sexta-feira, 18 de maio de 2012

Entrevista com José António Saraiva Brinquete, alentejano de Elvas, membro do PCP, a viver em Bragança


O que faz um alentejano em Bragança?

Bem, essa pergunta é interessantíssima. Em primeiro lugar, queria agradecer o convite que me foi feito para participar neste projecto. Tenho lido uma grande parte das entrevistas que foram feitas e, penso que é uma mais-valia, naquilo que diz respeito a chamar a atenção de figuras da região. Provavelmente, eu não estarei à altura de muitas delas e, portanto, é também para mim uma honra fazer parte da galeria dos entrevistados.
Para responder à pergunta, que tem de facto muita pertinência, precisávamos de falar sobre o que é a identidade do cidadão; a identidade de um homem ou de uma mulher; o que é que forma a identidade… De facto, a identidade de qualquer cidadão é formada pelo sítio onde nasceu e qualquer pessoa deve ter orgulho do sítio onde nasceu. Eu, pessoalmente, tenho muito orgulho de ter nascido no Alentejo. Depois, se saímos, se corremos mundo, se vivemos noutros locais, a nossa identidade é forjada, também, por outros locais, outras pessoas e, de facto, a minha vida, o meu destino, se é que há destino, levou-me a que nos últimos trinta anos tenha vivido em Trás-os-Montes e Alto Douro, uma região onde os meus filhos nasceram e foram criados, andaram na escola e costumo dizer que nós somos do local onde estamos, portanto, se me pergunta de que local eu sou, sou de Bragança, vivo em Bragança há muitos anos, mas também sou de onde nasci, não sei se a satisfaz esta resposta.
Isto dava pano para mangas, mas nós somos do local onde estamos, onde intervimos política, social e culturalmente e, portanto, nos locais onde eu tenho vivido - não sei se viverei noutros no futuro - sou de lá e é pelo local onde vivo que eu luto, que eu batalho para que as pessoas, as mais necessitadas, possam viver melhor, porque eu sou daqueles que acredito que os homens, quando falo dos homens é dos homens e das mulheres, podem transformar o mundo e eu prefiro que o transformem para melhor do que para pior. Tento fazer este esforço, não sei se o tenho conseguido, mas estou convencido que tenho dado um pequeno contributo.

Como era viver no Alentejo antes do 25 de Abril?

Eu vivi no Alentejo só até aos catorze anos, depois fui para Lisboa, onde estive até aos vinte e um, depois dos vinte e um vim para o Alto Douro. Fiquei muitos anos na zona de Lamego, Régua, Tarouca, Pesqueira, etc. Nos últimos dezanove, vivo em Bragança.
Tenho boas recordações do Alentejo, excelentes mesmo, até porque tenho uma família numerosíssima. Tenho nove irmãos, a maioria casados, muitos sobrinhos. Tenho os meus pais vivos e, portanto, tenho uma família imensa. Gosto imenso do Alentejo e das minhas raízes. Foi bom ter vivido no Alentejo.

É filho de operários agrícolas. Como viveu todos os problemas inerentes às lutas dos trabalhadores alentejanos pelos seus direitos?

