sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Entrevista com Carlos Fernandes, comentador da Rádio Brigantia

Nasceu numa pequena aldeia do concelho de Bragança, Trás-os-Montes. Que recordações guarda da sua meninice?



Muitas. Faço aqui uma recordação Espinhosela é a freguesia. Eu nasci em Vilarinho que é uma aldeia raiana. É uma aldeia que tem uma história interessante. Se calhar, pelo facto de ser raiana e, sabe que as aldeias raianas, além da história que fazem e integram no país, fazem a história dos desígnios espanhóis. Eu não fui contrabandista mas conheço contrabandistas. Conheci carvoeiros, conheci homens que andavam durante dias inteiros a arrancar carros de toros para vender depois à firma João Manuel Pires. Penso que vendiam um carro de toros a 20 escudos. Eu sou desse tempo, lembro-me disso, tenho essas recordações, tenho outras recordações que, se calhar, alguns cidadãos, hoje, acham estranhas e, se calhar, provocatórias. Vou referi-las porque são recordações. Eu fiz a quarta classe em Vilarinho com uma professora, a D. Maria que acho que nunca mais esqueço, tinha seis anos e fiz as restantes classes da primária com a minha mãe que era regente escolar e fiz a segunda classe em Formil. Vínhamos de Formil para Bragança a pé. Num sábado, por volta das dez e meia, começou a nevar em Gostei e quando chegamos à ponte do Castro já não se passava. Eu tinha oito anos, o meu irmão tinha seis e vínhamos a pé com a senhora professora. Fiz a terceira classe em Terroso e de Vilarinho a Terroso serão três quilómetros só que, metade é a subir e outra metade é a descer e íamos todos os dias a pé de Vilarinho para Terroso. Fiz a quarta classe na Mofreita e todas as semanas íamos a cavalo numa burra para a Mofreita e depois vínhamos ao sábado eu e os meus irmãos e a minha mãe, portanto, isto transferido para os tempos actuais, peço desculpa, mas eu rio-me com algumas das coisas que ouço. Um dia, num Inverno chuvoso, na altura da construção da estrada de Espinhosela a ligar a estrada nacional, o meu pai, que Deus tenha, fazia-nos um pontão de madeira porque o pontão que existia passava a água por cima. Muitas vezes passávamos de manhã o pontão e à tarde já não podíamos passar porque já ia com água e o meu pai fazia-nos um pontão e um dia passamos no pontão de manhã e à tarde por volta das três, três e meia, já não havia pontão, então eu, a minha mãe e o meu irmão subimos, andamos talvez quinhentos metros e foram uns senhores que andavam a por as manilhas na travessia da estrada de Terroso onde junta com a estrada de Vilarinho e foram os senhores que andavam aí que nos passaram porque aquilo ia tudo alagado de água. Os garotos passam-se bem porque pesamos pouco mas a minha mãe, já na altura era bem nutrida e foi um problema para a passarem. São estas recordações todas que eu tenho.

De que forma é que nascer nesta região nesta localidade o marcou?

Eu em 1976, tinha 21 anos entrei para a Função Pública, para o Ministério do Comercio Interno, para o gabinete do Doutor Magalhães Mota e estive em Lisboa até 1983. Em 1983 por causa da orgânica do governo, eu estava na Direcção Regional de Agricultura, o Ministério do Comércio foi sendo integrado, ora num ministério, ora noutro. Nunca sabíamos bem o que os Governos pensavam. Eu estava na Direcção Regional de Agricultura e houve mais uma reorganização do governo e tive que regressar a Lisboa. Entretanto, toma posse o governo do Bloco Central, se não estou em erro, era Ministro do Comércio, o Dr. Álvaro Barreto e eu, felizmente, sendo um lutador antifascista, como na altura se usava dizer, mas fui sempre um homem que esteve perto do poder e um dia eu falei com o Dr. Álvaro Barreto e disse: “Ó senhor Doutor (eu na altura estava casado e tinha um filho) precisava de ir para Bragança e vocês nunca mais se entendem, nunca mais se decidem. Vem um senhor, quer uma lei orgânica, vem outro ministro, quer outra lei orgânica, de maneira que eu precisava de ir para Bragança, definitivamente.” E o homem disse: “Vê lá, resolve lá para onde queres ir e depois diz-me.” “Se calhar, para a saúde”.Porque eu, na altura, achava que a saúde era o Ministério mais estável em estrutura orgânica e ele liga e diz: “Tenho aqui um problema com um funcionário. Ele é de Bragança, tem a família em Bragança, esteve a dar alguns argumentos para ir para Bragança. A ver se, pelos dois, pomos o homem em Bragança.” Isto deve ter sido em Novembro de 85 e no dia 9 de Janeiro de 86 tomei posse na ARS de Bragança, era presidente da ARS o nosso amigo Aires Ferreira que é hoje Presidente da Câmara de Moncorvo.


