Bem-vindo! Vamos chamar à sua entrevista, “A construção do céu”.
Nasceu em Sendim, Trás-os-Montes de que forma é que esta região o marcou?
Sabe que o local onde nascemos e a família onde nascemos marca-nos sempre, independentemente da nossa vontade. O facto de termos crescido numa determinada rua, marca-nos para a toda a vida; ainda hoje me lembro da rua em que nasci que é a rua da Fragua, Frauga como nós dizemos. Éramos muitos miúdos e havia sempre colegas para a brincadeira, havia sempre brincadeiras sem fim, umas porradas pelo meio também faziam parte e isso é algo que nos encheu a juventude de gritos de alegria, de brincadeiras, com muitas dificuldades pelo meio, mas o que é curioso é que eu me lembro desta parte e, de facto, costumo dizer que nas muitas vidas que tenho tido, dessa ficaram-me muitos amigos em que as referências são essas, em que nós construímos os nossos brinquedos, as nossa bolas, os nossos carrinhos… Quando surgiram as barragens do Douro, fazíamos as nossas próprias barragens que eu nunca tinha visto, nem fazia ideia de como eram, mas a gente fazia barragens à mesma e de facto ter nascido naquela rua pequena, mas olhando para trás eu diria que crianças pequenas e já mais crescidas, seriam à volta de cinquenta. É muita gente. Sendim, hoje julgo que não terá tantas. As famílias hoje não têm tantas, esse ambiente onde se tem sempre com quem brincar, inventar coisas para a brincadeira, ter o tempo todo ocupado na rua que era a nossa sala de estar, era a nossa escola em grande medida. Acho que isso me marcou para toda a vida e de facto hoje quando olho para trás tenho de pensar para ver as dificuldades porque elas existiam mas, se não pensar o que me vem são ruas cheias de crianças a gritar e a brincar, ora essa imagem é uma imagem que não pode deixar de nos marcar porque dá-nos uma certa atitude perante a vida, isto é, eu sou uma pessoa que nunca me queixo e portanto olho as coisas e luto, é como ir à brincadeira, uma das brincadeiras que nós tínhamos eram lutas, lutas de touros, idealizávamos lutas de touros, uns faziam de vacas, outros faziam de arado que era o que era a nossa coisa do dia-a-dia e portanto eu acho que é isto que nos marca. Lembro-me de quando andava na segunda classe e começaram a ir os carros da Gulbenkian para as aldeias com os livros e eu adorava ler e eles só davam dois livros a cada miúdo, só ia uma vez por mês e logo os lia então os colegas de rua iam todos requisitar livros para eu os ler era assim que arranjava livros para ler, estas coisas são de facto marcantes, se eu tivesse nascido noutro lado, não estou a dizer que seria melhor nem pior mas seria seguramente diferente.
Muito novo deixou a sua terra para ir a caminho do seminário de Vinhais. Fale-nos um pouco da sua meninice e juventude.
Foram tempos muito difíceis, muito dolorosos do ponto de vista pessoal sobretudo. Fui para o seminário onde não conhecia ninguém. Eu gostava de estudar, era uma coisa que me apaixonava. Sabia como criança que essa era uma necessidade que eu tinha mas, de facto, aquilo era outro mundo. Era um mundo que eu não conhecia, a que eu não estava habituado. Chorava com frequência, não gostava de chorar em público, como é óbvio, escondia-me, como outros colegas fariam, estou convencido disso.
Na altura era feio um homem chorar em público.
Exactamente. Não gostava de dar parte de fraco. O meu pai dizia: tu nunca dês parte de fraco. Mas, foram tempos em que a parte que eu mais recordo é essa parte dolorosa, pessoal, etc. Recordo muitos colegas. Recordo coisas engraçadas. Foi a primeira vez que eu vi cinema na minha vida. Lembra-me que uma vez foi lá o Pinóquio, acho que foi o primeiro filme que eu vi, era o Pinóquio e depois nos dias a seguir ter visto o Pinóquio fiquei tão impressionado com aquilo que escrevi um caderno inteiro de versos, eu devia ter dez anos e depois o que eu sei nós tínhamos umas carteiras, as carteiras eram fechadas, tínhamos lá os livros e houve alguém que me roubou o caderno de versos, muito eu chorei por aquele caderno, era um caderno completamente cheio daquilo porque eu tinha passado horas e horas às escondidas porque estávamos todos numa sala a estudar e éramos vigiados e éramos obrigados a estudar e eu meio às escondidas ia fazendo os versos para que o perfeito que estava a ver não visse e portanto aquela actividade proibida que sabia bem e a gente sabia que não devia fazer e depois daquele esforço todo fiquei sem o caderno de versos.