Eu, desde que adquiri consciência política e social, que não é o mesmo que consciência política e partidária. Adquiri consciência política e social antes de me tornar militante de um partido, que é neste caso o Partido Comunista Português, onde estou há muitos anos e gosto muito de estar. Gosto muito de ser comunista. Tenho uma grande alegria por isso, mas desde que tomei consciência política e social acreditei que os trabalhadores de todo o mundo, incluindo, também, os operários agrícolas alentejanos, que são aqueles que constroem o mundo, claro que em parceria com muitas outras classes, mas são uma parte fundamental da humanidade, têm que ser respeitados, ter direitos e, felizmente, as sociedades têm-nos protegido nesse sentido. Porque, quem olhar para a história, se olharmos para trás para a história, os primórdios da humanidade em que os seres humanos nem sequer tinham consciência. Sou daqueles que acredita que a consciência é o grande momento da libertação do homem, que se deu quando foi descoberto o trabalho, quando os humanos compreenderam que era preciso trabalhar e acumular meios e mantimentos para poderem sobreviver. Este é o grande momento de libertação da humanidade.
Depois temos o período esclavagista. A escravidão foi abolida há cento e tal anos. Seguiram-se-lhe movimentos sociais enormes e vitoriosos, desde o fim do século XIX, por todo o século XX, que levaram os operários agrícolas e não só, a que fossem tratados como seres humanos. Infelizmente, na actualidade, temos alguns sinais preocupantes, conquistas sociais que podem estar a ser colocadas em perigo, mas eu tenho uma ideia: quem trabalha, seja do ponto de vista braçal, físico, seja do ponto de vista intelectual, deve trabalhar com direitos e com dignidade, porque o trabalho, só é trabalho, se for feito conscientemente e devidamente remunerado. É a mola propulsora do progresso.

“Levantados do Chão” de José Saramago retrata, fielmente, essa situação.

Em relação ao José Saramago, é preciso dizer que se trata de um dos maiores escritores de todos os tempos. É um dos meus escritores de eleição. Não é o meu número um, pois tenho uma admiração muito especial por Aquilino Ribeiro. Logo a seguir a Aquilino Ribeiro vem José Saramago e do José Saramago, único prémio Nobel da literatura portuguesa (ele tem um conjunto de grandes livros, todos grandes livros) mas, eu sou daqueles que considero que “Levantados do Chão” é o maior livro de todos e, dos 3 maiores, eu selecciono “Levantados do Chão”, “Memorial do Convento”, “Ano da Morte de Ricardo Reis”, sendo certo que todos os outros me deram imenso prazer em ler. São histórias maravilhosas, que para além de serem maravilhosas são muito bem escritas.
“Levantados do Chão” é um romance de três gerações de alentejanos, que termina exactamente no dia 25 de Abril. São três gerações de operários agrícolas alentejanos que começam praticamente no início do século XX e terminam no dia da revolução de Abril, daí que, provavelmente, há um desafio a fazer ao José Saramago ou a outro escritor para que faça agora outro “Levantados do Chão”.
Eu, desse romance que é um grande romance de literatura portuguesa, chamo atenção a uma situação particular. No meio do romance há uma senhora que tem um bebé e, ele «o escritor» descreve o parto em vinte ou trinta páginas da forma mais magistral que eu já vi descrever um parto. O José Saramago faz isso de uma forma brilhante e, eu convido todos os leitores que ainda não leram essa obra, que vão a correr lê-la, porque estão a perder um grande romance da literatura portuguesa.

Nos anos de 1971/72 foi subchefe da redacção do jornal “Boa União”. Que jornal era esse?

Era um jornal que se fazia e ainda se faz, creio que ainda se faz, embora eu há vários anos que estou desligado, numa colectividade de Alfama, a Sociedade “Boa União”. Embora muito jovem, com dezoito anos apenas, fui convidado a pertencer a duas secções dessa colectividade. Á biblioteca onde se ensinava o esperanto, e como devem saber o esperanto era uma língua que estava muito em voga, que era combatida pela PIDE, pelo salazarismo, porque era considerada uma língua universalista; e, também, fui convidado para a redacção do jornal da colectividade. No primeiro ano ajudei a fazer o jornal e, depois nos dois anos seguintes fui, de facto, chefe da redacção que me deu um grande gozo e uma experiência muito interessante para a minha idade.
Era um jornal de bairro, mas um jornal com muito interesse porque reflectia os problemas de um grande bairro na altura, hoje já não tanto. Por exemplo há uma história interessantíssima que vale a pena contar muito rapidamente. Nós, no ano de 1972, se não me engano, lutámos para que o antigo edifício da Companhia das Águas no Largo do Chafariz de Dentro, fosse transformado num espaço público, de utilidade pública, porque estava a cair aos bocados e era um edifício muito nobre. Depois do 25 de Abril, esse edifício chegou a ser sede do PCP e, há cerca de quinze anos esse edifício passou a ser o Museu do Fado. É com grande gosto, como calculam, que verifico que trinta e tal anos depois de eu ter participado numa luta que exigia do governo, e na altura de um governo fascista, que o edifício fosse recuperado para espaço público cultural - trinta anos depois - o objectivo é atingido, neste caso, pela Câmara Municipal de Lisboa, ainda no tempo da Coligação do PS com a CDU. Implantou-se aí o Museu do Fado.
Chamo a atenção para quem goste de fado, ou para quem queira conhecer a história do fado, tem que obrigatoriamente visitar o Museu do Fado, no Largo do Chafariz de Dentro, em Alfama. Que é um sítio interessantíssimo e, onde está a história do fado desde a Severa até ao Paulo Bragança, portanto, vale a pena visitar.

