sexta-feira, 6 de julho de 2012

Entrevista com professor Joaquim Luciano Fernandes


É natural de Bragança, nascido num tempo em que as coisas eram, talvez, menos complicadas do que hoje. Que recordações ficaram desses tempos?

As recordações são genericamente boas. A cidade de Bragança era, de facto, totalmente diferente do que é hoje, em muitas coisas para melhor, em outras, nem sempre. Bragança, no tempo em que eu me criei, até aos meus dez anos, antes de entrar no liceu, era o que se pode considerar uma aldeia grande. Não havia perigo de muitas coisas que há hoje. Podíamos andar, desde quase recém nascidos, a gatinhar na rua sem problemas nenhuns. Lembro-me de jogar à bola com seis, sete anos na rua Direita, na que é hoje Combatentes da Grande Guerra, onde crescia a erva durante o verão. Jogávamos ali quase como num estádio, tínhamos o estádio relvado e tudo (risos). Tínhamos essa vantagem. Era um privilégio muito grande. Salvo erro, na minha rua, naquela altura havia três carros e era a rua que tinha mais automóveis na cidade. Bragança era totalmente diferente e se calhar por essas diferenças, marcou toda a gente que viveu cá nessa época. Todos os que nascemos por volta dessa altura, penso eu que teremos o mesmo sentir em relação à nossa terra.
Hoje, a longo prazo, se calhar, já não há muito que contar, porque as coisas evoluíram de tal maneira que não há comparação com coisas como essa que eu contei: as crianças andarem na rua à solta desde tenra idade, de irem para a piscina de Bragança, que era o rio sabor, que nos ficava a uma distância enormíssima. Nós pensávamos que era o fim do mundo. Infelizmente, algumas crianças ficaram lá porque morreram afogadas. Não havia protecção nenhuma mas, em contraponto, foi onde centenas delas aprenderam a nadar. Corríamos o risco da própria vida sempre, porque não tínhamos quem nos ensinasse, minimamente, qualquer coisa acerca da natação, mas Bragança era uma cidade bonita. Continua a ser uma cidade bonita. Provavelmente não se melhorou muito em Bragança em relação a alindar a cidade, no sentido de a tornar única. Para mim a cidade cresceu, não sei se por necessidade dos tempos que correm, cresceu desordenadamente, muito desordenadamente. Ainda hoje se pode aproveitar muito daquilo que poderia ser a nossa cidade, mas era preciso fazer reformas muito importantes, como seja a da restauração da parte antiga da cidade que está completamente ao abandono.

Principalmente se a quiserem candidatar a património da UNESCO…

Candidatar-se à UNESCO e deixar a cidade como está, penso que é um erro muito grande mas, Bragança ainda podia aproveitar muito daquilo que tinha na altura em que nasci e cresci.