Quem sabe se faz parte dos arquivos do seminário?
Não creio e, se fizer, não tem valor nenhum. Tem para mim porque é uma mera recordação. Houve outras coisas… há pequenos pormenores que recordo: os passeios que dávamos, os sítios que conheci, o facto de ter participado pela primeira vez num grupo coral com várias pessoas. Ainda me lembro que cantávamos na festa do primeiro de Dezembro “Angola é nossa”. Lembro-me perfeitamente, eu, que na altura não tinha consciência do problema colonial. A primeira vez que me lembro de ter tomado consciência disso foi na quarta classe, estávamos para aí a meio do ano, e então a professora primária que era a dona Maria de Jesus fez uma discurso aos alunos que nós não entendemos muito bem, em que ela dizia que tínhamos perdido a Índia portuguesa, foi em 1960. Que os portugueses tinham ido lá desde o Vasco da Gama, contou-nos a história. É a primeira recordação que eu tenho das questões coloniais, e a gente, na altura, sentia aquela revolta “malandros tiraram-nos aquilo”. É curioso lembro-me desses pequenos pormenores e outras coisas, coisas que havia lá pelo seminário. Lembra-me, como hoje, os cheiros, eu sempre fui muito sensível aos cheiros. Alias, para mim, Trás-os-Montes em muitos aspectos e a minha terra são cheiros e lembro-me do seminário de manhã quando descíamos, levantávamo-nos muito cedo para ir rezar as orações da manhã, descíamos uma escada e vinha um cheirinho da cozinha que era uma coisa… ainda hoje o tenho cá dentro. Lá rezávamos um bocado maquinalmente, aliás tenho um colega que estava ao meu lado que se prendia sempre com um cinto àquelas coisas onde a gente se ajoelha na missa porque tinha medo de adormecer e cair para o lado, mas rezávamos e procurávamos ser cumpridores. Havia uma disciplina bastante forte. São sobretudo estes aspectos que de facto me lembram e que são aspectos muito afectivos, eu sempre tive uma grande tendência para tentar cobrir as dificuldades e os aspectos maus com estes aspectos que são mais humanos, mais sensíveis, os cheiros, as pessoas, as coisas.
Amadeu Ferreira é um homem de causas?
Eu acho que sim. Eu não as procuro mas, não sei… dá-me ideia que é um defeito meu, empenho-me nas coisas até à exaustão, até cair para o lado. Não o faço deliberadamente, nem o procuro. As causas, elas, como que se me impõem. Eu sempre vivi muito impressionado desde criança com a injustiça, com as diferenças entre as pessoas, com o tratamento mau que umas pessoas davam a outras, isso foi uma coisa que sempre me impressionou e que me revoltou e eu no fundo… essa foi sempre a ideia que me perseguiu. Ela tomou várias formas, a certa altura quando eu tomei mais consciência, já em Bragança, o ideal para mim era fazer o céu na terra, eu próprio contribuir um bocadinho para que as pessoas pudessem de facto viver melhor para que não houvesse essas diferenças. Mais tarde, quando eu próprio entrei na política e me dediquei à política de alma e coração, costumo dizer que essa passagem, de um momento para o outro não me obrigou a mudar grandes coisas, as ideias eram as mesmas. Essa ideia do céu na terra continuava um bocado presente apesar de por outros meios e é evidente que a certa altura percebi que aquilo era um sonho lindo sem sombra nenhuma mas o que é facto é que o caminho não era aquele. As minhas aspirações, as minhas vontades não estavam erradas mas, de facto, o caminho não podia ser aquele. Ainda hoje continuo profundamente impressionado por esses aspectos e mesmo olhando aqui para Trás-os-Montes onde sempre me situei e vendo as dificuldades que as pessoas passam, o facto de isto estar no fim do mundo, está no centro do seu mundo, todos os pontos são o centro do seu mundo depende da perspectiva. Como isto é redondo é tudo relativo, o centro do mundo é o centro onde nós estamos e o resto é o que fica à volta e de facto uma pessoa olha para esta região, eu sempre tive uma grande preocupação, ainda hoje, de conhecer a sua história e de tudo o que se fez, e não há duvida nenhuma que nós se começarmos a olhar para o tempo da idade média isto era igual aos outros lados. E de facto houve um investimento humano de dinheiro, de capital noutros lados, nós ajudamos muito a construir Portugal, não fomos nós que o fizemos, mas nós ajudámos e é certo o ditado diz que “amor com amor se paga” e neste caso não se pagou com amor, pagou-se com esquecimento e isso é uma profunda revolta que eu sinto e às vezes há pessoas que olham para trás, eu não tenho saudades do passado, acho que o nosso passado é um passado difícil, é um passado muito complicado, não tenho qualquer romantismo nem qualquer saudade. Olho para o passado, estudo o passado mas aquilo que procuro encontrar é mais um ponto de vista cultural, no sentido de encontrar o guia da nossa cultura porque ele vem da nossa história e os valores da nossa cultura e da nossa história… porque este povo que esteve durante tanto tempo isolado, construiu saberes, construiu sabores, resistiu sobreviveu, etc. e isso tem um valor incalculável. Essa ideia e a cultura que ela encerra é eu… nós temos que procurar e não propriamente o passado e às vezes fico um bocadinho indignado quando vejo pessoas que ficariam todas contentes se tudo ficasse na mesma “ai que giro, ai que coisa tão engraçada”. Vão dar uma volta! É muito engraçado para quem está de fora porque quem está a viver nestas circunstâncias - “olha que casinhas tão engraçadas, tudo em pedra, tudo muito bonito” - olhem lá para dentro para as condições em que as pessoas vivem. Não significa que nós não possamos defender a arquitectura popular mas juntamente com a arquitectura popular nós temos que defender condições para as pessoas que lá vivem.