Penso que pelo seu currículo, poderá ter estado envolvido no movimento das Forças Armadas que conduziu ao 25 de Abril, fale-nos da Revolução por dentro.

Eu, na noite do 25 de Abril, estava no Grupo nº 1 das Escolas da Armada em Vila Franca de Xira, portanto, na Marinha de Guerra Portuguesa e, de madrugada, fui acordado por Capitães de Abril que eram meus amigos que me convidaram a participar e aderi de imediato ao movimento. Logo nessa madrugada, fui dos militares que ocuparam a escola da PIDE em Benfica e, depois no seguimento disso tudo, pertenci à Assembleia do MFA da Marinha, que foi uma Assembleia histórica para quem conhece os acontecimentos da altura. Pertenci ainda, à Assembleia do MFA dos três ramos das Forças Armadas, constituída por militares da marinha, da força aérea e do exército.
Tive responsabilidades bastante elevadas e onde tive também a responsabilidade directa de um jornal. Fui director de um jornal “O Rumo” que teve edição durante um ano. Fui realizador e produtor de um programa de rádio que se chamava “A Voz da Armada”, que tinha emissão nacional e era transmitida através das antenas do antigo Rádio Clube Português, com instalações nas Janelas Verdes, junto ao Museu de Arte Antiga, em Lisboa.

Viveu o conturbado período de 1974/75, intervindo em associações e meios de comunicação social. Já nos falou um pouco disso, foi difícil chegar a normalidade da democracia?

Claro que é sempre difícil, mas o 25 de Abril teve duas componentes. Uma primeira componente foi a intervenção dos militares e aquilo podia ter sido um simples golpe militar. Foi uma intervenção militar que tinha por objectivo as revindicações de classe. Tinha muito a ver com a guerra colonial, muito a ver com os militares que iam para a guerra e as suas expectativas profissionais mas, graças a um facto histórico que se deu e que foi a população ter vindo para a rua e aliar-se àquele movimento e às forças políticas que entretanto se construíram. O PCP que já existia e que se aguentou durante a ditadura a lutar pela democracia, mas também o PS, o PSD e o próprio CDS, que legitimaram todo o acontecimento. Daí que aquele acontecimento que podia ter sido um simples golpe militar, tornou-se numa revolução e as revoluções não são, nem existem só pela nossa vontade. Existem se, efectivamente, se realizarem determinados objectivos, se mexerem com a situação. O 25 de Abril e a Revolução de Abril mexeram de facto com o poder político, com o poder político ditatorial. Acabou com a censura, acabou com a guerra colonial, estabeleceu os direitos, criou liberdade, deu as garantias que temos hoje. Penso que ainda não está completamente cumprido o 25 de Abril porque, sobretudo, aquela ideia dos militares, cujo desenvolvimento está ainda com imensos problemas ou com problemas sérios a nível do desenvolvimento económico do país, da criação da riqueza que é fundamental para a nossa independência. Porém, penso que o 25 de Abril, globalmente, foi positivo, foi muito duro. Há sempre forças que perdem o poder e os direitos mas, felizmente, as forças democráticas foram mais poderosas e hoje vivemos numa democracia, numa democracia com alguns defeitos, defeitos muito grandes, mas que podem ser corrigidos. Depende de nós e nas eleições é sempre possível corrigir.
Eu sou daqueles que acredita que a democracia é o meio que pode corrigir os erros, as injustiças, desde que a população participe pois, a pior coisa que pode suceder é a população deixar de participar e que diga que não vale a pena, que são todos iguais, que não vale a pena votar. É preciso adquirir a consciência de que está nas nossas mãos mudar e se as coisas, às vezes, estão mal, a responsabilidade é um pouco de cada um de nós. Portanto, eu acho que foi difícil mas, quase quarenta anos depois, temos uma democracia que ninguém questiona. Temos as novas gerações que nem sequer sonham com o que era a ditadura, não é? Espero que nunca tenham essa experiência e que vivendo em democracia, cresceram com mais informação, mais conhecimento, com outras condições de vida e as gerações que fizeram a guerra em África, os homens que para lá foram e as mulheres que os esperaram em Portugal, de certeza que, muitos deles, têm transmitido aos filhos o que foi esse tempo, porque ainda há uma memória muito fresca do que foi o período negro da ditadura fascista.