Fale-nos um pouco da sua vida de estudante…

A minha vida de estudante foi como a de 99% da população estudantil de então, provavelmente. Era um estudante médio baixo. A minha actividade, como estudante, nunca foi o meu forte, tanto que, aos dezasseis anos desisti de estudar. Cheguei ao pé dos meus pais, conclui o quinto ano e disse: “Já não quero estudar mais. Já me chega”. Eu via que era a altura de começar a fazer qualquer coisa de útil e não sobrecarregar os meus pais que, nessa altura, eram pessoas de poucas posses e fizeram das tripas coração para eu fazer o quinto ano porque naquela altura as coisas não eram como hoje. Eram muito diferentes. O meu pai era sapateiro de profissão e ganhava para o sustento da casa. É certo que nunca passamos fome, mas as coisas não iam muito além disso. Era o momento de parar. Não era um estudante famoso e então deixei os estudos e resolvi empregar-me. Era fácil a gente arranjar uma ocupação, um emprego pelo menos para subsistir e ajudar na compra dos cigarros, coisas a que não tínhamos direito se não tivéssemos qualquer forma de ganhar algum dinheiro ao fim do mês e, então, fui para o grémio da lavoura que me deixou grandes ensinamentos. Aprendi muito com a gente que lá trabalhava e muito também com a gente que lá ia: os lavradores. Sendo da cidade não entendia, rigorosamente, nada daquilo e comecei a aperceber-me de muitas coisas do campo, aos dezasseis anos, no que diz respeito à organização desse estrato social, que eram os agricultores. Embora eu já trouxesse, dos meus seis anos, algo muito importante, que foi talvez, a melhor escola de vida que eu tive durante os anos da minha existência - o escutismo - onde eu ingressei como lobito, passando a explorador e só não cheguei a caminheiro porque fui para a tropa. O que é certo, é que foi a melhor escola de vida que eu tive e arranjei os meus amigos que ainda, provavelmente, são os meus melhores amigos hoje, com quem ainda me encontro, regularmente, com a maior parte deles e onde aprendi o que era a amizade sincera. Onde eu aprendi a gostar da natureza, a respeitá-la e a amá-la e onde aprendi, fundamentalmente, a ser homem. Foi uma ajuda importantíssima, a dessa escola, que era o escutismo e penso que ainda será para aqueles que por lá andam. Aos dezasseis anos tive a necessidade de angariar dinheiro e decidi empregar-me no Grémio da Lavoura. Daí passei à Cooperativa Agrícola da Terra Fria porque o Grémio estava já com poucas funções e a Cooperativa estava em ascensão e aguentei-me até à tropa, aos vinte ano e fui rumo às Caldas da Rainha, apresentar-me para ser militar do Exército Português sem saber, minimamente, o que ia a fazer.

Foi depois da tropa que decidiu ser professor?

Foi durante a tropa. É um caso curioso. Nessa altura, havia em Bragança, falta de professores e, para professor, ia quem não tinha mais nada que fazer. Quem não sabia fazer mais nada ia para professor e, então, eu via colegas meus militares graduados, furriéis, alferes, tenentes que andavam aqui nas escolas da cidade, secundárias e preparatórias, a vender horas que, aquilo, de dar aulas não era bem o caso, mas a vender horas e, a mim, chamou-me a atenção isso e comecei a pensar: “Como é que é possível, sem ter bases científicas para ensinar, só porque se tem o sétimo ano ou qualquer coisa assim, dar aulas?”. E então pensei que, se calhar, era uma boa opção eu, que nunca fui capaz de estar sujeito a esquemas muito e rígidos, achei que, se calhar, a profissão de professor podia ser uma opção para mim.
Matutei naquilo durante uns tempos. A decisão não foi tomada de um momento para o outro e, em conversa com dois amigos, que estavam em condições idênticas às minhas, resolvemos candidatar-nos ao Magistério Primário e isto aconteceu durante o tempo em que eu tinha estado na tropa. Eu tinha entrado para a tropa em Junho de sessenta e nove, fui fazer a recruta às Caldas da Rainha, a especialidade a Tavira e fui logo colocado no BC3 em Bragança. O primeiro meio ano passei-o a pensar o que é que seria a minha vida quando saísse da tropa, porque a gente tinha que pensar nisso. Eu não tinha nada assegurado e surgiu essa ideia de nos candidatarmos e assim fizemos e por acaso ficamos lá os três. Concluímos o curso passados dois anos. Um deles foi meu colega durante toda a vida, reformou-se mais ou menos quando eu, acompanhou-me durante alguns anos no percurso profissional. O outro não chegou a ser professor porque arranjou emprego num banco. Nessa altura, era uma profissão bem paga, com menos sacrifícios. Um homem, ir para professor, era uma ousadia porque a maior parte deles, não sabíamos cozinhar, não sabíamos tratar de nós… tínhamos tido os pais, as mães principalmente a tratar de nós e como não sabíamos, era um risco, porque podia tocar-nos, como me tocou a mim a primeira vez, que fui trabalhar para uma aldeia onde cheguei de táxi, perguntei quem é que poderia dar-me de comer e dar-me guarida. Guarida sim, toda a gente. Podia ficar em casa deles mas, de comer, ninguém se arriscava porque as pessoas da aldeia não têm o horário que têm os professores. O horário de professor não tem nada a ver com o horário de lavrador de maneira que não estavam para ir a casa levar-me de comer ao almoço, ao meio-dia, e depois voltar ao jantar a uma hora certinha. Essas horas, para os lavradores, não têm sentido. Foi um risco grande mas, hoje, já fora da actividade profissional, acho que foi uma boa opção. Não trocava por nada. Se voltasse atrás fazia o mesmo.