Marcou-me porquê eu fui para Lisboa na melhor fase do homem que é a fase dos vinte. Nós tínhamos saído de uma revolução. Ninguém sabia muito bem o que era na altura, nem eu, também, mas sabia que gostava. Acho que, talvez, tenha sido aí que apanhei o vício na política. Sou um viciado na política, viciei-me na política na melhor fase do homem que são os vinte, vinte e um anos. Podia ter continuado a estudar, porque muitos continuaram a estudar. Não sei se são doutores ou não. Alguns são mas, o vício da política e a ânsia de querer viver coisas novas, se calhar, um bocadinho de vingança com o passado, fez com que eu aprendesse muito em Lisboa. Eu posso dizer que a partir das cinco e meia eu ia para a Assembleia da República, para as galerias. Às vezes, era o único assistente das galerias e assistia ali a debates fantásticos que nunca mais esqueço. Políticos de craveira que este país teve e que as pessoas não conhecem, não se recordam mas que, na altura, eram momentos difíceis para a democracia que, embora estivesse consolidada, havia ali ainda alguns problemas e foi por essa gente que eu reforcei o vício da política e o gosto pela política mas, houve uma altura em que me cansei. Posso dizer que destes anos todos que estive em Lisboa, nunca tive passe de transportes públicos. Eu conheço Lisboa de há trinta anos, rua por rua. Eu passeava a pé em Lisboa, não tinha passe de transportes públicos, mas gastava um par de sapatos por mês de andar a pé e, por isso, houve uma altura que me cansei de Lisboa, não que eu passasse muito tempo em transportes. A mim arrepiava-me. Tinha família na margem sul. A mim arrepiava-me cada vez que tinha que ir ao Feijó ou à Cova da Piedade. Punham-se-me os cabelos em pé. Não entendia como é que aquela gente podia fazer aquilo todos os dias, se a mim me custava fazer uma vez por semana. Foi, também essa, se calhar, a principal razão de me ter convencido que tinha que voltar para a minha terra.

Como era Bragança nos seus tempos de juventude?
Era óptima, maravilha. Eu não sou a pessoa mais indicada para falar em nome da juventude desse tempo porque eu comecei a trabalhar… fiz catorze anos em Abril e comecei a trabalhar em Outubro, com catorze anos, a ganhar duzentos escudos por mês.

