sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Entrevista: Dr.ª Ana Maria Afonso, diretora do Museu Abade de Baçal



É natural de Castro Vicente, Mogadouro, onde frequentou o ensino primário. Até que ponto o facto de ter nascido numa aldeia a influenciou ao longo da sua vida?


Eu acho que sim. Há alguma, desculpem a imodéstia, alguma autenticidade no valor, pela raiz, pala verdade das coisas, por ir mais além, por não querer ser superficial e por sobretudo estar de valores que me transmitiram e que passou muito pelo meio onde eu nasci e onde estive bastante tempo, bastantes anos. Isto condiciona-nos bastante e determina muito a nossa procura de conhecimento a nossa visão do mundo e o relacionamento com os outros, sem dúvida.


Desde o ensino preparatório está ligada à cidade de Bragança. Fale-nos dessa experiência.


A cidade de Bragança foi uma cidade que me marcou. Eu fiz aqui o meu ensino secundário e liceal também. É evidente que os tempos de liceu, a convivência que tive com os meus colegas, a cidade em si, o castelo… todo este gosto pelo património sem dúvida que fui buscar quando passei por aqui, quando estive em Bragança e fiz aqui o meu ensino liceal. Isso acabou, também, por me determinar. É evidente.


Licenciou-se em História no Porto. O que é que a levou a enveredar por esse curso?


Foi sempre uma área do saber que eu gostei, que me interessou também. Penso que foi um pouco inato, é uma aptidão que tenho, embora os meus interesses sejam muito diversificados. Sou uma pessoa muito curiosa, gosto de várias áreas do saber mas, de facto, a História, o encontro connosco próprio, com o homem, sempre me seduziu e as ciências sociais também. Lembro-me, na altura, quando foi da escolha, eu hesitei entre Filosofia, área de que gostava também e que eu tinha alguma aptidão e que me interessou bastante e entre a História. E, de facto, a História prevaleceu e foi o percurso que fiz, que depois continuei com a formação em arquivo e que continua também com a área profissional que estou a desenvolver que, no fundo, é ser Directora do Arquivo Distrital, como disse Dom António Rafael, “A memória é a catedral da memória do nosso distrito”. Isso, para mim, não vou dizer que não, dá-me um grande empenho, uma grande motivação na minha área profissional e sinto-me também uma pessoa privilegiada porque gosto do que faço e da minha actividade profissional. Não faço como uma obrigação mas, faço com bastante gosto, isso é indiscutível.


Que influência teve o doutor Belarmino Afonso nas suas opções?

Imensa! Ele é meu tio, influenciou-me bastante. Foi com ele que eu aprendi, também, a gostar, provavelmente, de História, a gostar do património, a valorizar a cultura rural, a valorizar as nossas tradições e a desenvolver um trabalho com grande espírito de missão e de empenho. De facto, tenho sempre presente a sua imagem de acolhimento, que fazia aos utilizadores quando iam ao Arquivo Distrital de Bragança. Uma grande humildade e uma grande disponibilidade, um grande empenho e um grande espírito de missão naquilo que era preciso saber e que depois, tempos mais tarde veio a materializar, quer pela UNESCO, a defesa do património cultural móvel, quer o imóvel que ele se empenhou em preservar. Eu sei que há relações familiares, que é meu tio, mas eu não posso deixar de o dizer. Provavelmente, na altura, algumas pessoas não valorizaram mas, vendo agora as políticas mesmo a nível europeu, vemos que ele esteve à frente do seu tempo. Aquela recolha que fez, aquele património que, provavelmente, se ele não o tivesse visto e feito na altura, se teria perdido porque os informadores já não existem e ninguém mais o fez. Aquilo que competia a todas as instituições culturais ele acabou por desenvolver. O seu trabalho de arquivo não só no património documental mas, num património muito mais vasto que é a defesa da cultura transmontana. Isso, de facto, é evidente. Eu não o faço com a sabedoria dele. Considero-me uma pessoa competente, com conhecimentos para estar no local em que estou e faço o trabalho da melhor forma mas, de facto, ele fê-lo com uma sabedoria e com um espírito de doação que norteia muito a minha atitude profissional e pessoal também.


Depois de uma breve experiência no ensino a sua vida está, desde 1987, ligada ao Arquivo Distrital de Bragança. O que é o Arquivo Distrital e qual é a sua importância para o distrito?