Tempos, apesar de tudo, bem diferentes dos de hoje. Conte-nos como foi a sua experiência espanhola.

As minhas experiências de vida… a espanhola aconteceu, como todas as outras que tenho tido, um bocado ao acaso. Nunca me passou pela ideia, sair da minha terra para ir trabalhar para qualquer outro sítio. Eu gosto tanto disto. Nasci aqui e dá-me a impressão, quando saio uns quilómetros para fora de Bragança, que me começa a faltar o ar. Eu costumo dizer, sendo um indivíduo que gosta muito do Porto, gosto muito daquela cidade, mas costumo dizer que a coisa mais bonita que o Porto tem é a saída para Bragança porque, de facto, há qualquer coisa… eu deixo de ver o castelo e dá-me a impressão que não vejo as coisas claras e começo a sair de Bragança e começa-me a faltar o ar. Não posso andar muito tempo fora disto. Saio e passado algum tempo, começo a ficar mal. Este tipo de raciocínio não condiz rigorosamente nada com um indivíduo ausentar-se para fora do país, embora não fosse para muito longe.
Fui para Espanha e em Espanha escolhi logo uma zona aqui mesmo à beirinha para, se me visse muito aflito, vir embora em meia dúzia de horas, menos… em três horas estava em casa mas foi, também, num momento em que eu frequentava um curso de actualização no verão, na Escola Superior de Educação e estavam lá colegas meus que já leccionavam em Espanha. Todos os professores que estavam em Espanha, frequentavam, aqui, uma acção de formação e então um deles disse-me: “Queres ir para Espanha? Faltam-nos colegas. Dava-nos jeito.” “Vamos ver.” Respondi. Nessa altura, já não era eu sozinho. Quando fui para Espanha já tinha outras coisas que não me deixavam fazer o que é típico nos homens: Fazer aquilo que querem, quando apetece, porque já tinha mulher e filha.
Estava a frequentar a acção de formação, um dos colegas que tinha feito a admissão ao Magistério comigo e já tinha a experiência de oito anos de França e disse: “Se arranjarem para os dois, vamos os dois.”
“Vamos ver, vamos a casa procurar à “chefa” a ver se ela nos autoriza porque isto não pode ser assim. Vamos ver como é que é.” Estudámos o processo e deu-se o feliz acaso de necessitarem, para Espanha, de vários professores. A minha esposa que também era professora. Pusemos à consideração da família, as filhas deram o seu aval. Uma delas ia para a universidade nesse ano e a outra passava para um ciclo diferente nos estudos, embora ainda, no secundário. Estudamos o problema e resolvemos ir à experiência por um ano e essa experiência de um ano resultou em dez. Dez anos onde aprendi muito também, onde vi muitas diferenças, especialmente, no aspecto do ensino.
Eu costumo dizer que andamos atrasados uma série de anos em muitas coisas mas, no ensino, andamos muito mais. Vejo isto tão difícil, que não sei se nós, algum dia, chegaremos a apanhar o comboio dos espanhóis, que passa aqui na Puebla, não passa muito longe (com ironia) e nós já não o conseguiremos apanhar, até porque, as reformas do ensino em Portugal funcionam, mais ou menos, ao sabor do vento. Se sopra de baixo vai para cima… se sopra de cima vai para baixo… eles nem sequer sabem bem, para onde ir. Pensam que é uma brincadeira e estamos a pagar por isso. Nós, já há trinta e tal anos que andamos a brincar ao ensino. Eu julgo que não têm nada a ver com o ensino. Não percebem rigorosamente nada do que é o ensino e eu digo isto porque tenho conhecimento daquilo que aprendi lá durante dez anos acerca de um ensino totalmente diferente do nosso.