Foi convidado a abandonar o seminário de Bragança. Pesou nesse facto a sua actividade a nível político?
É sempre difícil analisarmos as coisas retroactivamente ignorando as motivações que na altura pesaram sobre nós. Posso-lhe dizer que na altura em que o senhor bispo de Bragança me convidou a abandonar o seminário, eu era uma pessoa que estava no seminário de forma convicta e que estava absolutamente convencido que aquele era um caminho possível para ajudar, eu tinha muitas preocupações sociais e também religiosas e estava absolutamente convencido que esse era um caminho onde eu podia ajudar e dar o meu pequeno contributo. É evidente que esta minha atitude já tinha uma dimensão política muito forte e essa dimensão política foi-me induzida pelo próprio seminário e pela própria igreja. Não convêm esquecer que nessa altura estamos num período muito forte pós Concílio Vaticano segundo em que tudo se renova, as coisas mudam, as mentalidades mudam, há uma grande abertura, novas maneiras de pensar etc. Havia uma certa liberdade desse ponto de vista e, portanto, o que se verificava era que a igreja e as estruturas que na altura existiam não tinham capacidade para conter esse movimento e esse movimento entrou de alguma forma em rotura. A juntar a isso havia uma parte pessoal que para mim pesou bastante. Na altura tinha três irmãos aqui em Bragança, todos mais novos que eu e os meus pais não tinham condições de nos manter aqui a estudar e eu dava explicações para ajudar a pagar os estudos deles, de filosofia, latim, nem tinha sítio onde as dar, dava nos cafés, era o Transmontano que não sei se ainda existe, tínhamos sempre que consumir o mínimo porque se não a senhora não nos deixava lá estar, porque senão ocupávamos-lhe o café e outras coisas assim e uma das coisas que o Sr. Bispo me disse e que na altura me chocou bastante foi: - “Você só dá explicações a raparigas, pelo menos podia trocar as raparigas por rapazes.” - Portanto havia aquela ideia na altura e olhando agora para trás: - “Mas isso é impossível porque não fui eu que escolhi as pessoas, vieram ter comigo” - Também este aspecto pessoal pesou muito, quer uma coisa, quer outra acabaram por pesar muito. Hoje, olhando para trás e colocando-me naquele momento, não penso que a motivação tivesse sido estritamente politica, mas foi uma motivação muito pessoal, tanto que eu sou uma pessoa dada a angústias metafísicas e sofri muito depois dessa saída, fiquei muito triste, pensava muito no assunto e fiquei muito aborrecido. Eu saí em Janeiro de 1972 e faltava-me três meses para acabar o curso e no fim o reitor do seminário, Padre Pinelo e o Padre Sobrinho, convidaram-me e a outros colegas que na altura saíram, e eu aprecio a atitude deles, convidaram-me para fazer os exames e ficar com o curso e recusei, fui o único, todos fizeram menos eu, porque achei que era coerente, eu tinha saído e o curso de Teologia era para uma determinada função e recusei. É evidente que isso me trouxe problemas mais tarde na medida em que os colegas tinham habilitações para dar aulas e eu não tinha e portanto essa atitude de alguma forma prejudicou-me bastante.
O seu currículo é impressionante não só pela diversidade mas também pelo percurso, fale-nos da sua “Construção do Céu”, para utilizar palavras suas.