O Partido Comunista Português perdeu o seu membro mais ilustre, o Dr. Álvaro Cunhal. O que representa para si esta perda?

Bem, eu tenho para com a morte uma atitude muito pragmática. Considero que todos nós a partir do momento em que nascemos temos como certo, morrer. Portanto, em relação à morte, é essa a minha posição. Em relação ao meu camarada Álvaro Cunhal, que para além de ser meu camarada, era também meu amigo, travei muitas batalhas a seu lado. Aliás, das últimas vezes que estive com ele em público, foi em Bragança a apresentar um livro que escreveu, que também é um livro de referência chamado “A Arte, o Artista e a Sociedade”, no Instituto Politécnico de Bragança…

Ele deu uma entrevista histórica na RBA a Valentina Paiva…

Devo dizer que deu uma entrevista importantíssima, que foi referida aquando da sua morte. Foi referência em alguns órgãos de comunicação social. A revista Visão, por exemplo, disse que tinha sido uma entrevista de antologia. Espero que a RBA (Rádio Bragançana) a tenha guardado porque vale a pena. Vale também a pena dizer que a D. Valentina Paiva, que também já não está entre nós, ganhou o 1º Prémio de um concurso da Rádio Renascença, onde participaram quarenta e tal concorrentes.
E essa entrevista teve valor porquê? Porque a D. Valentina Paiva tinha um programa que era “O Canto do Espelho”, que tinha bastantes particularidades, muito intimista e o Dr. Álvaro Cunhal decidiu aceitar participar nesse programa, onde descreveu desde namoradas que teve, a experiências da mais variada ordem… os seus melhores professores. Quem ouviu, penso que se lembra, mas para não me perder, eu diria que o que me fica do Dr. Álvaro Cunhal é a certeza de um grande dirigente político nacional e mundial. Um homem que deixa uma obra incontornável. Se há alguma homenagem que lhe podemos prestar, já tenho a informação que a direcção do PCP vai editar a sua obra completa e esta é a  melhor homenagem que lhe podemos prestar, a um grande homem, quer seja ao Dr. Álvaro Cunhal, quer seja outra pessoa. O que vale no homem é a obra que fica.

É membro da Assembleia Municipal de Bragança, eleito pela CDU desde 1974. Qual é o peso da democracia que hoje vivemos?