Quais são as principais diferenças entre o ensino espanhol e o português?

As principais diferenças são, quanto a mim, a postura dos professores espanhóis e a postura dos professores portugueses porque, penso eu, que o ensino tem diversas vertentes por onde se pode aferir. Para mim, o fundamental são os professores. Não há nenhuma escola que tenha maus professores e seja boa. Não há nenhuma escola que seja má e tenha bons professores. Isto é principio assente e os professores espanhóis durante, com certeza, o seu percurso de formação… um professor em Espanha não pensa como um professor em Portugal. Um professor em Espanha pensa que tem que trabalhar x horas, por exemplo, um horário das dez à uma da tarde e das três às seis e meia. Entra para a escola como se entra para qualquer outra actividade profissional e não sai. Não é viajante, não é moço de recados. Não tem que sair de lá. Trabalha na escola para onde vai durante essas horas e isso trabalham todos os professores espanhóis. Não trabalham mais uns do que outros, nem que tenham dezoito anos, nem que tenham sessenta, trabalham todos, aquelas horas. Podem ter funções diferentes mas têm todos o mesmo horário a cumprir. Cá, agora, há uma tentativa de copianço do que é esse sistema, mas isto é aberrante. Dizem-no colegas que estão no activo. Os professores espanhóis fazem isso porque têm condições para o fazer. Não é possível dar-se uma carga horária aos professores e depois não lhes proporcionar um local para trabalhar, que é o que acontece segundo me dizem, na maioria das escolas. Os professores da maioria das nossas escolas têm que estar x horas de permanência na escola. Não quer dizer que sejam horas lectivas e depois durante as horas que não são lectivas têm uma sala, uma sala para estarem vinte ou trinta professores que não fazem lá, rigorosamente, nada ou têm os corredores para andar a passar de um lado para o outro. Isso não pode ser. Os professores espanhóis têm os meios para poder actuar. Aqui, o que normalmente acontece é que se escrevem umas directrizes no diário da república e depois não se sabe quem pode cumprir. A maior parte não pode cumprir isso. Se não podem cumprir é melhor não fazer, é melhor deixar estar como está. Ainda por cima pondo os profissionais do ensino contra eles e querem os legisladores que isto vá para a frente. Ninguém consegue levar nada para a frente quando as pessoas que devem puxar o carro em vez de puxarem estão a empurrar para trás, que é o caso dos professores. Não se pode fazer uma reforma de ensino contra os professores, é impossível. Pode ser que haja algum Ministro que ainda descubra essa capacidade. Como eu dizia, as condições de trabalho na Espanha são, incomensuravelmente, superiores às nossas. Não têm nada a ver. Eu trabalhei no ensino que abrange o ensino primário, o ensino pré-primário e parte daquilo que era o preparatório aqui em Portugal, ou mesmo até mais além, ainda entra um bocadinho no secundário porque lá é até ao oitavo ano. Com oito anos de escolaridade é que passam a outro tipo de ensino, o ensino secundário. Eu estava numa aldeia que só tinha quatrocentos alunos quando fui para lá. O colégio era um colégio duma aldeia metida no meio das montanhas. Era muito parecido com a nossa região para pior, em termos de clima, porque já é uma região com seis ou sete meses de neve, com bastante frio mas, dizia eu, nessa aldeia, o colégio onde eu trabalhava e não vamos a pensar que é alguma escola particular pois lá, colégios são escolas públicas. Esse colégio tinha um pavilhão gimnodesportivo onde se podiam praticar quase todas as modalidades. Tinha uma piscina, tinha uma sala para cada grupo ou seja os professores de matemática tinham uma sala só para eles, os de línguas tinham outra sala à parte das salas de aulas… seriam as salas dos diversos departamentos onde cada professor desse departamento tinha um computador, tinha uma máquina de tirar fotocópias, tinha um telefone que podia utilizar…