O Arquivo Distrital é, no fundo, todo o nosso passado no fundo é uma instituição onde agora o lema da democratização da cultura que a sociedade de informação tem como lema, provavelmente, a sociedade do conhecimento também tem na sua área da cultura, a sua plena materialização. É uma instituição que preserva todo o nosso passado, toda a nossa identidade, todo o nosso património, desde as pessoas que mais se destacaram a todos nós e é essa a versão democrática que me seduz no arquivo. Terá que ser um instrumento cultural de democratização, do acesso à cultura também. Terá que desenvolver esse seu papel e é esse desafio que me norteia, mesmo na minha planificação cultural, na visão que eu tenho da instituição, no plano estratégico que nós todos temos quando estamos à frente das instituições. É, de facto, saber que todos nós temos lá uma pasta, na história, e saber que todos nós temos a nossa genealogia, as nossas raízes, a nossa identidade e que o contributo da identidade pessoal e individual faz o conjunto desta identidade onde todos nós tivemos o nosso contributo e que não é esquecido porque, muitas vezes, a nossa memória é curta. Muitas vezes, lembra-se só daquilo que se quer e ali não fica registada toda a história do passado. É o que me seduz a nível de instituição e continua a lembrar-me da Catedral da Memória que, quando foi da inauguração, Dom António Rafael disse. Acho que é uma metáfora muito interessante e que se aplica plenamente. Por isso eu tenho pena que, muitas vezes, as pessoas não se encontrem com essa instituição, a comunidade em geral. É evidente que nós temos pessoas, temos utilizadores mas, eu gostaria que fosse muito mais abrangente, gostaria que todas as pessoas do distrito, um dia, fossem ao arquivo e vissem que o seu património genético, biológico, genealógico está no arquivo e está muito bem preservado. Não vamos ter só uma Catedral da Memória onde a documentação está de uma forma passiva mas, sobretudo, algo que sirva para educar, para criar cidadania para, no fundo, contribuir para a plena cidadania e para a consciencialização do interesse que tem cada um na sua actividade e na sua missão individual e aí se constrói a comunidade em geral.


Sendo uma entidade já com noventa anos o Arquivo Distrital tem passado por algumas vicissitudes a nível das instalações. Está, finalmente, resolvido o problema, com as instalações actuais?


Penso que sim. Estamos no Convento São Francisco, restaurado. Está muito bem, funcionalmente. Foi um projecto de arquitectura muito bem concebido. Teve alguns problemas na sua execução que agora foram resolvidos e eu penso que cumpre, com muita dignidade, todas as suas funções, mesmo a nível de espaços funcionais. É pena, de facto, que aquela entrada da Igreja de São Francisco esteja como está. Há algumas restrições no acesso. Temos tido algumas reclamações por parte dos utilizadores mas, é óbvio que não são imputáveis ao serviço e, de facto, ainda não se desbloqueou a situação e continuamos a ter um convento medieval que é o Convento de São Francisco naquela situação e naquele impasse, até porque está numa área, numa zona nobre da cidade. Formulamos, aqui, votos para que se resolva o mais rapidamente possível essa situação. Sei que tem havido diligências, quer por parte da autarquia, quer por parte do Ministério da Cultura e fazemos votos para que a situação se resolva porque é um impedimento para um bom acesso à instituição e à entrada dos seus utilizadores.


Não deixa de ser caricato que estando instalado num dos edifícios mais emblemáticos e antigos de Bragança, não tenha nos seus arquivos, nada relacionado com o mesmo. A que se deve esta situação?


Tem a ver, de facto, com o património documental e com todas as atrocidades que têm sido feitas ao longo do tempo e com a falta de cuidado que nós temos em preservar a memória de instituições. Em 1934 quando foram vendidos muitos bens do clero. Muitos dos arquivos foram, simplesmente, vendidos, dispersos e deixaram de existir. Não sabemos muito bem qual foi o percurso. O mesmo aconteceu com o Convento de São Francisco que em 1934 foi vendido em hasta pública. Todo o seu arquivo se perdeu e não podemos agora recuperar, de facto, memórias, a não ser alguns fragmentos pontuais de algumas utilizações que teve o edifício como Asilo de São Francisco, como Hospital militar e mais tarde, quando estava praticamente, em ruínas, o IPPC decidiu que de facto aí fosse instalado o Arquivo Distrital. Penso que os próprios Franciscanos viram com bom grado esta nova ocupação, que tem a ver com o princípio cultural da própria comunidade.


Aos pouco mais de cinco volumes iniciais já se juntaram muitos milhares. Com quantos volumes conta, actualmente, o espólio do Arquivo e qual a sua procedência?


