terça-feira, 24 de julho de 2012

Nós... pequeno desabafo

Pediram-me que escrevesse um pequeno texto sobre a nossa história. Não é tarefa fácil por tudo o que me faz sentir. Sou parte interessada e participante, não um qualquer personagem imaginado de um qualquer poeta romântico.
Vou tentar ser objectiva e racional, sujeitando os meus sentimentos a meros espectadores desta história.
O dia-a-dia que nos cabe viver não é simples e linear. É antes cheio de sombras e alguma claridade como todas as vidas. Há momentos de grande dor, quase insuportável que nem mesmo o grito preso na garganta pode calar. Somos dois e apenas um. Amamo-nos desde o primeiro dia e somos, talvez, felizes em alguns momentos.
Até aqui nada de novo pois todas as vidas são assim um pouco. No nosso caso temos mais algumas pedras no caminho como disse Carlos Drummond de Andrade.
Essas barreiras tornam-se cada vez mais consistentes, mais teimosas como se aos poucos se fossem autonomizando.
Pode parecer estranho mas somos pessoas absolutamente normais e corriqueiras, com sonhos realizados e por realizar. Não usamos uma qualquer Estrela de David e no entanto somos estigmatizados.
O meu marido era uma pessoa absolutamente integrada e integrante na sociedade transmontana. Era social, cultural e politicamente muito interveniente. Tinha um grande e bom grupo de amigos e segundo palavras de muitos, estava-lhe destinado um grande futuro até ao momento em que a sua falta de saúde o transformou em “deficiente”.
Usando linguagem futebolística, passou de bestial a besta. Parece que todas as suas capacidades que são muitas, que continuam a ser muitas, se desvaneceram nas diversas camas dos hospitais por onde foi obrigado a andar.
É estranho plasmar no papel estas ideias. Consigo algum distanciamento do meu sofrimento diário e quase sinto pena de quem o transformou em deficiente e a mim com ele.
Sim. Eu também sou considerada um tudo/nada deficiente por ser sua mulher. Não tenho tido as mesmas oportunidades que julgo merecer e para as quais me sinto capaz.
É estranho, não é?
A única coisa que me apetece dizer é que vivemos numa sociedade cada vez mais egoísta e egocêntrica. O problema não somos nós mas o valor que se dá, cada vez mais, aos estereótipos de perfeição instituídos e aceites como a única norma a seguir.
Pese embora o texto que vou passando para o papel, não somos pessoas amargas. Continuamos a amar-nos, incentivando e colaborando nos projectos de cada um e nos projectos comuns. Não desistimos de lutar contra as ideias preconcebidas de qualidade e beleza. Todos temos o nosso papel, que alguns cumprem com mais facilidade e outros com mais empenho.
Estou convencida que tenho nas minhas mãos a capacidade de chegar mais longe do que a maioria das pessoas e também o dom de ajudar a concretizar ideias e sonhos do homem que escolhi para amar até ao fim dos meus dias.
Sou os seus olhos e a sua melhor mobilidade e desenvoltura. Sou o seu discurso mais fluente que ele tinha melhor que ninguém. No entanto continuo a ser eu, una, mulher do meu tempo, capaz, inteligente e segura.
O caminho faz-se caminhando (António Machado) e nós só agora começámos a caminhar.

Mara Cepeda

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