Já era um bom ordenado.
Era. Mas o patrão dizia que eu tinha que pagar o dobro por causa do prejuízo que lhe dava. Na altura era complicado. Havia o grupo da juventude que estudava e havia o grupo da juventude que trabalhava. Eu não pude estudar de dia. Era uma cidade mexida, muito mexida. Uma cidade alegre, porque todas as casas comerciais, havia muitas casas comerciais, quase em todas as ruas havia casas comerciais e em quase todas as ruas havia grandes casas comerciais e hoje já não existe nenhuma, infelizmente, e havia depois os pequenos comércios e todas estas casas comerciais tinham gente. Eu fui marçano. Ao contrário do que muita gente possa pensar, eu fui marçano, eu fui empregado de escritório. Sou funcionário público, com muita honra e lavrador no tempo disponível. É uma cidade que eu recordo com saudade. A minha geração recorda com saudade esses tempos da cidade de Bragança. Havia respeito, embora houvesse muita traganice no bom sentido. Havia brincadeiras. As pessoas brincavam, mesmo as pessoas mais velhas, brincavam. O Marcolino lembra-se de as pessoas contarem as histórias dos Casões, as histórias do Cónego Ruivo, do César barbeiro. Eram brincadeiras feitas por homens, mas com humor. Não havia teatro em Bragança, mas eu acho que havia teatro de rua. Em qualquer sitio se arranjava uma brincadeira e, depois, havia os mais novos… nós queríamos aprender a fazer as traganices que víamos fazer aos mais velhos e os empregados do comércio faziam as brincadeiras com aquilo que tinham, que eram os carros, uns de ferro outros com rodas de borracha, já mais modernos, que utilizavam as casas comercias para transportar o fardo de bacalhau, o saco de arroz ou uma botija de gás. Eu levei muitas botijas de gás a casas desta cidade e vou contar aqui um episódio que demonstra o contrário do que as pessoas pensam do coronel Salvador Teixeira. O Senhor Coronel gastava gás do Senhor Manuel Pires e telefonava todos os dias às duas da tarde e tinha uma forma de falar interessante que eu nunca mais esqueci. Quem atendia o telefone era o Manuel Miranda, que Deus tenha e, às vezes, era eu. Ele ao telefone dizia isto: “É do Senhor Manuel Pires?” “É sim senhor”. “Daqui fala o Senhor Coronel Salvador Teixeira. Queria duas garrafas de gás.” E como era para o Senhor Coronel íamos logo. Era eu porque já tinha algum físico e, então, ia buscar duas garrafas de gás cá em cima ao pé das bombas de gasolina, nesse carrinho com as rodas de borracha. Lá ia eu à Rua Direita, a casa do Senhor Coronel, levar as duas garrafas. Azar o meu é que eram, sempre, no segundo andar. Algumas ficavam no rés-do-chão mas ele queria, ele fazia questão que as pusesse no segundo andar e quando punha as duas garrafas no segundo andar, ele dava-me cinco coroas de gorjeta. O Senhor Coronel Salvador Teixeira dava gorjeta ao empregado que levava lá duas garrafas de gás em 1970.

E cinco coroas…
Era dinheiro na altura.

Provocação…O que sente em relação à Monarquia.
Não é provocação. Eu ontem estava a tomar café e alguém me manda uma mensagem a dizer “Viva a República”. Eu não respondo a provocações. Ninguém me provoca a mim por causa da educação que eu tive, por causa da formação moral que eu tive. Eu fui seminarista.