Como missão, ao Arquivo Distrital compete-lhe salvaguardar a história, a memória de todo o distrito, a memória do próprio Estado e nós, em primeira instância, recebemos toda a documentação da Administração Central, ou seja, os serviços que produzem a documentação, quer conservatórias, quer os tribunais, quer outros serviços da administração central, não tendo condições para preservar a documentação que produzem e que considerem que tem interesse para a história dessa instituição, que informa a história de toda a região devem, de facto, mandar a documentação para o Arquivo. Ou seja, nós temos um âmbito geográfico bastante vasto que é o distrito, recebemos a documentação de todas as instituições da administração central. Isso está legislado e promovemos, também, os arquivos privados, empresariais. A história não é feita só pelas histórias das instituições, é feita também pela história das empresas privadas, é feita pela história dos arquivos pessoais, é feita pela história dos arquivos empresariais. Todo esse conjunto é que informa o património documental que, por sua vez, faz parte do património cultural de todo o distrito, de toda a região. Nessa consonância temos muitas proveniências. Nós dizemos que temos quatrocentas e setenta e sete instituições que têm a sua história no Arquivo Distrital. Dizemos que temos, a nível de metragem, dois quilómetros com muito mais capacidade para incorporar essa documentação. É pena que, muitas vezes, essa história seja muito lacunar e tenhamos apenas um ou dois documentos não podendo recuperar a sua história. Pena é, também, que as pessoas não valorizem esse aspecto, mesmo a nível da administração central, das Instituições, não salvaguardem o seu património documental e não haja legislação que, de facto, responsabilize alguém sobre isso. Estamos apreensivos. Esperamos nova legislação sobre a lei do património cultural, a nova lei de bases que vai definir as responsabilidades e a nossa Ministra já disse que vão articular-se com as entidades produtoras, para que haja uma maior operacionalização na salvaguarda deste património geral, quer das instituições, quer, depois, na possibilidade e nos recursos com o Arquivo Distrital tem. Para a preservação e para a valorização de todos os arquivos, sobretudo, a nível privado.


Quantos séculos haverá no arquivo distrital?


A nível de amplitude cronológica o nosso documento mais antigo é do século décimo. É, de facto, um fragmento de 633, do concelho de Toledo. É uma preciosidade. São dez séculos e como é que ele surge no arquivo distrital? Foi uma doação da casa de Sampaio. O arquivo privado, muito de grande valor, e nós dizemos muita integridade, porque está muito completo nas suas séries, a família compreendeu o interesse e contribui para a história da região com esses arquivos de família e resolveu doar todo o seu espólio, todo o seu arquivo. Eu aproveito para, mais uma vez, agradecer à família e à casa de Sampaio, uma aldeia de Vila Flor. Os descendentes estão, agora, em Lisboa mas, de qualquer forma, não posso deixar de agradecer e que isso seja um estímulo para quem tem arquivos pessoais de valor, que contribuam para a história, para a nossa identidade, para a nossa cultura, que os possam dar ao arquivo. Inclusive, eles podem ficar lá só à guarda, a pessoa continua a ter o seu património, só que fica em condições técnicas que só nós temos porque somos uma instituição com essa vocação. Temos o controlo da humidade, o controlo de temperatura, temos material de acondicionamento, vamos vigiando o seu estado de evolução. Tem a ver com todos os suportes desde o sonoro até ao papel que têm condições ambientais próprias e diferentes que nós vamos controlando com o conhecimento técnico que os nossos técnicos têm e que podem fazer esse trabalho que as pessoas em casa não podem porque não têm essas condições de forma a perpetuar a sua existência.


As instituições produtoras de documentação têm facilitado a tarefa do arquivo?