Bem, as Assembleias Municipais já tiveram mais poderes do que o têm hoje. Em 1982 e depois em 1991, se não me engano, uma coligação do PS e do PSD, reformaram as leis autárquicas e presidencializaram as câmaras. Hoje, o Presidente da Câmara é o homem que manda em tudo, pois os vereadores são uma espécie de paus mandados, a não ser que haja Presidentes da Câmara e, há alguns, não muitos, infelizmente, que delegam competências aos vereadores porque, se não for assim, o vereador praticamente só faz o que o Presidente da Câmara manda. Portanto, as Assembleias Municipais são uma tribuna importantíssima que deve ser valorizada, mas estão muito longe de ser aquilo que já foram no pós 25 de Abril, em que podiam fazer propostas de alteração ao Plano de Actividades, ao Orçamento, podiam fazer propostas de alteração às taxas e licenças e hoje só podem votar contra ou a favor do que vem na proposta da Câmara. Mesmo assim, a CDU e eu em nome da CDU com os outros meus camaradas, na Assembleia Municipal (tenho trabalhado na Assembleia Municipal com Ilídio Correia, com a Eng. Maria do Loreto e, agora, com Luís Costa, temos aproveitado a Assembleia para trabalhar em nome do concelho, e o que lhe posso dizer é que fomos conquistando alguns espaços, fomos tentando que os outros grupos parlamentares aceitassem as nossas propostas, não pela cor política, mas pela verdade intrínseca que tinham e, com muita frequência para não dizer quase 90%, as nossas propostas, que têm sido muitas, são aprovadas ou por maioria ou por unanimidade. Recentemente propusemos… é uma proposta que não tem a relevância de uma grande obra estrutural para o concelho, mas tem uma relevância simbólica. Propusemos, na última Assembleia que foi há quinze dias, a atribuição de nomes de ruas da cidade a cinco figuras ilustres que faleceram recentemente, ao General Vasco Gonçalves, ao Dr. Álvaro Cunhal, ao poeta Eugénio de Andrade, ao cientista e médico Corino de Andrade e ao professor Emílio Guerreiro. Esta proposta apresentada pela CDU foi aprovada por unanimidade, portanto, digamos que temos uma Assembleia Municipal que hoje tem um espaço democrático muito vasto e que muito tem contribuído o facto de o Sr. Presidente, mesmo sendo de campos diferentes do meu, pois não estamos de acordo no essencial, em termos de projecto político, é um homem que tem uma postura democrática e, que tem um conceito de democracia que é precisamente respeitar todas as partes em presença. O actual Presidente da Assembleia Municipal, Dr. Telmo Moreno, tem também contribuído de uma forma significativa, para que a Assembleia tenha um funcionamento democrático, dentro das suas competências, que como eu dizia de início, hoje, são muito restritivas e não são aquelas que eu desejo e defendo.

A sua participação no 3º Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro foi importante. O que se pode esperar dessa iniciativa e se acha importante a sua realização periódica?

Eu considero importante a sua realização periódica, aliás, chamei a atenção do facto de só trinta anos depois do 25 de Abril, se tenha realizado um Congresso em Trás-os-Montes, sobre uma região tão expressiva. Trabalhei um bocado sobre a história dos outros dois, porque o primeiro foi em 1920 ainda no período da 1ª República e, o segundo em 1941 já em pleno Estado Fascista e o terceiro em 2002. Portanto, considero que a regularidade do Congresso é fundamental. Fundamental porque o Congresso sobre Trás-os-Montes e Alto Douro deve ter a participação de todas as instituições e organizações económicas, sociais, culturais, sindicais, ambientais. Porque será sempre um elemento de pressão. Sobretudo, numa fase ainda mais importante em que não temos regionalização e, temos um poder central completamente centralista, até cada vez mais centralista. Em relação ao último, ele teve muitas peripécias.
Nas intervenções que fiz e em alguns artigos que escrevi nos jornais, chamei atenção para essas peripécias que precisavam de ficar na história, sobretudo peripécias que tinham a ver com o partido que estava no governo, que se queria apropriar desse Congresso. É sempre inevitável que se apropriem de alguma forma mas, sou daqueles que pensa que houve aspectos positivos em relação à realização do 3º Congresso e, também, negativos.
Os dois aspectos negativos que eu depois apontei num artigo em que fiz o balanço, foram o facto de as conclusões do Congresso, que devia ser um documento importante e com valor, não terem sido votadas. Assim perderam peso político porque não foram sufragadas, pelos cerca de 1000 participantes. O segundo aspecto foi não ter saído daquele Congresso, também, com uma votação, uma comissão abrangente que tivesse responsabilidade de levar à prática as conclusões. As conclusões andam por aí a ser evocadas a tordo e a direito, mas não têm filho, não têm pai, não têm herdeiros, e portanto, podem ser dois pontos a corrigir no próximo congresso. Por outro lado, ficou também o compromisso de o Congresso se realizar de cinco em cinco anos, ficando mais ou menos apontado para que se realizasse em Lamego.
Penso que esta experiência teve defeitos, mas valeu a pena, porque havia sessenta anos que não se realizava um Congresso. Esperemos que haja haver alguém que transporte a chama, não é? Que seja o porta-voz desse Congresso, enquanto não se realizar o próximo e que bata à porta das instituições a quem temos de exigir as medidas que estão sempre adiadas em relação a esta parte do país. Parecendo que não, Trás-os-Montes e Alto Douro para quem não sabe, corresponde a sessenta por cento do território a norte do Douro e corresponde a cerca de catorze por cento do território nacional. É uma parte muito importante de Portugal, que não pode ser só Lisboa e o Porto. Portugal só será Portugal no dia em que for Trás-os-Montes, a Beira, o Alentejo, o Algarve, os Açores, ou seja, aquilo que está na constituição e que diz que o país deve ser uma unidade e ter uma coesão nacional, que hoje praticamente não existe para ser cumprida.