Passou por todo lado…

Passei por todo o lado numa fase complicada. O ano em que fiz a quarta classe, fiz a quarta classe, a admissão à escola, a admissão ao seminário, passei por isto tudo. Quando, há três anos atrás, eu li que na Universidade da Beira Interior para o curso de engenharia civil entraram pessoas com cinco e meio. É uma das recordações tristes que eu guardo da República mas, da Monarquia, contei na semana passada um episódio… Nem é motivo para ter os ideais que tenho, nada disso… A seguir à implantação da República, como a seguir ao 25 de Abril, houve aquelas fases complicadas dos “segura-te e não caias” porque a coisa era complicada e, nesta região, já não há muita gente que se lembre disso, mas há gente que se lembra. Andavam por aí uns indivíduos tipo, bufos da PIDE, a perguntar às pessoas “quem vive?”, “Se vivia o Rei, se vivia a República?” e no Parâmio havia um homem que, naturalmente, respondeu:“Viva o rei.” E, naquele preciso momento, foi fuzilado no Parâmio. Eu tenho uma tia que, se Deus deixar, fará 99 anos no próximo mês de Novembro e, nessa época, teria ela 5, 6 anos e andava com os cordeiros e alguém dessa escumalha… eu vou chamar-lhe escumalha para não lhe chamar outro nome, passou pela criança e perguntou-lhe“Quem vive?” E essa mulher que ainda hoje é viva e tem 99 anos respondeu, na altura criança com 5, 6 anos, “Viva quem o senhor quiser.”
Eu acho que um regime que tem medo de ser referendado, um regime que se serve de uma constituição para proibir qualquer outro tipo de forma de governo, acho que não é um regime sério, não é um regime democrático. Aliás, penso que se a República foi instaurada em Portugal para acabar com a bagunçada do fim da Monarquia, a bagunçada da República foi muito superior à bagunçada do fim da Monarquia. Até porque, nunca na Monarquia, houve um ditador tanto tempo no poder. O primeiro resultado da República e da bagunçada da República foi o 28 de Maio. O 28 de Maio deu naquilo que toda a gente sabe. Não vamos dizer apenas, que a culpa foi do Salazar. Vamos dizer aquilo que devemos dizer. A bagunçada da Primeira República, também, tem a responsabilidade dos militares o resultado dessa bagunçada do 28 de Maio é da responsabilidade dos militares e a manutenção no poder do Dr. Oliveira Salazar é da responsabilidade dos militares. Não venham dizer que é o contrário, que era o povo que queria aquele senhor ali. Não, os militares, para o bem ou para o mal, são responsáveis por tudo de bem e de mal que aconteceu no país. Excepto agora. Agora é que já ninguém passa cartão aos militares mas, até ao 25 de Abril, não eram só os democratas que tinham razão. A culpa foi dos republicanos que não souberam comportar-se e veja qual é o problema. Hoje as pessoas dizem assim: “A questão resolvia-se com um referendo. Perguntava-se ao povo se quer uma forma monárquica de governo ou se quer uma forma republicana“. Não adianta fazer esse referendo, não tem lógica. A minha geração já foi educada com determinada filosofia, a geração anterior à minha, muito mais e a geração anterior a essa muito mais. Neste país a república obteve-se pela força das armas como a democracia que se impôs pela força das armas no 25 de Abril. Hoje ninguém discute a democracia, ninguém põe em causa a democracia. Ninguém quer recuar ao 24 de Abril, porque todos nós sabemos o que passámos, o que passaram os nossos pais e os nossos avós e os nossos vizinhos. Agora, ninguém sabe o que é que passaram os nossos antepassados a seguir a 1910, e aquilo que se sabe é muito pouco. A história só vai àquilo que convém à história e ao país. Não vai ao resto. Na história não aparece este episódio do Parâmio, nem aparece o episódio desta senhora que ainda é viva, em Vilarinho. Hoje não faz sentido fazer um referendo a perguntar ao povo se quer um rei ou se quer a república mas, nas últimas sondagens do“Expresso”, em que um quarto da população portuguesa, não se importava de ter como chefe do Estado o rei de Espanha. Isto os politólogos, os sociólogos, os psicólogos deviam preocupar-se em estudar isto. Porquê razão é que 25% da população não se importava de ter, como chefe de Estado, o rei de Espanha. Tenho legitimidade para interpretar que estes 25%. Hoje, se calhar, gostaria de ter um sistema, um governo monárquico em Portugal. Acho que ficava mais barata a Casa Real do que a República.

Fale-nos agora da sua experiência como Presidente da Comissão Antinuclear da Assembleia Municipal de Bragança.