Têm facilitado. É evidente que há incorporações obrigatórias de cinco anos e elas são feitas sempre. Temos os registos de nascimento, baptismo e de casamento com mais de cem anos, temos também os notariados com mais de trinta anos. Quem quiser uma certidão terá que ir, obrigatoriamente, ao Arquivo desde que ela tenha mais de trinta anos, de todo o distrito e temos, também, dos tribunais. Toda essa documentação ingressa no Arquivo Distrital. O outro tipo de documentos, muitas vezes, não é fácil consegui-lo. Porquê? Porque, desde que a documentação deixe de ter o seu valor administrativo, ela acaba por ser colocada, sem organização, no local e nós não podemos receber documentação que não seja de valor permanente como é óbvio. Que seja feita essa selecção, há alguma dificuldade. Nós podemos dar apoio, não podemos é fazer totalmente esse trabalho e isso, muitas vezes, faz com que a documentação não esteja, de facto, organizada. Estamos a fazer agora, a ajudar, estou-me a lembrar da documentação do CAE que está a ser tratada e que vai vir, que é muito importante para o estudo da educação, uma área primordial. Esta estratégia de conhecimento e de competitividade não foi exercitada ao longo de outros tempos. Fazer esse estudo comparativo também não deixará de ser interessante. É uma forma de ver os métodos pedagógicos, como é que eles evoluíram, quais eram os temas ao longo dos tempos e há muita procura até a nível de teses de mestrado. Essas fontes vão poder ser disponibilizadas no Arquivo Distrital e as pessoas podem consultar. Salva-se esse património. Eu, às vezes, digo salva-se porque, de facto, mesmo agora no século vinte e um, continuamos a não ter muita atenção a esse património e tem que haver mecanismos legais que realmente ponham cobro a esta situação.


Já nos falou dessa doação da casa de Sampaio. Como é que podem as pessoas fazer para doar? Qual é o procedimento?


É o mais simples possível. Fazer um contacto, levar a documentação, é feito um auto de entrega, nós dizemos uma guia de remessa, um documento, onde diz quem é que doa e o que é recebido e como é que é comunicado. É evidente que a nível de arquivos públicos a legislação determina aquilo que é comunicado e o que não é. O que não pode ser comunicado, estou-me a lembrar de testamentos ou de documentação que tenha a ver com o bom nome, é evidente que nós não o podemos comunicar. Pode ficar lá mas não é comunicável, nesse caso o que é dito é se o arquivo privado pode ser ou não comunicável se é sempre comunicável temos que ter autorização do próprio proprietário. Inclusivamente ele pode deixá-lo só à guarda do Arquivo. Nós ficamos apenas com a questão técnica de preservar essa informação. É evidente que não vamos aceitar nenhuma doação que nos diga: “Vai ficar aí dois ou três anos e depois venho buscá-lo.” É evidente que nós temos que a organizar, temos que inventariar e temos que acondicioná-la. Nesse caso fica à guarda, faz parte do nosso inventário e, também, é evidente que está a salvaguardar a memória da própria família.


Que tipo de documentação deve ser arquivada e tratada?


Tudo aquilo que tem valor histórico. O que é valor histórico. É uma análise subjectiva. A nível da Administração Central isso já está determinado porque há uma legislação que diz, inclusivamente, o que é. Uma portaria da legislação onde é feito um levantamento de toda essa documentação e é dito aquilo que tem valor permanente. É evidente que há documentos que nos relatam o historial, as actas e outros documentos que nós já sabemos que têm valor histórico e que têm que ficar. Outra documentação, de contabilidade por exemplo, não vamos, logicamente, guardar toda essa informação até porque, às vezes, há relatórios onde nós vamos buscar todo esse conteúdo informativo. Isso não deve vir mas, é uma lei. Não vou eu dizer subjectivamente aquilo que tem ou não valor. Há uma lei própria a nível de arquivos privados e das empresas em que isso não acontece e as pessoas não estão tão salvaguardadas em relação a esse património. O que acontece, com a documentação contabilística é que eles guardam-na muito bem. Os relatórios dão-nos toda essa informação e toda a outra documentação de actas da constituição já não guardam tanto e perde-se toda essa informação. Era uma questão de perguntar, aqui na RBA, como é que guardam todo este espólio que contribui para a cultura e para a valorização. É preciso ter um plano que diga o que é que tem de legado. Também temos essa obrigação perante a comunidade e são fontes fundamentais indispensáveis. Provavelmente, são fontes que nos ajudam imenso mais tarde e as futuras gerações saberão aquilo que era produzido e que era valorizado, que é a cultura na acessão mais ampla do seu termo, não é?


Tem havido algumas dificuldades relacionadas com a integração dos documentos ainda existentes no Paço Episcopal. Quando prevê que se resolva esse problema?