O que pensa da criação da Universidade de Bragança?

Eu penso que a passagem do IPB a Universidade é estratégica e fundamental para a região. É uma consequência natural da evolução que o Instituto Politécnico tem tido, quer a nível físico, das infra-estruturas, quer a nível do pessoal, quer a nível da docência. É preciso ver que quando se falou a primeira vez da criação da Universidade de Bragança foi em 1991, pela mão do PS, que agora é contra e já se invocava a importância que o Politécnico tinha e estava longe de ter os cento e tal doutores que hoje tem, uma dezena de mestrados e a possibilidade de, daqui a um ou dois anos, ter cerca de duzentos doutores. A importância da criação da Universidade tem a ver com a evolução do próprio ensino superior. Com o tratado de Bolonha existe uma tendência para a União Europeia mercantilizar o saber, designadamente a nível do ensino superior e há até quem diga que pode vir a ter uma tendência tipo Idade Média. Na Idade Média sabemos quem era dono do conhecimento. Eram os conventos, eram os reis, era a nobreza. Depois, com a evolução, com a Revolução Francesa, com as Revoluções Socialistas e com a democratização do ocidente de uma forma geral, massificou-se e democratizou-se o ensino, também, a nível do ensino superior. Basta dizer que em Portugal, com o 25 de Abril, havia cinquenta e cinco mil alunos no ensino superior, hoje há setecentos mil alunos no ensino superior. Então, a União Europeia com o Tratado de Bolonha, pretende que se volte ao elitismo do conhecimento e inclusive que se privatizem as Universidades de excelência, para que os grandes grupos monopolistas mandem nessas Universidades e, dominem o conhecimento. Se isso progredir e, também aceito que não seja no imediato mas, se caminhar para aí, então o IPB corre o risco de se tornar numa simples escola técnica e profissional e, é preciso avaliar, sobretudo, aqueles que denigrem o IPB e, infelizmente, há pessoas muito irresponsáveis em Bragança que têm denegrido, politicamente falando, por várias razões, o IPB. Nem sabem a responsabilidade em que se estão a meter e, sobretudo no crime que estão a cometer ao desprestigiar uma instituição que também tem defeitos certamente, mas que precisa não só de ser defendida, como acarinhada e devemos lutar para que a sua evolução natural seja para ensino universitário e não só politécnico.
Eu tenho dito, na Assembleia Municipal, onde recentemente este assunto veio ao de cima e, tenho dito que isto é uma luta de grande duração, é uma luta que provavelmente não se pode ver o seu resultado final no imediato, mas é preciso que as populações não desarmem e, sobretudo que os actores políticos, os responsáveis políticos institucionais, aqueles que acreditam nesta reivindicação não desarmem. Porque os dirigentes políticos, sobretudo dos partidos que têm ganho as eleições sistematicamente, precisam de perceber que este desígnio é fundamental para o desenvolvimento de Trás-os-Montes, em particular do Nordeste Transmontano, que é fronteira com uma importante zona de Espanha, que tem cinco ou seis universidades e que é preciso fazer frente a essa concorrência. É fundamental, é estratégico e contribuirá decisivamente para o desenvolvimento do Nordeste, se acontecer a evolução do IPB para o Ensino Universitário.