Um dia estava a almoçar em casa e no noticiário das treze horas da RTP1, estava a ser entrevistado o Alcalde de Fermoselle e a forma como aquele homem estava a falar, chocou-me tanto, que acho que nem acabei de almoçar. Naquele dia havia Assembleia Municipal em Bragança e eu depois daquela entrevista a D. Manuel Clemente, ou assim qualquer coisa, eu cheguei à Assembleia Municipal, acho que se tinha discutido isso da parte da manhã na Assembleia Municipal e apresentei uma proposta para que se criasse uma Comissão Antinuclear na Assembleia Municipal em Bragança. De certa forma, o facto de ser um órgão político a fazer mexer todas as pessoas e todas as autarquias do distrito de Bragança. Perguntam: “E Bragança porquê?” Porque era a capital de distrito, tinha mais responsabilidades do que tinham os outros concelhos e, portanto, constituiu-se na altura, essa comissão. Fizeram o favor de me entalar logo elegendo-me presidente dessa comissão. Um dos membros era o nosso amigo, o nosso companheiro, o saudoso, Dr. Subtil em representação do CDS e era complicado para mim ser presidente duma comissão onde estava o Dr. Subtil. É que o Dr. Subtil não era um homem qualquer e eu sentia-me mal e exigiu de mim um esforço que, de outra forma, eu não faria. Se fosse ao contrário, se fosse ele o presidente e eu o membro, se calhar, não teria feito o esforço que fiz. E então decidimos contactar todas as câmaras municipais do distrito de Bragança. Tivemos plena abertura do presidente da câmara, na altura o Dr. Luís Mina, pusemos o nosso ponto de vista, dissemos aquilo que queríamos e a primeira câmara que visitamos foi a de Miranda do Douro. Na altura não conhecia pessoalmente o Dr. Júlio Meirinhos. Tinha uma péssima impressão dele e ele de mim. Nem sei se nos falávamos e eu entro na Câmara Municipal de Miranda do Douro, qual não é o meu espanto quando nós somos levados para o salão nobre e o Júlio Meirinhos recebe-nos com a capa de honras, e aquele gesto tocou-me. No fim da reunião quando saímos, saímos a tratar-nos por tu. Vou contar apenas este exemplo e outro oposto a este. Era, na altura, Presidente da Câmara Municipal de Mogadouro, o Armando Salomé. Não sei porquê o Presidente da Câmara tinha-se demitido ou suspendido o mandato e Armando Salomé tinha assumido a presidência da Câmara. Eu conhecia-o desde o 25 de Abril, era do meu partido, portanto, conhecíamo-nos muito bem. Entro no gabinete do Sr. Presidente da Câmara de Mogadouro a tratá-lo por tu e saio com esta resposta: “Meu caro senhor, para mim, o Douro começa e acaba no meu concelho.” É evidente que nunca mais pus os pés na C.M. de Mogadouro, nunca mais contactei o Presidente de Mogadouro e, a partir daqui, eu e o Júlio Meirinhos, conseguimos, passados 30 dias, reunir em Miranda, autarcas de Espanha e de Portugal. Éramos para aí 400, entre os quais o Sr. Presidente da Câmara do Porto, na altura, uma figura nacional muito importante o Dr. Fernando Gomes. Todos os autarcas servidos ou banhados pelo Douro, desde a nascente até à Foz, estiveram em Miranda do Douro, todos. O segundo encontro ficou marcado para Salamanca para a Universidade e é aqui, nesta reunião de Miranda do Douro, que nasce a Associação dos Municípios Ribeirinhos do Douro. É aqui, em Miranda do Douro, embora só em 91 ou 92 se tenha oficializado a criação na Câmara Municipal do Porto. O segundo encontro na Universidade de Salamanca, recebidos pelo Magnifico Reitor da Universidade de Salamanca, onde eu tinha que fazer um discurso perante o Senhor Reitor e outras individualidades mas, a mim, não me preocupavam as outras individualidades. A mim só me preocupava uma pessoa: Fernando Subtil. Nós conhecíamo-nos, eu tinha vivido na mesma rua onde ele viveu desde garotos e, para aí uma hora antes da cerimónia oficial, eu não tinha o discurso feito e o Fernando Subtil diz-me: “Ó Carlos, vais para além para aquela mesa”. Estávamos numa pastelaria na zona da Universidade em Salamanca. “Vais ali para aquela mesa. Ninguém te incomoda. Vais fazer o discurso porque tu ainda não tens discurso.” E eu fui e fiz um discurso e, no final, o Dr. Subtil veio dar-me os parabéns. É uma recordação interessante e há aqui um episódio, também, caricato: a Assembleia Municipal, no mandato 89/93 era, maioritariamente PSD. A Câmara era, maioritariamente, socialista e, quando foi criada esta comissão, naturalmente, que o bom relacionamento que havia, quer com o Presidente da Assembleia Municipal, Dr. Adão Silva, quer com o Presidente da Câmara, Dr. Luís Mina, facilitava as coisas e eu nunca tomei nenhuma atitude, nem tomei nenhuma iniciativa, sem que antes desse conhecimento ao Presidente da Câmara Dr. Luís Mina. O Dr. Luís Mina nunca foi a nenhuma acção oficial ou não, patrocinada pela comissão antinuclear. Nunca. Delegava sempre a sua presença em mim e, quando se convoca uma reunião de todos os municípios ribeirinhos do Douro, para oficializar a criação da Associação dos Municípios Ribeirinhos do Douro na Câmara do Porto, falei com o Presidente da Câmara e disse-lhe que tínhamos que ir ao Porto. Ele disse-me que sim, que íamos ao Porto e, no dia seguinte, penso que às oito da manhã, tínhamos combinado encontrarmo-nos na câmara às 8 da manhã, diz-me o motorista que era o senhor Machado: “Senhor Carlos Fernandes, o Senhor Presidente da Câmara não vai ao Porto. Deixou-lhe aqui um papel.” E então, dizia o papel: “Ó Carlos, desculpa lá, mas eu não tenho jeito para isto. Vais tu ao Porto a representares-me. “Eu telefonei ao Júlio Meirinhos e disse: “Ó pá, agora estou entalado com isto. Como é que faço?” “Então qual é o problema? Se não queres ir com o motorista eu passo por aí e levo-te.” “Então é melhor.” Eu não me sentia bem em obrigar o motorista da câmara a ir daqui ao Porto a levar-me quando eu podia ir com o Presidente da Câmara de Miranda. Chegados à Câmara do Porto, a determinada altura, diz o Dr. Fernando Gomes para o Júlio Meirinhos (parece que são amigos pessoais): “Eh, pá! Há uma coisa que eu não entendo. A Câmara de Bragança é socialista e vai a uma reunião um gajo do PSD? Explica lá o que é que se passa aqui.” São estas as recordações engraçadas, complicadas outras, que eu tenho dessa fase que foi importante da minha vida, que foi importante e foi complicada mas eu assumo tudo. Assumo o bom e assumo o mau,