Eu não vou dizer que há dificuldade. É evidente que toda a instituição tem direito a ter o seu património arquivístico desde que tenha condições. É um património privado. O Paço Episcopal tem direito a ter o seu arquivo e a sua documentação desde que tenha condições e ele deve tê-lo. Nem o Arquivo Distrital quer substituir todos os arquivos. Tem-se a missão de estar alerta e de salvaguardar e de sensibilizar a comunidade, que é difícil, para este património que é importante. É evidente que o Paço, tendo condições, deverá ter o seu património porque nós, se formos ver, não vale a pena entrar por aí. Interessa salvaguardar em conjunto todo o património e que ele esteja em condições. A lei diz que nós devemos ter toda a documentação, por exemplo, notarial de Miranda e eles, muitas vezes, dizem: “Não, nós queremos o nosso próprio arquivo”. Eu não entro muito nessa guerra. A nossa guerra é outra. É saber se, de facto, têm condições, se eles ficam com essa documentação, e de facto têm condições. Eu penso que a legislação também irá ser alterada. Eu não gostaria de falar muito e espero que ela, nesse aspecto, seja muito mais flexível e que consiga operacionalizar muito mais todas estas questões. Também não queremos um arquivo central onde venha tudo. Há esse papel que está a salvaguardar e que está determinado aquilo que puder vir mas, o nosso papel vai ser mais para o activo: apoiar as instituições a organizar os arquivos, a seleccionar aquilo que deve ficar, a salvaguardar a nível de arquivos que fogem muito da nossa alçada, do arquivo derivado das empresas, que é importantíssimo. Eu estou-me a lembrar daquela empresa que teve o prémio agora da EXPONOR, toda essa documentação é relevante, deve ficar. É isso que é importante. Forma a história de todos, porque a história não pode ser lacunar, só na sua acessão total é que nós podemos ter interpretações mais estruturantes e muito mais vastas, compreender muito mais e não ser manipulados e irmos de encontro à autenticidade, à veracidade que é um princípio que me norteia muito, talvez fosse do meio rural onde eu nasci. Quer por princípios que tive que me preocupam muito, também, a manipulação que existe e as pessoas não saberem se muitas vezes é verdade e, de facto, isso a nível dos arquivos é isso, é abrir todas as fontes para cada um fazer a sua leitura e o seu julgamento da história o mais coerente possível.


A Torre do Tombo tem apoiado e valorizado o trabalho desenvolvido pela entidade que dirige?


Sim, é sempre em consonância que nós desenvolvemos todos os trabalhos e actividades. Aliás, eles definem as estratégias de acordo com as estratégias do ministério da Cultura, das grandes opções do plano. Definem objectivos estratégicos que nós articulamos e operacionalizamos. Sabemos concretamente com o que estamos a trabalhar, sabemos a visão que eles têm para o património, sabemos que querem qualificar a rede de arquivos distritais e têm conseguido fazer, pena é que os recursos não estejam, às vezes, em consonância com a missão e com as competências que são muito vastas mas, é evidente que o Ministério da Cultura tem um por cento ou não chega a um por cento do orçamento do Estado e, de facto, ela própria, a Ministra, tem alguns constrangimentos para afectar e colocar esses recursos. É geralmente esse, o grande constrangimento que temos.


Disponibiliza cópias de todo os documentos relacionados com o distrito?


Todos, desde que seja comunicável. É evidente que temos alguma documentação que, por imperativos gerais, nós não podemos comunicar como, por exemplo, os testamentos. A lei assim o determina. Podemos dar, apenas, ao próprio ou então, com averbamento ou alguma questão pessoal que seja uma informação sensível, não pode ser comunicado. Tudo o resto é comunicável. Aliás, um princípio fundamental do património cultural é que, realmente, essa informação seja valorizada e divulgada o mais possível e desempenhe o seu contributo na educação, que as pessoas se tornem muito mais activas, muito mais conscientes do passado e possam contribuir muito mais na construção do futuro e para ele sejam chamadas, também. É, de facto, democratizar o acesso à cultura e disponibilizar a informação em novos suportes, digitalizando de uma forma mais criativa. Quando falamos na criatividade, quando falamos na inovação, ela deve ser aplicada numa forma transversal e, de facto, a área cultural isso, também, tem que ser feito de uma forma sistemática, provavelmente a nível político não temos conseguido tanto. Podemos questionar o que é que tem sido feito a nível de terceiro quadro comunitário e, se calhar, agora era uma boa altura de fazer o balanço e de saber, a nível de património e indústrias culturais o que é que foi criado, o que é que foi disponibilizado. Se é isso que queremos para o novo quadro comunitário. Definir já, políticas articuladas e evidentemente, com políticas culturais europeias. Tem que se pensar e actuar localmente. É boa altura para se fazer um balanço. Já se têm feito várias análises, vários diagnósticos. Ver qual é o desempenho de cada um da sua área, quer o livro, quer a biblioteca, quer as artes, que a criação, quer o património, inventariação, de certa forma, toda a cultura. Pode haver os projectos transversais. Temos Espanha que pode perfeitamente ser uma fonte transfronteiriça de novos fundos comunitários. Era importante, se calhar, fazer tudo isso e fazer esse balanço e definirmos muito mais, aquilo que queremos, não como intenções mas, depois operacionalizar, controlar, verificar de facto. Se isso foi porque fomos uma zona carenciada, temos sempre muito mais fundos mas, será que, de facto, são atribuídos? Será que contribuímos de facto? Será que, efectivamente, houve resultados? Se calhar a área cultural não é muito considerada, é mais a área económica, a área social que é importante mas, de facto, a comunidade europeia, a cultura também é fundamental porque contribui para a formação, para a educação e para o regime…é a memória de um povo.


