quinta-feira, 27 de junho de 2013

Carvoeiros

Há dias assim, estranhos como a ideia de pedir amor, saúde, dinheiro... à "estrela cadente" que apenas no campo se vê, em noites escuras como breu. Este foi um desses dias e, para completar a estranheza, não falarei sobre ele. Talvez noutra altura... quem sabe.
Recordo-me que, quando cheguei àquela idade em que se começa a recordar, via muitas a cortar o céu da minha aldeia, lindas, únicas, fadas sem varinhas de condão, prontas a realizarem os nossos sonhos, a resolverem as nossas angústias...
Quem tempos maravilhosos aqueles em que eu acreditava, piamente, que aquele rasto de luz era uma estrela a cair.
Ansiava por noites pejadas de estrelas, iluminada, apenas, pela trémula luz de uma única candeia pendurada no escano, num prego ali colocado para o efeito, há tanto tempo como tempo tinha a pequena casa onde vivíamos.
Não sei porque razão me lembrei eu desses tempos, tão remotos já. Lembrei-me e esta lembrança trouxe-me uma nostalgia boa, serena como uma noite estrelada e negra como o carvão que se fazia para vender, em buraco cavado no monte, aberto à força de braços e fome. Era um trabalho duro como a vida que Deus lhes dera. Arrancar os toros de urzes e estevas, nascidas com a bênção da mãe natureza, que tudo programou com delicadeza e aprumo para servir no momento certo, e incendiá-las dentro do buraco para que ardessem sem se consumir. Abafar, tapar e esperar que se apagassem...
Depois, carvoeiros negros, sacas negras, olhos negros, boca negra... apenas a brancura dos dentes a reluzir... e outro buraco e mais toros e mais sacas e o peso às costas cansadas... para quase nada que esse era trabalho escravo, desqualificado e rude.
Os primos da minha mãe faziam-no.  Quando, pela noite dentro, regressavam a casa tão escuros como ela, corria para eles, abraçava-os, enfuliscava-me e ria com as suas tentativas frustradas de me afastarem para que não sujasse o meu lindo vestido de chita azul com pequeninas flores amarelas.
A sua venda permitia-lhes ganhar algum dinheiro para uma sobrevivência incerta. Não havia jeiras a ganhar. O inverno era longo e frio, cortante como espadas de samurais.
E o céu estrelado, em noites quentes de verão convidavam ao sonho, ao amor, à esperança.
Ah! Quando uma estrela caía! Corria para a varanda, saía para a rua, a pular de alegria e a imaginar que pedido faria àquela, tão linda!
Invariavelmente, pedia o regresso do meu pai. Não necessitava de mais nada. Ele estava tão longe. Nem o conhecia. A fotografia que a minha mãe trazia guardada dentro do corpete de algodão que ela mesma fazia, junto ao coração, fora a única imagem que alguma vez vira do meu pai. Tinha tantas saudades de o conhecer, se é possível sentir saudades de conhecer alguém.
Sei lá! Na minha jovem cabeça de cinco anos fervilhava tanta coisa que eu não conseguia entender!
Restavam-me as estrelas cadentes, apenas minhas, tão minhas como o ar que soprava no meu rosto quando fechava os olhos e erguia a cara para a manta estrelada que nos cobria a todos.

Maria Cepeda

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