Tinha um gabinete como devia ser…

Tinha um gabinete como devia ser, não faltava rigorosamente nada. E só para ver a diferença, onde eu vim terminar a minha carreira, à espera da reforma, três ou quatro meses, foi a escola onde eu aprendi a ler e a escrever. Fiz questão. Felizmente, podia escolher, porque já tinha uns anos largos de serviço e tinha uma nota razoável. Tentei sempre e consegui reformar-me na escola onde aprendi a ler e a escrever que foi a Escola da Estação e quando cheguei à Escola da Estação ela era quase igual àquilo que foi quando fiz lá a quarta classe. Isto já lá vão cinquenta anos não é? É muito tempo para uma escola continuar igualzinha e as outras não andam muito longe disso. A mim parece-me que Bragança já não precisa destas escolinhas todas. Bragança, já há muito tempo, que devia ter uma escola do ensino primário como deve ser, uma escola onde não faltasse rigorosamente nada.
Já em conversa de café e pouco mais do que isso, tenho dito várias vezes que os responsáveis pela educação na nossa cidade e, se calhar, até no concelho não têm obrigação de entender muito de educação, porque também ninguém pode entender de tudo mas, podiam de vez em quando, escutar alguns que sabem e tomar algumas medidas. Podiam ir buscar dinheiro aos espaços das outras escolas que depois ficavam vazias.
As diferenças existentes entre Espanha e Portugal, no que diz respeito à formação dos professores é, fundamentalmente, neste aspecto: os professores espanhóis são formados para trabalhar, para exercer a sua profissão com dignidade e não estão habituados a serem eles a ter de andar a buscar tudo e mais alguma coisa, porque eu ainda me lembro e, se calhar, ainda é assim de ter de ser eu a comprar vassouras e farrapos e coisas do género para limpar a escola. Se calhar, hoje já vão lá limpá-las. Não faço ideia mas isto ainda não é uma coisa de há muitos anos. Eu reformei-me há três anos. Andei, muitas vezes, de calças arregaçadas a esfregar a escola juntamente com os alunos. Se calhar, eles aprendiam uma coisa que não aprendiam em casa, mas não me parece que seja uma situação muito digna.
Os professores em Espanha também são considerados num nível superior ao nosso, tanto pela população em geral como pelos governantes.

E a pesca desportiva? Que papel desempenha a pesca desportiva na sua vida?