E no sentido contrário, a Torre do Tombo envia cópias dos arquivos relacionados com o distrito?

Não. De facto há alguma documentação que eles têm, não muita. Estou-me a lembrar de alguns livros paroquiais que, na altura, foram levados por alguns investigadores. Ainda não tinham sido criados os arquivos distritais e seria de todo o interesse que regressassem para os próprios distritos. Já falamos nisso à nova direcção. Mostraram-se receptivos. Estamos a aguardar que, de facto, venham. Entregar o património a quem o produziu.


Quem tem obrigação de guardar e arquivar todas as obras relacionados com a região, publicadas em Portugal e no estrangeiro, no passado e no presente?


Digamos que essa competência é um pouco diversificada. É evidente que a lei diz que devemos ter um centro de documentação, referente a tudo o que é editado mas, não temos recursos para poder adquirir todas essas obras. As bibliotecas também. É evidente que a Câmara também poderia fazê-lo. Poderia ser criado um centro de cultura regional que não existe, de facto. Sobretudo, a cultura popular, a cultura tradicional. Fazendo uns levantamentos, porque foge um pouco da competência do Arquivo Distrital e isso era extremamente importante. Nós, neste momento, só o conseguimos porque, de facto, houve o Abade de Baçal que teve a sua visão muito mais abrangente. Não esteve a ligar ao que a legislação dizia e acabou por fazer a sua actuação muito mais transversal. O Doutor Belarmino Afonso também o fez. Tem desempenhado um papel muito importante a “Brigantia”, a revista que, provavelmente, é a única revista que publica artigos nessa área de etnografia, de antropologia, de etnologia e isso era muito importante. Se calhar, criar um centro nacional de estudos regionais, de cultura tradicional. Fazer esses levantamentos de uma forma transversal. A Assembleia Distrital fez isso porque articulava todas as Câmaras. Era importante criar um centro. Por exemplo, a casa do Abade de Baçal, podia perfeitamente ser utilizada para isso, para estudos de etnografia, promover essa cultura tradicional que tanto fez e continuar a nossa identidade.


São os estudantes os que mais procuram os serviços disponibilizados no arquivo?


Nós temos um público muito diversificado. Dizemos que temos muitos clientes. O primeiro cliente é o Estado para quem trabalhamos, é o que nos paga e temos de facto esse compromisso de salvaguardar o património do distrito. Depois temos alguns estudantes que fazem teses, temos muitos genealogistas que vêm fazer o estudo da família, temos muitos cidadãos que vêm buscar certidões e também há o compromisso da própria administração e dos direitos que eles têm sobre documentos como escrituras com mais de trinta anos, temos bastantes pedidos a nível de nacionalidade, de baptismos, de casamentos e óbito. Temos, também, o investigador que vem à procura de documentação de carácter mais variado do que faz estudos temáticos, ou sobre a arte, ou sobre as instituições, diversos temas que também podemos facultar. Por isso dizemos que é um público muito diversificado e com interesses muito diferentes.


Que importância tem a utilização das novas tecnologias de informação para uma organização como o arquivo distrital?