Fale-nos agora da sua actividade enquanto membro das Comissões de baldios.

Não me fale nisso! O norte do distrito de Bragança, nomeadamente, o norte do concelho de Vinhais e Bragança, têm grandes áreas de terrenos comunitários, eu vou-lhe chamar comunitários, se calhar, nalguns momentos vou-lhe chamar comunitários, noutros baldios porque houve aqui alguma confusão durante uns tempos por conveniência do Estado. Só há baldios em zonas em que a propriedade está bem dividida, onde está mal dividida não há baldios. Não há baldios no Douro, não há baldios no sul do distrito, embora a serra de Reboredo seja baldio mas, as áreas destes terrenos comunitários são reduzidas. Na Terra Fria, desde há muitos anos, porque a propriedade está bem dividida, não quer dizer que seja justamente dividida, está equilibradamente dividida, não há latifundiários, mas há latifundiários no sul do distrito, no Douro. Não há quintas agrícolas na Terra Fria, excepto a Quinta de Adufe que já não tem esse estatuto mas, há quintas agrícolas no Douro, em Freixo, algumas em Mogadouro e em Miranda do Douro. Na Terra Fria não há porquê? Há gente rica que tem muito e havia gente pobre que tinha pouco. No sul do distrito há gente rica que tem muito e havia gente pobre que não tinha nada e que trabalhava para esta gente rica. Na Terra Fria a divisão não é esta e houve necessidade de, àqueles que não tinham muito ou àqueles que tinham pouco ou nada, de lhes garantir algumas condições de sobrevivência e, por isso, é que foram criadas determinadas zonas por onde passava toda a gente, o rico e o pobre, por exemplo, as canadas que eram locais por onde podiam passar os gados, as vacas, todos os animais dos ricos e dos pobres e onde podiam comer os animais dos pobres porque não tinham lameiros.
Os baldios têm esta filosofia: permitir que toda a gente se sirva de determinadas áreas para a sua sobrevivência. Na Terra Fria, como no resto do país, no distrito de Bragança haverá, reconhecidos como tal, cerca de 50 mil hectares de baldios. Na Terra Fria, em Bragança, haverá cerca de 30 mil, mas houve aldeias que foram muito martirizadas pelo Estado, pela ditadura. O Estado roubou a essas aldeias os baldios onde plantou pinhal e hoje os pinhais que aí se vêem plantados e cortados, alguns estão a ser cortados, foi o Estado, foi o Dr. Salazar, foi a ditadura que os plantou. Tirou os baldios às populações para fazer o Programa de Florestação da década de cinquenta e que hoje a democracia está a usufruir porque não há ninguém, nenhuma aldeia, nenhum membro de uma comissão de baldios que tenha vendido pinhos plantados pela democracia. É uma realidade interessante e eu tenho desafiado alguns jornalistas a fazerem trabalhos de investigação sobre isso. Sabe o que é uma criança de cinco anos estar com a mãe num lameiro com as vacas e aparecer lá uma senhora que trabalhava para essa pessoa e dizer: “Ó D. Alice, venha depressa para casa porque o Senhor Manuel foi preso. ”Sabe o que é ouvir isto, uma criança de cinco anos, e chegar à aldeia, a Vilarinho e ver apenas as mulheres e os garotos porque os homens tinham sido todos presos pela GNR? Essa criança de cinco anos sou eu e é este sentimento de revolta, não é de vingança porque, quem é bem formado não se quer vingar, mas eu tive o meu pai preso por causa dos baldios, por causa da repressão da ditadura. É isto que me traz aqui, a lutar por isto.