A pesca desportiva é o meu hobby desde muito pequerrucho. Eu ia para o rio Sabor com a minha mãe, tinha os meus sete, oito anos. Recordo-me, perfeitamente, porque a minha mãe ia lavar a roupa da família ao Sabor e até sem ser da família para ganhar mais alguma coisa. Levava aquilo nuns sacos e não era só ela. Havia dezenas de mulheres que desempenhavam a tarefa que lhes estava atribuída, destinada e, então, eu ia para lá e os dias eram grandes. Quando ia era no Verão, eu tinha que me entreter com alguma coisa, arreliar a minha mãe e as outras pessoas porque me juntava com os outros garotos e fazíamos as nossas traquinices. Metíamo-nos ao rio antes de fazer a digestão, pintávamos a manta, um dos entretenimentos para passar o tempo era pescar e comecei a pescar com um cesto, eram os cestos onde vinha o polvo antigamente e então eu punha uma pedra no fundo do cesto, metia lá uns bocados de pão, molhava o pão, fazia umas bolas, metia-o dentro do cesto e a uma asa, aquilo tinha duas asas, prendia-lhe uma corda. Punha-me longe. Quando pensava eu que já andavam por ali alguns peixes às bicadas ao pão puxava o cesto e sempre vinha algum e então repetia aquilo, dezenas de vezes até ao fim do dia. Naquela altura, havia muitos peixes e recordo-me de beber litros e litros de água no Sabor. Nunca tive nada, nunca fui parar ao hospital, nunca me doeu a barriga, podia-se beber a água. Hoje, é melhor a gente até nem a cheirar quanto mais bebê-la. Aí, se calhar, entrou o meu bichinho pela pesca. Por volta dos dez, onze, doze anos já consegui arranjar uma cana de bambu. Lembro-me que ia ali ao senhor João Casão, onde é hoje a casa Morais, pedia-lhe um bocado de sediela, um metrinho ou dois de sediela que prendia depois a um fio, prendia à cana, arranjava um anzol e lá me ia eu aos peixes e, a partir daí, ficou-me o bicho.
Quando tive mais possibilidades e alguém que me ensinasse, enveredei pela pesca à truta que é, quanto a mim, uma actividade riquíssima em várias vertentes. Voltando um bocadinho a Espanha, posso dizer-lhe que aprendi lá, que há escolas de pesca para crianças a partir dos três, quatro anos. É porque os espanhóis não são brutos e sabem que essa actividade é uma actividade importante e então voltando atrás. Eu começo a gostar tanto da pesca que se tornou um vício que, às vezes, até nem deixa dormir a gente. Agora já estou mais calmo porque a idade avança e começam a faltar-me as pernas, de maneira que, já estou mais moderado, mas houve uma altura em que eu não dormia. Dormia, às vezes, por lá deitado em cima de uma pedra. Encostava-me um bocado na hora que as trutas não davam, porque é uma actividade a nível desportivo. Acho que é uma coisa interessantíssima. É uma actividade que educa muito se quisermos aproveitar como factor de educação, é como qualquer outro desporto. Ainda por cima, poderia ser, na nossa região, uma actividade económica de relevo mas, para isso, tínhamos que inverter as coisas quase da cabeça para os pés. Os nossos rios, aqui na nossa zona, Bragança e Vinhais são rios que estão de tal maneira pouco poluídos, que se podem considerar quase um dádiva de Deus porque já não há disto em muitos sítios. Não há cuidados absolutamente nenhuns com eles. O ordenamento hidrográfico não está, nem sequer pensado, mas dá-me a impressão que com pouco esforço, com pouco dinheiro, podíamos ter uma actividade aqui na nossa zona. Além de poder levar para essa actividade os jovens que gostassem, que viessem a gostar dessa actividade, podíamos também aproveitar, em termos económicos. Os espanhóis têm zonas onde os hotéis são cheios com um ano de antecedência porque a actividade da pesca é de tal ordem interessante que há pessoas que reservam com um ano de antecedência.

Porque há espécies…

E cá também. Nós poderíamos ter, tanto ou mais, do que os espanhóis. Para isso bastava que houvesse alguns cuidados com os rios que, como já disse, não há absolutamente nenhuns. Ninguém fiscaliza os rios. Se nos apetecesse ir deitar dez quilos de veneno a um rio qualquer, neste momento, podíamos ir que não encontraríamos ninguém. Ninguém fiscaliza ninguém. Cada um pratica as maiores barbaridades que se possa imaginar e ninguém faz nada. Lá de vez em quando, aparece um indivíduo que fica sem a cana ou paga uma multa de alguns dez ou quinze contos quando já tiraram quarenta ou cinquenta de trutas. Não há regularização dos caudais, não há limpeza dos rios. Não há rigorosamente nada. Estão totalmente abandonados, não há nada, nada, nada a protegê-los. Os nossos rios não têm ninguém. Estou convencido que, a não ser os pescadores, a maior parte da gente, mesmo dos que mandam, nem sabem que existem rios na região de Bragança. Por isso é que eu digo que, sendo uma actividade que poderia ser tão importante para a nossa zona, a mim admira-me é que como é que esses bichinhos, não sei como é que se chamam, esses indivíduos que andam sempre atrás do dinheiro, ainda não viram que tinham aí uma fonte onde poderiam ir buscar muito mais dinheiro. Em Bragança temos desses bichos (com ironia), eu não sei como se chamam mas andam sempre atrás de dinheiro. Cheira-lhe o dinheiro a quilómetros. Onde houver muito e depressa, eles estão imediatamente lá. Como é que ainda não deram com ninguém que os alertasse que isto? Não é preciso muito trabalho e dá muito dinheiro. Eu gostava que eles, um dia, se virassem para aí. Gostava, não só por mim, que eu já não pescarei durante muitos mais anos, mas por aqueles que poderiam aproveitar, no futuro, em relação a essa actividade.