É fundamental. Quando nós falamos em cultura e na sua dinamização e na sua divulgação e, em última instância, na sua democratização, temos que falar em novas tecnologias, temos que falar no acesso à distância, temos que falar na digitalização, temos que falar na Internet. Todas essas tecnologias permitem-nos chegar mais longe e promover, de facto, o acesso à informação e a promoção da utilização da nossa informação. É evidente que se nós tivermos documentação digitalizada ou em CD ou em DVD é muito mais fácil a alguém que está no Porto ou noutro local, fazer as suas teses, os seus trabalhos e promover a investigação histórica a partir dessas fontes. É fundamental, até porque a disponibilização, à maior parte dos nossos utilizadores, é feita, sistematicamente, através da Internet. Já não podemos funcionar sem essas novas tecnologias. O conhecimento passa por aí. Não podemos, de forma nenhuma, ficar à margem. Aliás, tudo o que são publicações, poderíamos estar muito mais avançados, editar-se muito mais, digitalizar-se muito mais, a documentação como suporte alternativo, quer de comunicação, quer de salvaguarda. Reconheço isso mas, de facto, a falta de recursos não nos permite, já temos tido alguns projectos co-financiados. Estou a lembrar-me de documentação medieval que temos já, toda digitalizada e transcrita em CD e que possibilita esse aceso à distância, inclusivamente, disponibilizar, oferecer e promover a utilização dessas fontes. Temos um grande percurso ainda.


A revista da cultura “Brigantia” é uma referência a nível nacional e internacional. Que importância tem, para si, este projecto?


É fundamental. Primeiro, porque foi a obra, a menina dos olhos do meu tio, que sempre se dedicou imenso a esta revista. Conseguiu, pela sua credibilidade, angariar muito bons contributos, tem bons colaboradores. É uma revista que tem uma marca, uma identidade, que tem uma imagem. Temos colaboradores em todo o país e, de facto, tem levado a cultura transmontana aos mais diversos pontos, inclusivamente, a outros países, onde nós temos colaboradores e assinantes. Tem sido um papel importantíssimo para a divulgação da cultura transmontana. Espero bem que ela continue. Para mim foi um orgulho muito grande ficar como Directora desta revista. Espero bem, estar à altura desse desafio e continuar e que ela responda com a qualidade e com o bom nome que tem na comunidade cientifica e em toda a comunidade. Que não seja só para os intelectuais mas, para que qualquer um se reveja aí, na sua história e na sua identidade e aquilo que pensa em relação ao futuro, ao património cultural.


O que falta ao Arquivo Distrital, neste momento?


Faltam muitos recursos humanos. Nós temos um quadro de vinte e quatro funcionários. Neste momento, nem cinquenta por cento das nossas necessidades estão preenchidas. Além disso, a maior parte dos técnicos não são da área técnica propriamente dita, ou seja, especialistas que possam trabalhar de uma forma mais científica no arquivo mas, são mais nas áreas operacionais, nas áreas administrativas. Tenho nove vagas para técnicos superiores e técnicos profissionais de arquivo e tenho apenas um técnico profissional. De facto, aquilo que nós fazemos, deve-se a uma grande dedicação dos funcionários. Há um grande espírito de colaboração. De facto, as pessoas empenham-se. Se assim não fosse, provavelmente não teríamos condições para estar a prestar o serviço que estamos. Agradeço aqui a todos os meus funcionários que tudo têm feito para colmatar estas lacunas. Faltam, também, alguns recursos técnicos. A digitalização de novos suportes, de que já deveríamos estar equipados para poder disponibilizar e salvaguardar muito mais documentação e, depois, os recursos financeiros. Gostaríamos, ainda de termos uma maior intervenção a nível de actividades culturais. Levar muito mais o arquivo à escola. Termos um serviço educativo a funcionar. Ter mais pessoas, ser mais activos, termos um diálogo mais atractivo para a comunidade e levar, sobretudo, o arquivo a todos. É essa a minha visão de arquivo distrital. Espero um dia poder fazê-lo. Estamos a organizar a casa. Evidentemente que, enquanto não estiver tudo disponibilizado e informatizado, também, não descansarei para que todos tenham acesso, à distância. Intervir na área cultural e dinamizar muito o arquivo e aquele espaço belíssimo que tem que ter utilidade e que tem que ser mais frequentado. Isso é a minha meta. Não descanso e sou persistente e vai-se fazendo caminho mas, um dia, acho que vai ter que acontecer forçosamente, para lá do espaço belíssimo que nós temos.


É essencial levar a montanha a Maomé. O que pode ser feito para que o nordeste transmontano não se transforme numa reserva natural?


