Pediram-me que escrevesse um pequeno
texto sobre a nossa história. Não é tarefa fácil por tudo o que me faz sentir.
Sou parte interessada e participante, não um qualquer personagem imaginado de
um qualquer poeta romântico.
Vou tentar ser objectiva e racional,
sujeitando os meus sentimentos a meros espectadores desta história.
O dia-a-dia que nos cabe viver não é
simples e linear. É antes cheio de sombras e alguma claridade como todas as
vidas. Há momentos de grande dor, quase insuportável que nem mesmo o grito
preso na garganta pode calar. Somos dois e apenas um. Amamo-nos desde o
primeiro dia e somos, talvez, felizes em alguns momentos.
Até aqui nada de novo pois todas as
vidas são assim um pouco. No nosso caso temos mais algumas pedras no caminho
como disse Carlos Drummond de Andrade.
Essas barreiras tornam-se cada vez
mais consistentes, mais teimosas como se aos poucos se fossem autonomizando.
Pode parecer estranho mas somos
pessoas absolutamente normais e corriqueiras, com sonhos realizados e por
realizar. Não usamos uma qualquer Estrela de David e no entanto somos
estigmatizados.
O meu marido era uma pessoa
absolutamente integrada e integrante na sociedade transmontana. Era social,
cultural e politicamente muito interveniente. Tinha um grande e bom grupo de
amigos e segundo palavras de muitos, estava-lhe destinado um grande futuro até
ao momento em que a sua falta de saúde o transformou em “deficiente”.
Usando linguagem futebolística, passou
de bestial a besta. Parece que todas as suas capacidades que são muitas, que
continuam a ser muitas, se desvaneceram nas diversas camas dos hospitais por
onde foi obrigado a andar.
É estranho plasmar no papel estas
ideias. Consigo algum distanciamento do meu sofrimento diário e quase sinto
pena de quem o transformou em deficiente e a mim com ele.
Sim. Eu também sou considerada um
tudo/nada deficiente por ser sua mulher. Não tenho tido as mesmas oportunidades
que julgo merecer e para as quais me sinto capaz.
É estranho, não é?
A única coisa que me apetece dizer é
que vivemos numa sociedade cada vez mais egoísta e egocêntrica. O problema não
somos nós mas o valor que se dá, cada vez mais, aos estereótipos de perfeição
instituídos e aceites como a única norma a seguir.
Pese embora o texto que vou passando
para o papel, não somos pessoas amargas. Continuamos a amar-nos, incentivando e
colaborando nos projectos de cada um e nos projectos comuns. Não desistimos de
lutar contra as ideias preconcebidas de qualidade e beleza. Todos temos o nosso
papel, que alguns cumprem com mais facilidade e outros com mais empenho.
Estou convencida que tenho nas minhas
mãos a capacidade de chegar mais longe do que a maioria das pessoas e também o
dom de ajudar a concretizar ideias e sonhos do homem que escolhi para amar até
ao fim dos meus dias.
Sou os seus olhos e a sua melhor
mobilidade e desenvoltura. Sou o seu discurso mais fluente que ele tinha melhor
que ninguém. No entanto continuo a ser eu, una, mulher do meu tempo, capaz,
inteligente e segura.
O caminho faz-se caminhando (António
Machado) e nós só agora começámos a caminhar.
Mara Cepeda
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