É Vice-Presidente da Associação dos Utentes das Rodovias de Trás-os-Montes e Alto Douro. O que pretende esta Associação?

A AURTAD criou-se com o apoio de todos os partidos. Penso que foi muito bom, embora, tenha também os seus senãos, porque pode parecer uma coisa muito consensual. Eu não tive problemas nenhuns em aderir de alma e coração, desde a sua fundação. Fui um dos fundadores, porque creio que é perfeitamente possível, todos os partidos estarem em sintonia com esta Associação, que existe para defender vidas, evitar acidentes, banir mortes. Não existe cor partidária nenhuma que valha a vida e, não nada que divida os partidos sobre isso.
Uma das vertentes da Associação, é exigir ao Governo que as estradas tenham segurança, que tenham sinalização, que tenham postos de apoio e serviços de apoio. Outra exigência é que se construam as estradas que precisamos, porque existem duas ou três causas para os acidentes. Primeiro, o condutor, as manobras perigosas e o álcool mas, uma grande parte dos acidentes dão-se porque as estradas estão mal sinalizadas, existem buracos, bermas altas, traçados criminosos. Ainda recentemente, um estudo chamou a atenção para isso, e portanto, é uma contribuição que eu dou para essa Associação, no sentido de tentarmos que o Nordeste Transmontano também tenha auto-estradas, tenha IPs, que tenha estradas que liguem, de uma forma rápida e eficaz, todo os concelhos e todas essas estradas com segurança máxima. Esse é o contributo que estou a tentar dar nesta associação.

A desertificação é um problema gravíssimo desta região. Em sua opinião o que se poderia fazer para por fim a este flagelo?