Eu acho que os diagnósticos estão feitos e as medidas estão anunciadas. Nós também não podemos estar à margem de tudo o que é determinado. Eu acho que o conhecimento é fundamental. Não é repetir aquilo que se faz por aí. As escolas vão ter que desempenhar um papel mais activo. A questão da educação, a questão da formação e dos recursos humanos, a questão da qualidade dos serviços que nós também temos. A questão da missão individual de cada um. A nível político custa a definir. Nós sabemos quais são as oportunidades, quais são os pontos fracos, fortes. Há estratégias de desenvolvimento, lembro-me das conclusões do III Congresso, toda a gente sabe disso, isso está feito mas, de facto, tem sido operacionalizado, era bom. Quais foram as medidas? Eu espero bem que haja aí uma conjugação de esforços. Eu falo mais no património cultural, porque eu sei que na área económica, social, ambiente que são os grandes lemas da estratégia em Lisboa e que aqui também têm que ser aplicados e a coesão social e a coesão territorial que não tem feito nada. Continuamos a distanciar-nos imenso de todo o país e isso não se entende, de facto. A nível cultural parece-me também que algumas medidas terão que ser tomadas sobretudo, a nível de preservação do património. Temos muitas áreas a ficarem desertificadas. Tem que ser inventariado todo o património. Já devia ter sido feito há tantos anos. Textos belíssimos do património material, do imaterial que não foi feito também. A nível das artes, também. Eu acho que muito tem sido feito pelos nossos autarcas. Sou sincera, muito pouco tem sido feito pela Administração Central. E, de facto, estamos como estamos, a nível de tecido cultural, ele foi imensamente valorizado. Eu tenho que falar de Bragança. Sinto bastante orgulho de viver em Bragança e ver o que é que se fez nesta cidade. Não é uma questão política, é olhar e vermos os equipamentos que temos mas, agora, temos que ter políticas activas de qualidade, de utilização desses espaços, de encontrar as pessoas. De serem mais participativas e criar público em Bragança, que não existe, parece uma cidade um pouco amorfa. É preciso criar aquele espírito de cidadania e a questão de educação e da formação é fundamental e da missão individual de cada um. Não vale a pena dizer o que é preciso fazer aos outros. Nós temos um contributo a dar e acho, eu que não sou política, iria muito mais por essa leitura, do que as outras que estão feitas, que a comunicação social faz e que todos nós sabemos, das oportunidades que temos e muitas mas, que são sub aproveitados, sobretudo a nível da indústria cultural, do património cultural aliado ao turismo que é importantíssimo também, das visitas, dos circuitos. Há tanto para fazer e a indústria cultural consegue fazer coisas lindíssimas, brilhantes, que se fazem noutros sítios. Temos de ser pessoas capazes. O conhecimento é fundamental, a valorização das pessoas, a sua dignificação de formação, que é preciso, quer educação quer a nível de ensino e o ensino superior aqui, também, tem desempenhado um papel fundamental e tem que o continuar a desempenhar, quer como Instituto, quer como Universidade, ele é fundamental, tem que continuar, tem solução, tem viabilidade, tem que ser feito. Tem é que haver essa comunicação e tem que criar riqueza também, tem que comunicar com a própria comunidade que envolve e tem que ser uma mais-valia, um valor para, realmente, gastar nesta região. Acredito nesta região. Acho que tem futuro e tem. Temos é que chamar muito mais a atenção para nós. Ser muito mais participativos. Quando construíram a ETAR, se nós tivéssemos dito que não a queríamos deixar fazer ali, naquele lugar… São estas questões. Nós temos um contributo e a missão tem de ser efectiva e actuante.

Que personalidade ou personalidades a marcaram mais ao longo da sua vida?
A nível local eu tenho que referir, porque me marcaram muito a nível profissional e, cada vez que olho para eles, o que eles fizeram… tenho que falar no Abade Baçal e no Dr. Belarmino Afonso, foram pessoas que me influenciaram, que me marcaram. O Dr. Belarmino, porque acompanhei a sua vivência, a sua dedicação, o amor que tinha por esta terra e aquilo a que se dedicou. O Abade de Baçal, a investigação que ele conseguiu fazer na altura, a sua postura perante os judeus, a sua grande humanidade, eram as pessoas muito autênticas que não foram manipuladas, quando tinham que falar, diziam abertamente as suas coisas e, de facto, ler aquela introdução do livro sobre os judeus, foi um fascínio. Temos que ter um fascínio por aquela personalidade. Tudo, na altura, estava contra os judeus. Realmente, os problemas que ainda teve, o seu volume é engraçado, ver como aparecem primeiro, os fidalgos e os notáveis e alguém que era do clero, acho que é preciso ser um grande homem. É uma personalidade que me fascina muito e, às vezes, cria-me alguma angústia. Porque eu digo muitas vezes: “O que é que eu faço, o que é que nós fazemos comparativamente com eles?”

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