A “Construção do Céu” é um pouco aquela ideia que eu teria… eu tenho uma dívida para com a sociedade e acho… a primeira imagem de uma sociedade perfeita que eu conheci, conheci-a no seminário, que é “Céu” e, portanto, de alguma forma, achei que tinha o dever de fazer com que o Céu fosse cá na Terra. De alguma forma foi esse o céu em que eu sempre acreditei, pelo qual sempre me esforcei e isso passou por várias atitudes na minha vida que eram atitudes mais de comprometimento religioso, numa primeira fase entendendo a religião na sua dimensão social e não apenas espiritual, embora esta seja importante, porque religião tem a ver com os homens, da sua ligação entre si e depois numa fase mais directamente política como activista partidário ou não, porque tive os dois aspectos. Mais tarde, fora de qualquer actividade partidária propriamente dita, que já lá vão mais de vinte anos, por entender que é o dever de cada um de nós, uma actividade cívica.
Mas se olharmos para o seu currículo vemos que existem vários “céus”.
Exactamente. Houve uma altura que achei frutífero estar no seminário. Recebia as influências da reflexão e das leituras que fazia… sentia que a religião era de facto o caminho normal para o conseguir mas, mais tarde e já antes do 25 de Abril a partir sobretudo dos anos 70, convenci-me que isso era algo que exigia luta social, esforço porque era algo que não acontecia naturalmente, nunca aconteceu. De facto cheguei à conclusão de que também esse não era um caminho e afastei-me logo no princípio dos anos 80. Hoje tenho uma ideia um bocado diferente, digamos que já vou ficando um bocado velho o que não significa que saiba mais do que na altura, tenho uma ideia um bocado diferente, a ideia que eu tenho hoje é um pouco esta: acho que nós, e às vezes, os partidos pecam por isso, nós não temos que guiar as pessoas que nos rodeiam, não temos que fazer coisas pelas pessoas… acho que as pessoas e as sociedades têm valores de tal forma grandes, de tal forma alicerçados em si enquanto pessoas e na história que eles herdaram que o nosso dever é fazer realçar esses valores, mostrar o mérito que essas pessoas têm e a partir daí ajudar a que essas pessoas prossigam o seu próprio caminho porque obrigado ninguém vai a lado nenhum e as pessoas podem de facto prosseguir o seu próprio caminho, agora é necessário realçar esses valores porque há valores que muitas vezes são considerados como não valores como coisas negativas, a propósito da pergunta que me fez há pouco sobre a importância do sítio em que nascemos, eu, quando era jovem aqui no seminário em Bragança, falava mal o português, os meus colegas gozavam comigo, porque as vogais abertas fazia-as fechadas, as fechadas fazia-as abertas depois tinha a preocupação das palavras que vinham a seguir não serem… trocava tudo, era uma baralhação completa, claro que fiz um esforço tão grande que a certa altura consegui, eu acho que hoje falo português padrão ou próximo disso, no entanto isto cria uma ideia que esses valores da língua materna eram valores negativos porque tinham a ver com pessoas que não sabiam falar, pessoas que eram atrasadas, a minha mãe até é analfabeta e portanto até bate certo, não tem cultura, não sabe é ignorante, ora, eu convenci-me exactamente do contrário, não por mero convencimento, quando eu descobri que a minha língua, a língua mirandesa, a minha língua não gosto de dizer, eu tenho duas línguas, tanto o Português, tanto o Mirandês e adoro as duas mas quando eu descobri que o Mirandês não é uma língua dos mirandeses é uma língua que era falada desde o séc. VIII, IX, X, no reino de Leão era falada pelos reis de Leão, que era falada pelos homens cultos do seu tempo, nos mosteiros, pelos abades e as obras literárias dessa altura que estão escritas em leonês e quando eu olho para aquilo que é o Mirandês hoje e comparo de facto com os documentos dessa época e com o que se falava nessa época eu disse alto lá, isto é uma língua que evoluiu do latim como qualquer outra, tenho que tirar o meu chapéu a um povo que aguenta mais de mil anos sem mudar a sua língua e aquilo que nós vemos que parece que está mal parece-nos mal porque comparamos com o português, ora se eu for comparar um espanhol a falar português e eu vir aquilo do ponto de vista do português aquilo está mal mas se vir aquilo como língua autónoma, isto é outra coisa. Tudo isto, de perceber os valores das pessoas que os povos trazem consigo, encarnam em si, todas as pessoas, realçá-los dar-lhe o seu mérito, fazer-lhe dar coerência, eu penso que é isso que faz com que as sociedades possam ser melhores e evoluir porque onde há uma pessoa, os valores dessa pessoa, desse povo são valores de universalidade, porque o que dá o carácter de universalidade que dá o carácter de universalidade cultural não é a quantidade das pessoas que vão atrás dela é o facto de estarem envolvidos valores humanos, é o homem que é universal e portanto nesse sentido há que dizer isso então eu chego a valores como a diversidade e onde há diversidade tem que haver tolerância e a tolerância é um valor extremamente importante. Eu vivo num país democrático, eu tenho que dizer de forma clara que a democracia no meu país não está cumprida enquanto não houver democracia linguística porque também por aí passa a democracia, ora um país que tem que incorporar estes valores que os tem dentro de si e em que a diversidade é vista não como uma pobreza mas, como uma riqueza então eu fico contente com isso e isso é muito importante ser reconhecido.