E a pessoas que viessem de fora…

Sim, há muita gente de fora que, ainda hoje vem, mesmo com as fracas ou nenhumas condições que temos. Ainda hoje encontro pessoas de outras partes do país e do estrangeiro, nos nossos rios à pesca.

Quais são as principais espécies de peixes dos nossos rios?

A rainha da pesca na nossa zona e, penso que por todos os lados, é a truta. Nós temos rios truteiros por excelência e como actividade lúdica a truta é a espécie que prima nos nossos rios. Depois temos ainda o barbo, a boga e o escalo. Qualquer deles é peixe de qualidade em termos de cozinha, de alimentação. São peixes que ainda existem na nossa zona com alguma abundância. Outros há, como a enguia por exemplo, que já estão em extinção. Já é raríssimo aparecer uma enguia nos nossos rios. Havia enguias todos os anos nos nossos rios e hoje já é muito, muito raro apanhar uma enguia. Por causa da poluição e porque as barragens também são feitas com descuido. Não têm passagem das espécies da parte de baixo da barragem para a parte de cima, na desova essencialmente, portanto, não têm capacidade para isso e porque também estão altamente poluídos, pelo menos, a partir de determinadas zonas.

Antigamente existia na aldeia de França um excelente viveiro de trutas. Era um gosto ir até lá e percorrer, sem pressas, os vários tanques onde se distribuíam de acordo com o tamanho de cada uma. Acha que deveria ser reabilitado?

Eu penso que nunca devia ter sido abandonado. A reabilitação daquilo, a reabilitação da zona que é chamada a Zona do Prado Novo, era fundamental e impunha-se que as pessoas a quem está atribuída alguma autoridade, pudessem resolver isso. Não sei se já lhes passou pela cabeça alguma vez mas, se não lhes passou, andam muito distraídas, porque era uma zona de lazer espectacular. Aquilo era lindíssimo. Era também uma actividade que dava que fazer a mais algumas pessoas, mesmo que fosse particular. A mim não me interessava. A mim interessava-me era que a zona estivesse, de facto, em actividade, que não a tivessem deixado degradar. Que além de em termos paisagísticos ser, de facto, uma zona de excelência, uma zona lindíssima, também para nós, pescadores, funcionava, um bocado, como protecção, porque tínhamos ali trutas que poderiam até vir a repovoar os nossos rios. Seria interessantíssimo se um dia, alguém se lembrasse de, novamente, pôr aquilo a funcionar e tirar o proveito dessa actividade.

É contra ou a favor da construção da barragem do rio Sabor?

Sou a favor da construção da barragem do rio Sabor porque esta história dos ambientalistas e de toda essa gente que anda preocupada com a natureza, eu não sou daqueles… como disse no princípio, sou um amante da natureza, não sou contra a natureza, mas acho que há aqui uma coisa muito importante que é a natureza a servir o homem, não é para afugentar o homem. Se nós, agora, porque o rato não sei quê que tem um risco no rabo (risos), e não pode morrer um e outras coisas do género e, por causa disso, não podemos construir aquilo que o homem necessita… Ainda há pouco tempo, em conversa com um amigo meu, que sabe muito mais destas coisas do que eu, aprendi que um parque, agora falando de um parque da nossa região que é o Parque Natural de Montesinho, um parque só tem interesse, para mim só pode existir se for quase uma simbiose entre a natureza e os humanos que estão inseridos nessa zona da natureza. Ou seja, um Parque Natural não pode proibir ou limitar a actividade humana de maneira a que os humanos não possam existir nesse território porque, senão, daqui a nada temos aqui uma reserva de índios, ou nem índios porque para os índios não os deixarem pescar no rio, não os deixarem fazer paredes num determinado sítio para se protegerem… isto fica deserto. Eu sou a favor da construção da barragem do Sabor como de outras, fundamentalmente outra que, para a nossa cidade é importantíssima, que é a barragem de Veiguinhas. A barragem de Veiguinhas é uma necessidade fundamental. Os estudos estão feitos, o sitio é o ideal. Quantos mais estudos que, quanto a mim, não são nada. São alternativas para não deixar fazer aquilo que é necessário. Tanto a barragem do Sabor como a barragem de Veiguinhas são estruturas fundamentais para o desenvolvimento da nossa região. Tem de se colocar na balança: “Ou fazemos a barragem e as pessoas têm capacidade de sobreviver nessa região ou não fazemos a barragem e as pessoas vão-se embora porque não têm com que viver.” Os problemas com a água, em Bragança, ficavam resolvidos. Acabavam-se os problemas em tempo de seca. Garanto-lhe que acabaremos por construí-la, porque os bragançanos têm uma coisa muito interessante. É que, enquanto não lhe morderem as canelas, são muito pacíficos. Só mesmo quando já tiverem os dentes ferrados no lombo é que se atiram às armas se atiram ao ar nem os de Lisboa nos seguram. Isso de certeza absoluta.

