguém mandasse, com extrema sabedoria, James começou a abrir o rego para plantar o cebolo. Trabalhava com habilidade como se já tivesse feito aquilo, algumas centenas de vezes. O meu avô olhava incrédulo. A minha avó, com um sorriso nos olhos azuis. Eu esperava que alguém me dissesse o que era preciso fazer.
“Garota, pega nas luvas e esparge o estrume nos regos.” Assim fui fazendo enquanto os meus avôs, iam, depois de mim, posicionando as cebolas. Sem que ninguém falasse, o serviço ia-se fazendo como numa fábrica perfeitamente mecanizada.
James calculara, rapidamente, quantas valas deveria abrir para os dois centos de cebolo. Estudou a orientação e a melhor maneira de regar. Acertou em cheio porque o meu avô não fez o menor reparo ao trabalho do Peregrino.
Quando o meu avô se preparava para cobrir as plantas, já o nosso ajudante punha mãos à obra e fazia-o com mestria. Tanta que o meu avô não tirava os olhos do rapaz, admiradíssimo com a sua habilidade e sabedoria.
Concluído o trabalho era necessário regar. O meu avô abriu o poço e o inglês, como se nunca na vida tivesse feito outra coisa, orientou a água para cada um dos regos, esperando calmamente que ela acamasse e molhasse bem a terra. Na horta já haviam sido plantados os pimentos e os tomateiros. Algumas alfaces já se apresentavam em condições de comer e foram colhidas.
Agora era necessário semear as feijocas, os feijões de estaca, os pepinos, os melões e as melancias. A terra aguardava as sementes que a tornariam mãe de muitos filhos.
“Vamos senhor Manuel, vamos lá que ainda temos muito tempo.”
“Já deves estar cansado rapaz.”
“Não senhor! Isto para mim não é nada. Ganho tudo o que como e pago as estadias e o bem que me fazem com o trabalho dos meus braços.”
Admirado, o meu avô rendeu-se à evidência e os quatro, com energia renovada, trabalhámos como se não houvesse amanhã.
Acabado o trabalho, lusco-fusco, cansados mas felizes, metemos pés ao caminho. A égua, até ali esquecida, tinha a barriga cheia de erva fresca. Ficou contente quando nos aproximámos e relinchou de alegria. Carregámo-la com as ferramentas, o meu avô montou e seguimos em procissão. O caminho tornou-se mais leve, mais fácil. O ribeiro continuava no seu lugar, gorgolejante. Ligeiras, as suas águas prenhas de segredos, cantavam cantigas às pedras e aos peixinhos.
Mais uma vez, a minha avó passou o ribeiro sem se molhar. Eu, escolhi melhor as pedras onde pisar.
Continuava calor. O chiado dos carros de bois que regressavam a casa no final do dia misturava-se com o tilintar das campainhas das vacas e ovelhas. Ao longe, o uivo de um lobo solitário eriçou-me os cabelos. Os cães ladraram. Um ou outro morcego voou por cima das nossas cabeças. As últimas crias bebiam água no tanque antes de recolherem às lojas. Homens e mulheres ansiavam descanso. Crianças choravam. A noite caiu serena.           
O acontecimento inexplicável por nós vivenciado, à tarde, seria tema de conversa, à luz da lareira enquanto se fazia a vianda dos porcos para o dia seguinte.

Mara Cepeda

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