O Amadeu é uma pessoa multifacetada, no seminário passou pela Filosofia, pela Teologia para finalmente ir ancorar em Direito, é um homem dos mil ofícios?
Matriculei-me em Direito pela primeira vez em 1973, não sabia muito bem para onde ir, digo-lhe sinceramente, saí do seminário, dei explicações, depois fui para a tropa mas, depois entretanto veio o 25 de Abril e não fiz coisa nenhuma e acabei a tropa e vim para Trás-os-Montes ganhar a vida. Depois, eu sempre adorei a Filosofia, sou uma pessoa que como lhe disse às vezes tenho algumas preocupações filosóficas e metafísicas e fui para Filosofia para o Porto mas, só fui para Filosofia porque no Porto na altura não havia Direito porque se houvesse Direito eu tinha prosseguido Direito. Na altura o meu objectivo ir para esse curso, ser juiz. Acho que era a carreira normal que eu teria seguido dentro das ideias que eu tinha, era ir para a magistratura, não era tanto ir para a advocacia, que foi aquilo que acabou por me acontecer porque na altura tinha colegas que me diziam: é pá não vás para advocacia, os advogados são todos uns aldrabões… - o que não é bem verdade, como em qualquer profissão há gente de muita maneira e os advogados são fundamentais. Eu fui para Filosofia depois acabei por mudar para Lisboa. A certa altura comecei a olhar, fiquei desempregado, passei algumas dificuldades. Estive dois anos desempregado, a viver um bocado de explicações e lembrei-me daquela máxima filosófica que diz “primo vivere da inde filosofar”, - Primeiro viver depois filosofar. - Eu tinha dois filhos, tinha uma casa para pagar, a vida estava complicada, eu já não era propriamente tão jovem como isso e disse: “vai lá ter juizinho na cabeça, trata de ti. Assegura o pão para os teus filhos e para a tua família”, juntamente com a minha mulher, que na altura trabalhava sozinha e ela fez um esforço enorme. Demorei algum tempo mas, tive que por os pés assentes na terra e essa foi uma das razões. Como vê são opções que não têm nada de transcendentes, são muito simples. Foi complicado porque na altura eu acabei por tirar o curso, já estava a trabalhar, estava a dar aulas. Na altura estive a fazer complemento de formação em música e dava explicações, começava a dar explicações às seis e meia da manhã, porque era a altura que eu tinha tempo livre e preparava, sobretudo, jovens que queriam entrar na faculdade, dava explicações de latim, havia jovens que queriam entrar na faculdade de letras mas, não tinham preparação suficiente para entrar porque ou não tinham feito latim no liceu ou tinham feito latim mal feito e chegavam à faculdade e tinham problemas complicados. O que eu tinha era sobretudo pessoas que queriam aprender mais latim ou que estavam na faculdade e queriam de facto acompanhar o latim e dava explicações nessa altura.
Tem desenvolvido muitas actividades para preservar e dar a conhecer a sua região: a língua mirandesa, a música mirandesa, as tradições da sua terra. É tão extensa a sua obra que é muito difícil abraçá-la toda. Fale-nos do que para si é mais importante dentro dessa obra.