As nossas aldeias estão cada vez mais desertas e abandonadas. O que podemos fazer para alterar o estado das coisas?

Negociar rapidamente com o senhor Patrick Monteiro de Barros para que instale no distrito de Bragança a central nuclear.

É uma solução…
É a única. Se em 30 anos a Democracia deixou chegar esta região ao estado a que a deixou chegar, vamos experimentar agora o resto. Temos o direito de experimentar. Se temos o dever de aceitar que um senhor venha cá dizer que vamos ter auto-estrada até 2012, eu tenho o direito de exigir. Negoceiem já com este senhor que quer instalar em Mogadouro ou no distrito de Bragança uma central nuclear que vai criar não sei quantos postos de trabalho! O que é que nos deu a Democracia? A estrada de Vilarinho é da ditadura. A estrada do Penacal é da ditadura. A estrada de Babe é da ditadura. A estrada de Milhão é da ditadura, a não ser o tapete que lhe puseram há meia dúzia de anos. O que é que trouxe a Democracia a esta região? Que indústrias trouxe? Que investimentos públicos trouxe? Ainda não acabou o IP4. O IP foi começado no tempo do Dr. Sá Carneiro. O Dr. Sá Carneiro morreu há 26 anos. Então, em 26 anos não acabam uma estrada de 200 quilómetros? Andamos aqui a fazer o quê? Aliás, se nós analisarmos o comportamento dos governos, que o Estado tem assumido em relação a Trás-os-Montes, nós apenas podemos concluir que o objectivo do Estado é despovoar esta região para instalar aqui estruturas que o Estado não queira por noutra região qualquer, como centrais nucleares. Qual é o problema? Não há problema nenhum.
Estamos nós com tantos pruridos por causa da central nuclear do senhor Patrick Monteiro de Barros e o Estado português, a EDP, está a importar a energia à Espanha, à noite, de origem nuclear. Nós queremos produzir energia eólica. É aqui que há capacidade para produção de energia eólica. A área de Montesinho tem capacidade para produzir 280 megawats de energia eléctrica e não podem ser instalados porque não há um estupor de um ponto de ligação na rede eléctrica nacional. Então, a Democracia, em 30 anos, não foi capaz de criar aqui uma estrutura própria para nós podermos rentabilizarmos aquilo que temos? Chego à Teixeira e têm lá não sei quantos parques eólicos e a ligação dessa energia eólica é logo ali ao lado, mas então isto é o quê?

Continuando, agora, com a nossa ruralidade. Devemos proteger e preservar a nossa arquitectura rural como por exemplo os pombais e os moinhos?
Por quem? Os donos dos pombais têm reformas pequenas não dão para os medicamentos quanto mais para comprar telhas e cimentos para os pombais. Os agricultores, hoje não há agricultores, quem se dedica à agricultura? Só quem seja tonto como eu. Quem é que tem obrigação de apoiar essa construção? As câmaras municipais? Possivelmente. Nós chegamos ao Alentejo e vemos que todas as casas são brancas e azuis. Quando aqui há dez anos atrás passava para Vilarinho, em Carragosa, em pleno Parque Naturalde Montesinho, que eu não sei o que é isso, e vejo uma casa amarela… das duas, uma: ou eu estou tonto, ou isto é a república das bananas.
Então, nós temos que preservar a construção. Mas que construção? De Rio de Onor e da Moimenta? É só isto o Parque natural de Montezinho? No tempo do arquitecto Carlos Guerra, era Rio de Onor. Depois passou a ser a Moimenta e nós temos aqui ao lado a aldeia mais típica do parque natural de Montesinho, que devia ser a menina dos olhos do Parque, quer pela sua localização, quer até pela característica da construção das casas, que é Soutelo e estão casas a cair. É a aldeia do Parque onde a construção em granito tem maior incidência e chegamos a Soutelo e Soutelo está uma vergonha mas, se calhar, no cruzamento, está lá uma placa a dizer “Aldeia Preservada.” Não brinquem!

Tem-se verificado um maior incremento na recuperação de casas tradicionais nas nossas aldeias com o intuito de aproveitar para turismo rural. Será esse o caminho a seguir?