A desertificação é o resultado das políticas de desenvolvimento que temos tido, ou das que não temos tido. Temos tido governos que têm privilegiado sobretudo a concentração em Lisboa e Porto, ou para ser mais rigoroso na faixa que vai de Braga a Setúbal. Mesmo o 3º Quadro Comunitário de Apoio, que está a decorrer agora, a que chamam Plano de Desenvolvimento Regional, que tem 12 mil milhões de contos para gastar, da Comunidade Europeia, que é muito dinheiro. Tem três eixos de desenvolvimento fundamentais e os vários governos, quando chegam ao poder, que foi o que aconteceu com este, não inverteram nada em relação aos eixos de desenvolvimento definidos, quer dizer: vão continuar a abandonar o interior e, os três eixos de desenvolvimento que é para onde vai o grosso do dinheiro vão manter-se. Eixos que são os seguintes: Primeiro, eixo de Braga, Porto, Vila Feira; Segundo, eixo de Viseu, Coimbra, Figueira da Foz; Terceiro, eixo de Leiria, Lisboa e Setúbal. Ora, qualquer governante, qualquer Primeiro-Ministro que venha ai em campanha eleitoral, que venha ai a dizer que agora é que o interior vai ser desenvolvido, não tendo invertido esses três eixos fundamentais de investimento, vem mentir, porque se o programa está definido para um lado, é evidente que não pode estar para o outro. A desertificação humana dá-se porque os homens e as mulheres precisam de trabalhar, precisam de viver, precisam de criar os seus filhos, por isso vão para onde há empregos. A maioria da população de Lisboa não é de lá e, a pergunta que se faz é porque é que estão lá? Estão lá porque lá é que arranjaram trabalho e, repare, sempre que se reformam voltam para a sua terra, só que voltam já muitas vezes velhotes e agora com a reforma a passar para os 65 anos, provavelmente 70, alguns até já não voltarão, morrerão antes da reforma.
Portanto, o segredo da pólvora, como se costuma dizer, está descoberto. Toda a gente sabe como é que se desenvolve o interior, toda a gente sabe que onde houve desenvolvimento, houve investimento público muito poderoso e os privados só chegam depois, não investem às cegas. Enquanto o Estado não der cobertura e, toda a gente sabe que Bragança está num estado crítico, perigosíssimo, não digo só a cidade, também as aldeias, conheço praticamente todas as aldeias do distrito. São seiscentas e tal e estão em morte técnica, não têm o mínimo de condições para ter um café aberto, para terem uma associação cultural e recreativa, para terem um posto médico, não têm pessoas suficientes. Numa palavra não tem vida social. Mesmo a cidade de Bragança que construiu um conjunto de equipamentos significativos, a maioria desses equipamentos também apoiámos, embora em relação a alguns façamos críticas muito severas, porque se cometeram alguns erros, mas a cidade de Bragança que tem um conjunto de equipamentos, que está uma cidade agradável, bonita, eu gosto muito da cidade de Bragança, mas só tem 20.000 habitantes.
Se não forem criadas empresas, indústria, indústria não poluente, pois não precisamos de poluição para nada, se o IPB não progredir para Universidade e, passar a Instituto Técnico Profissional e, se reduzir de 5.500 alunos para 3.000 por exemplo, eu quero ver como vamos aguentar a cidade de Bragança com níveis de qualidade e bem-estar que tem neste momento. Os responsáveis, tem muito a ver com o governo central que não dá sinais nenhuns de querer inverter a tendência. É perfeitamente possível criarem-se empregos, aqui, mudando as políticas, pois com empregos as pessoas ficam.

É uma pessoa culturalmente interveniente, desenvolve actividades em vários campos da arte, fale-nos desse percurso.

Isso é uma coisa mais incómoda pelo seguinte: não sou artista, nunca fui, nem quero ser, embora, tenha muito gosto pelas artes de uma forma geral. Tenho um pequeno hobby de pintura e de desenho. Digo pequeno porque, depois, não gosto do que faço, depois deito fora, é só para exercitar as mãos. Na área da fotografia, faço muita fotografia, entro em concursos de fotografia, tenho ganho um ou outro prémio que me dá uma certa alegria, mas a isto não se pode chamar um artista, chama-se artista a alguém que tem sensibilidade para a fotografia, pintura, desenho, gosto muito de música mas não sei tocar. Gostava muito de poder tocar gaita-de-foles, pois tenho uma gaita-de-foles histórica que me foi vendida por um dos grandes gaiteiro do Planalto Mirandês. Tem 2 foles. Ele tocou com ela muitos anos, tem um som fantástico. Não sei tocar, mas ando com muita vontade de aprender a tocar, pois gosto muito de música, música étnica, música original, gosto muito, mas não sei nem uma nota musical, apesar de dedicar uma parte da minha vida a ouvir música. As minhas preferências musicais vão para a música étnica, para as espirituais negras, para o jazz, fado mas, depois, de uma forma geral, para a música bem tocada e bem cantada, com aqueles sons que mexem connosco.

Agora para terminar, qual a personalidade ou personalidades que mais o marcaram ao longo da sua vida?

Isso era um rol imenso, mas do ponto de vista político e ideológico foi Marx, Engels, Lenine, Álvaro Cunhal. Do ponto de vista pessoal foi o meu pai, a minha mãe, a minha família de uma forma geral, muitos dos amigos com quem tenho convivido pela vida fora, portanto, era uma lista que nunca mais acabava, muito extensa.

Obrigada!

1 comentário:

  1. Olá Brinquete; ainda te lembras do Fernando Dâmaso, amigo do Nuno Costa e frequentador da Boa União? Eu gostava muito de pintura e ainda pinto.
    O meu Email é fernandodfonseca@gmail.com.
    Um abraço.

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