A minha obra, é uma actividade que eu vou tendo, a preocupação que eu tenho é procurar por um lado, para fora da terra de Miranda e da terra transmontana, que estão muito ligadas, é tentar fazer que aqueles que estão fora percebam o que isto é, o valor que isto tem, sem grandes pieguices, sem grandes romantismos mas, procurar mostrar que a cultura transmontana e a cultura mirandesa e a língua mirandesa têm valor económico. Nós olhamos para o concelho de Miranda do Douro; posta mirandesa, pauliteiros, língua mirandesa. Qual é o concelho que se pode orgulhar de ter estas três bandeiras turísticas, propaganda de conhecimento, isto tem valor económico. Há que mostrar que este valor económico existe, tem características empresariais e que a cultura pode também ser encarada desse lado, não para ser desvirtuada mas, para ser valorizada. Hoje as coisas na nossa sociedade não funcionam sem dinheiro, porque as pessoas têm de comer, têm que ter casa, têm filhos e têm de os alimentar e não podem viver sem isso. Aquelas que trabalham na cultura devem viver da cultura. As pessoas que trabalham da rádio devem viver da rádio, as pessoas que trabalham na língua devem viver da língua. Nos Estados Unidos, hoje, a sua indústria não é uma indústria de guerra é a língua inglesa. Os Estados Unidos entram em qualquer país, primeiro põem as pessoas a falar inglês, depois entra o resto. As pessoas que vivem da língua, incluindo da língua mirandesa, devem viver da língua. Isto tem um valor económico extremamente importante. Não é o meu caso, eu não vivo disso, eu tenho a minha profissão, aliás eu jurei a mim próprio que nunca havia de ganhar um tostão com a língua mirandesa porque não preciso. Eu até ganho bem. Ganho o suficiente para viver com dignidade, eu e a minha família, isso basta-me. A minha preocupação é para fora, mostrar o valor que esta cultura tem. É uma cultura que é rica de sabores, de saberes, de inteligência e de cultura. Eu acho que isto é algo que deixa mundo mais pobre se não souber o aproveitar. Isto é o exemplo dos valores humanos que se mantiveram, que sobreviveram, fruto dos próprios homens. Isto é património da humanidade, quer a UNESCO o proclame, quer não. É um dever defendê-lo e mostrá-lo e eu acho que os mirandeses têm que fazer por si o essencial, não podem estar à espera que o Estado faça, o Estado tem que ajudar mas quem tem que tratar da horta somos nós. Eu acho que nós os mirandeses temos que fazer mais por nós próprios e não podemos estar à espera que outros façam aquilo que só a nós nos compete fazer e eu aí esforço-me um bocadinho por fazer a minha parte.
Para melhor se perceberem essas tradições para quando um dicionário mirandês?
Já temos neste momento um dicionário do padre Moisés, que Deus tenha em bom sítio, que é uma pessoa que faleceu este ano. Deixou-nos um dicionário de mirandês a que ele chamou “pequeno vocabulário” mas que de facto é um dicionário para todos os efeitos. É um dicionário que o padre Moisés fez ao longo de muitos anos, com muito sacrifício e que não foi feito nas melhores condições. Hoje creio que toda uma série de escrita que se tem desenvolvido por um lado, de investigações que se têm desenvolvido também, de audições orais, junto das pessoas nas recolhas orais, nós estamos em condições de dentro de algum tempo apresentar um dicionário no sentido próprio do termo. No momento, eu penso que o dicionário que o padre Moisés publicou, satisfaz as necessidades existentes mas, dentro de um dois anos, penso que teremos aí um outro dicionário de mirandês, que não será melhor, nem pior que o do padre Moisés.
A sua participação no Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro foi importante? O que é que se pode esperar dessa iniciativa e se acha importante a sua realização periódica.