Eu acho que não, sabe porquê? Porque o turismo rural só teria sentido se isto fosse uma reserva de índios. Então vinham cá os senhores armados em inteligentes, muito bem vestidos, a passar umas noitadas e a encherem-se de rir connosco.

Fala-se de um projecto turístico de altíssima qualidade na aldeia de Rebordainhos e que será mais uma valia inquestionável para a região. No entanto, a sua concretização tem sido adiada devido a problemas burocráticos. Quer comentar?

Se esse projecto estivesse no Ribatejo ou no Alto Alentejo, se estivesse ao lado dos sobreiros da quinta não sei quê do senhor Luís Nobre Guedes e do senhor Espírito Santo, já tinha sido aprovado mesmo sendo uma entidade privada o responsável pela construção… isto aqui tem que ser à força, uma reserva de índios. Não pode ser outra coisa.


Não é só um problema de interioridade?

Claro! Aqui não há votos. Só há quatro deputados e depois dos quatro deputados, três vendem-se a Lisboa, para não dizer os quatro. Nós queremos o quê? Deixem-se de pantominices.

O arquitecto Ortega, a quem tivemos o prazer de entrevistar, diz que: “Uma aldeia típica, é uma aldeia cheia de gente, com pessoas, com animais, culturas…”.Concorda com esta ideia?


Pois eu concordo com o senhor arquitecto Ortega, mas permita-me pedir ao arquitecto Ortega que diga isso ao senhor Ministro das Obras Públicas. É que o senhor Ministro das Obras Públicas diz que o país não passa por mantermos aldeias com o toque dos sinos e não sei. Quando um Ministro da República diz isso, o que é que adianta ao arquitecto Ortega dizer o que disse? Não adianta nada.


Antigamente, desbravavam-se montes para neles semear trigo e centeio. Hoje quase não se cultivam e as terras estão ao abandono. A que se deve esta situação?

Também, para ser provocador, se calhar, à integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia em 1986. Estamos a viver alegremente à custa dos alemães. Pagam-nos para não trabalhar. O Estado espanhol é um Estado que dá lucro e que há trinta anos os carabineiros andavam de sapatilhas e os nossos guardas-fiscais já calçavam botas e o ano passado o Estado espanhol deu lucro. O nosso é pago para não semear e, meu caro, quando é assim não vale a pena, não vamos longe.


Mas podemos fazer alguma coisa para que a nossa agricultura tradicional não se perca por completo?

Podemos. Só devemos é fazer aquilo que nos vai dando dinheiro. O resto não vale a pena. Estarmos aqui a encher os ouvidos às pessoas com a carne mirandesa… é preciso rentabilizar a carne mirandesa. É preciso apostar na carne mirandesa e depois vemos os vitelos espanhóis a passar, à noite, a fronteira de lá para cá…


Para terminar. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Vou começar pelo que me marcou mais. O Papa João Paulo II e não digo mais nada. Só digo isso. O Dr. Sá Carneiro, pela sua humildade sendo um estadista e sendo considerado um dos maiores estadistas portugueses do século XX. Marcou-me pela sua humildade. O Professor Mota Pinto com quem tive o privilégio de trabalhar muito tempo. Um homem excepcional. O Dr. Almeida Santos pela sua inteligência, pelo seu passado, pela forma como se posiciona na política. O Dr. Álvaro Cunhal e o Dr. Amaro da Costa, pessoas que eu conheci pessoalmente, com muita honra. Portanto, marcaram-me porque a ideia que eu tinha do que via na televisão e daquilo que ouvia nas entrevistas da rádio fazia-me pensar que eram pessoas distantes, que eram pessoas que estavam acima de toda a gente, me parecia a mim que, também, estariam acima da convivência normal com os cidadãos. Nada disso, antes pelo contrário. Conheci pessoalmente o Dr. Álvaro Cunhal na Escola Industrial de Bragança. Fiz questão de o conhecer pessoalmente e de ir lá cumprimentá-lo e tive uma ideia completamente diferente daquela que tinha da televisão. Foram estes os homens que me marcaram muito ao longo da minha vida mas, o que me marcou mais, foi o Papa João Paulo II.

P. S. Esta entrevista foi realizada em 2006.

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