O que podemos fazer, nós transmontanos, para que a nossa região consiga apanhar o comboio em movimento?

Fundamentalmente, esta serve para o país inteiro, tem que apostar nas crianças. Quanto mais pequenas as começarem a ensinar, melhor é o futuro de Bragança e o do país. Andamos há trinta anos a protelar com modificaçõezinhas. Vamos fazer as coisas a sério e vamos dar as mãos e tratar as coisas a sério. Essa é a primeira e, depois, passando ao ensino superior em Bragança que foi, quanto a mim, um motivo de atraso da nossa região. Parece um paradoxo mas, quanto a mim… Quem é que fixou em Bragança? Que cursos deu o ensino superior que se pratiquem em Bragança? Que cursos é que ministrou que pudessem fixar e atrair outras pessoas a Bragança? Temos que fazer esta leitura urgentemente. Mudar as coisas radicalmente. Se não apostamos aí, nunca mais vamos a lado nenhum.
Há outras actividades que Bragança, concelho e até o distrito podem desenvolver e penso que se não o fizerem, também não vão muito longe. Bragança, em termos agrícolas, é muito limitada. Bragança, em termos industriais, já nunca mais apanha o comboio ou então tem que haver alguém que goste muito disto e invista aqui muito dinheiro porque e, penso que a gente do dinheiro não faz isso e não faz conscientemente, quando temos uma ligação daqui ao Porto e daqui a Espanha como a que temos, não podemos ir a lado nenhum. Ninguém vai pôr aqui uma canoa que depois não sai de cá. O pouco que investe ainda fica cá e não serve para nada. Tem que haver meio de escoar os produtos que possam, um dia, vir a ser produzidos na nossa região.
O distrito de Bragança não aproveita algo que, quanto a mim, é fundamental. Nós somos quase uma reserva natural. A nossa região é uma reserva natural e há tanta gente que gasta tanto dinheiro para ir ver coisas tão longe, em países que ficam a uma distância enorme daqui e nós temos coisas melhores do que têm esses países tão longe e não as aproveitamos. Não sabemos o que é isso. Não fazemos ideia. Ainda agora, há pouco tempo, no mês de Outubro fui, com mais cinco colegas, fazer uma viagem de oito mil e quinhentos quilómetros de carro e, como compreenderá, andámos muito, afastando-nos da nossa terra e, naturalmente, vimos bastantes coisas. Não me pareceu passar por sítio nenhum, onde desprezassem tanto, aquilo que nós temos em comum com eles ou seja, a natureza. Não vi sítio nenhum. Nós somos, se calhar, os campeões nessa de desprezar aquilo que temos. Temos que inverter isto. Temos que inverter e já.

Para terminar. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Eu acho que os homens não merecem ser distinguidos como David e Golias. Um amigo meu diz, muitas vezes, que de homem para homem, não vai força de leão e é verdade. Não houve homens que me marcassem, que com a actuação deles me levassem a ser diferente. Eu acho que não. Agora, houve muita gente que, se calhar e a maior parte deles anónimos, foram ao longo da minha vida modelando-me. Homens que me tenham marcado… acho que um homem não marca outro homem.

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