Eu acho importante. É verdade que às vezes há pessoas que ficam desiludidas porque estão à espera que no dia seguinte ao congresso as coisas mudem. Não sei exactamente o que as pessoas queriam, ou que o sol nascesse mais cedo ou mais tarde, o sol continua a nascer à mesma hora. Os congressos são, fundamentalmente reuniões de vontades, de inteligências, de experiências que chegam a um conjunto de conclusões e dão-nas a conhecer às pessoas e desse ponto de vista são momentos em que já não se recua para trás. Estou convencido de que o conjunto de ideias que o terceiro congresso trouxe, que são ideias inovadoras, são extremamente importantes e que elas têm servido como elemento fundamental não só para desenvolver esta área, como para fazer reivindicações. Orgulho-me de ter pertencido à comissão que redigiu as conclusões do terceiro congresso. Foi um momento de grande debate, grande intensidade, em que lemos imensas comunicações, falámos com imensas pessoas, reflectimos durante dias e dias. Foi aquele o documento que se conseguiu produzir, não é um documento perfeito mas, penso que é um avanço extremamente importante, nomeadamente ideias como: a ideia da dívida histórica que o país tem em relação a Trás-os-Montes; a ideia de que os transmontanos têm que fazer por si aquilo que devem fazer e que não podem esperar que outros o façam. Estas duas ideias conjugadas são ideias fundamentais, rejeitando a lamechice, o desgraçadinhos, nós temos que ser um povo que olha de frente com dignidade e quem tem dignidade não se pode armar em desgraçadinho. Ou tem direitos e reivindica-os mas não pede. Nós não temos que andar de mão estendida, não. Nós temos direitos devemos exigi-los mas, devemos começar por exigir de nós próprios porque aquilo que nos compete, a nós, fazer não podemos pedir a ninguém que o faça. Eu acho que desse ponto de vista esta ideia que o terceiro congresso trouxe de que os transmontanos precisam de acreditar em si próprios, nas suas capacidades, na sua energia e interpretar correctamente certas ideias que existem. Esta ideia de – “para cá do Marão mandam os que cá estão”… mandam os que cá estão uma treta. Nós não mandamos coisa nenhuma a não ser que assumamos o nosso mando. Isso às vezes é uma forma de fugirmos às questões. Reino maravilhoso de Miguel Torga, reino maravilhoso mas, complicado. É lixado viver aqui, claro que é um reino maravilhoso mas, nós temos que o entender no bom sentido. Este reino maravilhoso não pode ser um reino apenas para vendermos para fora. É um reino para nós vivermos. Eu acho que o terceiro congresso ao ter que mudar as pessoas ou ajudar a mudar ao dar ideias ajuda também a mudar porque há uma coisa, que ninguém se iluda, primeiro vêm as ideias e depois vêm as práticas e se as ideias não se mudam não se vão mudar as práticas e nós necessitamos que hajam mais congressos como o terceiro congresso porque isto não depende da vontade dos iluminados. Depende do esforço colectivo, de uma reflexão conjunta, de um cristalizar de experiências que vêm de muito longe e ter esperança e não desistir.
Fala-se muito da falta de acessibilidades e da desertificação desta região. Estaremos condenados a desaparecer do mapa, mesmo estando muito bem localizados frente à Europa Comunitária?
Não. Acho que desaparecer do mapa é uma forma de expressão. É evidente que nós temos sofrido uma forte sangria de pessoas. Há uma coisa que nós temos que ter consciência e ser bastante firmes em relação a isso: as pessoas saíram porque não havia condições, portanto há que criar condições e temos que ser nós a criá-las. Não creio que estejamos condenados a desaparecer. Há uma coisa que é curiosa, eu gosto muito de estudar história, se nós formos a olhar para a história da Idade Média para cá, dos Romanos para cá, o que é que verificamos… uma série de povoados romanos que hoje não existem, criaram-se outros ao lado, povoados medievais de que ainda ficou o nome mas, não têm ninguém, têm casas. Ali viveu gente, sonhou gente, cresceu gente, brincou gente, gente que viu que viu que a sua terra iria desaparecer, que para eles parecia que iria ser o fim do mundo. Quer dizer as sociedades renovam-se, mudam. Eu estou convencido de que Trás-os-Montes, apesar de reduzir as pessoas e isto delimitar muitas vezes o seu desenvolvimento, continuo a achar que tem condições. É obvio que cada vez mais, a partir do momento que Trás-os-Montes deixe de ser um sítio dificilmente acessível é obvio que estar aqui ou estar noutro lado qualquer é indiferente e quando se tornar indiferente do ponto de vista geográfico, estar aqui ou estar ali, então aí a cultura transmontana pode mostrar o seu valor acrescentado.
Há pouco falamos do terceiro congresso, onde esteve muito envolvido. Depois disso surgiu a ideia de duas comunidades urbanas: Trás-os-Montes e Alto Douro. Que benefícios ou que malefícios podem advir dessa separação?
Há dois problemas que a mim me chocam bastante. O primeiro foi o fato de ter acontecido sem consultar as pessoas, ficamos um pouco com a sensação de que essas comunidades surgiram não se sabe muito bem como, as pessoas não estiveram mobilizadas, não andaram à volta disso. Acho que isto não foi bom. Em segundo lugar creio que não faz sentido estar a dividir Trás-os-Montes e Alto Douro na medida em que os nossos rios correm todos para o Douro, os vales sempre foram locais de penetração das pessoas e os vales dos rios que vão ter ao Douro desde a foz até à nascente estiveram sempre ligados, não faz sentido. O facto de se dizer que num sítio se produz vinho do Porto e noutro sítio se produz vinho do outro estamos a enganar-nos a nós próprios. Este, por um lado do ponto de vista cultural e histórico, por outro lado do ponto de vista mais económico, acho que uma região tem que ter dimensão crítica para poder ter um conjunto de estruturas, um certo dinamismo e isso exige espaço, exige população. Eu acho que Trás-os-Montes só por um lado e o Douro só pelo outro não têm. Deixe-me dizer uma terceira coisa: eu acho abusivo que certas pessoas continuem a achar que o Douro é à volta da Régua. Eu nasci no Douro, eu cresci no Douro, nas arribas do Douro e o meu Douro não é pior que o deles e estar a dizer que aquela região é o Douro e eu que vivi no Douro e a gente da minha terra e de Miranda e de Mogadouro e de Freixo e de Moncorvo que tem o Douro que cresceram no Douro, que não é Douro, estão a brincar comigo! Há um rio que é um rio bom o outro não é. O rio é todo o mesmo e por isso é que eu falava, vão todos dar ao Douro. Ele sempre nos uniu, não vamos deixar que nos separe. Esta parte já é mais afectiva e isto revolta-me. Aquele rio foi sempre fonte de vida e união. Às vezes diz-se que o rio fazia fronteira, é claro que fazia fronteira mas, para as pessoas da minha terra e outras dali, atravessar o rio nunca foi obstáculo, a nadar, pelas guindas. A malta ia às festas do lado de lá, ia às festas do lado de cá, fazia-se contrabando. O que é curioso, com o Franco e com o Salazar as fronteiras fecharam-se ainda mais e aqueles povos de fronteira que sempre se entenderam mesmo quando havia guerra. Aquela gente tem cultura de não respeitar fronteiras e agora vem a CE e acaba com essas fronteiras e agora como é que a gente faz é só perguntar-lhe a eles que eles sabem como é que é.
O essencial do currículo é sempre o que não se escreve porque fica agarrado às pequenas coisas que fazemos no dia-a-dia, mesmo as coisas pequenas. Sente que o facto de toda a sua actividade ter sido reconhecida pelo Presidente da Republica o Dr. Jorge Sampaio, é o reconhecimento dessas pequenas coisas do dia-a-dia?
Eu nunca encarei esse reconhecimento como uma coisa pessoal. Eu creio que o senhor Presidente da Republica na altura, quis prestar uma homenagem à cultura e à língua mirandesa. Serviu-se da minha pessoa, podia ter-se servido de outra e para mim foi uma honra enorme ter representado essas gentes, as que já morreram, outros estão vivos, cujos nomes são muitos e que são aqueles que têm mantido viva uma cultura, que têm mantido viva uma língua e que hão-de continuar a mantê-la. O senhor Presidente achou que eu poderia ser uma pessoa que os poderia representar e que não ficaria mal que eu os representasse e para mim foi um orgulho. Uma honra enorme fazê-lo. Não encaro como algo de pessoal, digamos que se alguma coisa teve a ver é dar-me o incentivo para continuar no mesmo caminho sem mudar rigorosamente nada.
Para o final deste “Nordeste com carinho” perguntava-lhe que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?
Não tenho personalidades marcantes. As pessoas que eu mais admiro são os meus pais. A minha mãe é uma senhora que tem oitenta e um anos, não sabe ler, ficou sem pai aos nove anos, casou e quando se casou, isto em 1945, o marido foi para França, ficou sozinha com um filho, não tinha um palmo de terra, acho que tinha comprado uma burrita na altura. O meu pai esteve em França um ano e meio e voltou, pessoas humildes, pessoas pobres, que sempre me transmitiram uma grande força, uma grande alegria e que sempre conseguiram fazer coisas a partir do nada e eu acho que são os verdadeiros milagres da vida. Tenho uma enorme admiração por eles é verdade mas, acho que muito do que sou devo a eles não em sentido figurado no sentido de me darem a vida ou de me terem pago porque nunca me pagaram grande coisa mas, de facto são pessoas que tinham uma atitude perante a vida que a mim me impressionou sempre muito e são pessoas por quem eu tenho uma grande admiração não só por serem meus pais mas, pelo exemplo que eles significam. Fora disso poderei dizer assim imensas pessoas que ao longo da minha vida me foram influenciando, marcando mas, não há assim nenhuma que me tenha feito mudar grandes coisas. Há uma coisa que eu posso dizer e tenho algum orgulho nisso, tenho muitos amigos, todos são muito diferentes, tenho grande apreço por eles e olho muito para eles e isso ajuda-me bastante e esses são também, logo a seguir, outros dos meus heróis.
Foi um prazer estar à conversa consigo. Guardaremos para outra altura mais conversa porque parece que cada vez que temos um entrevistado de excepção as horas são mais pequeninas. Ficamos-lhe muito agradecidos e sensibilizados pela sua disponibilidade pois sabemos que é um homem extremamente ocupado. Obrigada.
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