Nasceu em Peredo de Bemposta, Mogadouro. Fale-nos da sua infância.
A minha infância… Acontece que ali, era uma aldeia onde faltava tudo, como em quase todas. Uma coisa mais engraçada é que não havia telefone, não havia luz. Ainda me lembro disso tudo. Eu nasci em 1950. Ajudei os meus pais, estudei até a quarta classe nessa altura. A professora disse que eu devia continuar a estudar mas, não havia estradas, não havia carros, não havia dinheiro, o meu pai disse que não tinha condições. Depois, aos catorze anos, começou a barragem de Bemposta e, quando tinha catorze anos, um amigo que lá tínhamos chamou-me para, convidou-me a ver se eu queria ir trabalhar para a barragem do Carrapatelo.
Começou a trabalhar muito cedo. Como é que aos catorze anos foi parar à Barragem do Carrapatelo.
Fui eu, como foram muitos. Nessa altura faltava tudo. Agora dizem que até aos dezasseis ou dezoito não podem trabalhar, não os deixam trabalhar. Naquela altura quase começávamos a trabalhar na barriga da mãe. Eram outros tempos.
Depois de ter sido ferramenteiro e ajudante de ferreiro que rumo seguiu a sua vida?
O rumo de ir para a aldeia outra vez. Andei na aldeia. Essa mesma pessoa que me levou para a barragem do Carrapatelo, ele e o filho, eu fui com o filho e com o pai. O pai tinha estado na Marinha e perguntou-me se eu queria ir para a Marinha, eu tinha dezassete anos:”E agora como é que eu vou?” - “Podes ir voluntário.” E eu fui para a Marinha.
Foi então parar à Marinha, depois veio a Força Aérea. Fale-nos dessa experiência. Da sua experiência nas Forças Armadas.
Gostei da Marinha. Logo no princípio fiz a recruta como normalmente toda a gente faz. Vim para tirar o curso de Condutor de Máquinas. Aconteceu uma coisa: O primeiro artesanato que me mandaram fazer, a todos, não foi só a mim. Arranjaram uma chapa com catorze centímetros, uma barra de ferro com catorze centímetros de comprimento, onde eu tinha que abrir um buraco na chapa quadrada de catorze milímetros e, na barra redonda, tinha que enfiar certinho por ali. Desenrasquei-me em relação aos outros. Pelo menos tirei o segundo lugar disso tudo. E atenção, deram-me um paquímetro para lhe tirar a medida e eu tirei. Lá me desenrasquei.
Essa foi uma das experiências que teve nas Forças Armadas. Conte-nos outras experiências de relevância que tenha passado por lá.
Depois, foi a coisa de um dia chegaram ao pé de mim e disseram-me que eu tinha que ser transferido para a Polícia Marítima e tinha que andar pela Costa Portuguesa e eu pertencia ao agrupamento numero três de draga-minas, ainda me lembra de virem para Portugal os submarinos, os tais que estão para ir para a sepultura, estava lá eu quando chegaram e eu era das pessoas que… havia uma pontezinha em cimento e eu tinha que ir pela ponte para entrar no navio. Quando estive lá, foi à volta de Março, eu era das pessoas que enjoava só por passar na ponte de cimento, como é que eu não enjoaria no navio? Não quis ir e arranjei outra coisa, arranjei para a Força Aérea para a Base Aérea do Montijo em que só estávamos… éramos uma dúzia que fazíamos transporte de pessoal da Força Aérea para o Terreiro do Paço até à Base Aérea nº 6 do Montijo e tratávamos das centrais térmicas e era o único serviço que fazíamos lá.
Foi a forma de não enjoar…
Estive lá trinta e sete meses e tive que me vir embora, embora tivesse lá grandes amigos. Tinha pessoas que, quando precisavam de alguma coisa, de serralharia ou chaves ou qualquer coisa vinham ter comigo. Era de responsabilidade, era o braço direito do chefe.
Veio para Bragança para trabalhar e durante trinta anos foi funcionário no hospital. Fale-nos dessa fase da sua vida?
Olhe, eu quando vim para Bragança, não vinha para trabalhar. Nem sabia que havia o hospital. Eu tinha vindo em Julho porque eu trabalhei, desde que sai da marinha, em Alverca nos estaleiros e vim para a aldeia e lá tive o cuidado de me inscrever na Lisnave e diversas empresas e andei na aldeia. Fiz o serviço na aldeia como toda a gente, andei na cortiça, andei na vindima, andei na apanha da azeitona. Um dia apareceu-me lá uma carta, inscrevi-me no Serviço Nacional de Emprego. Lá fui para Bragança e perguntei onde era e lá me disseram onde e disseram-me para falar com o Abreu. Eu não o conhecia, não conhecia ninguém. Fui comer e ainda me lembro onde fui almoçar nesse dia. A seguir, lá fui falar com o Abreu. Diz-me ele, que era uma carta para ir para França e exigiam uma pessoa com um bocado de cabedal, não deve ser para escrever à máquina mas, trabalhar que trabalhem eles. Nunca tive medo de trabalhar mas, paciência… Mostrei-lhe a minha carteira profissional: -“É pá tenho aqui um emprego para ti.” Levou-me lá em cima ao Hospital, ao doutor João Rodrigues era o primeiro Director do Hospital e ele: - “Ficas aqui.” E eu pronto. Fiquei. Só que não trazia nada, nem roupa, nem nada. Tive que ir à aldeia buscar roupa e diz-me ele: - “Olha, tens que vir com o cabelo cortado.” Desde Janeiro que não o cortava e pronto. Fiquei no Hospital.
Conseguir emprego, nessa altura, foi um pouco mais fácil do que é hoje em dia, pelo menos para a Função Pública.
Sim. Tanto é, que eu até posso dizer uma coisa como, possivelmente, a toda a gente acontecia que eu, nesse caso, comecei a trabalhar dia 8 e contou a partir do dia 3 por causa de ter que ir buscar roupa.
Só depois de se ter reformado é que começou a dedicar-se ao artesanato?
Não. Nas horas vagas fazia mas nunca fiz muito. Fiz só para entreter. Nunca fui menino para andar aí. Passo a minha vida em casa ou por aqui (Numa garagem que o Sr. Felisberto transformou em atelier, onde realizámos a entrevista.) Tive uma garagem aqui ao lado. Era esta garagem da parte de cima, essa era só alugada depois, comprei esta. Mas é só devagarinho.
Fale-nos dessas peças que faz. Dessa sua paixão.
É conforme saem. A história do meu artesanato começou assim: Há uns anos eu resolvi fazer uma lareira quando começou a construção da parte grossa deste prédio e um dia disse para a minha mulher: - “Ficava-nos bem uma lareira na nossa cozinha.” E ela concordou. Eu fui saber de quem nos fizesse a lareira e diz-me o senhor: - “Eu faço a lareira mas só posso fazer nos fins-de-semana.” Fez a lareira e um dia comecei: - “Ficam bem aqui umas pecinhas.” Comecei a fazer as peças. Começava as grelhas, começava as tenazes e aquelas não estão bem e ia oferecendo peças às pessoas, tanto é que, ainda aqui atrás, me diz assim uma pessoa: - “É pá! O gajo trabalha muito bem! Ainda tenho lá umas pecinhas que são fantásticas.” E eu disse cá para mim: -“Olha, se visses as de agora…”
Como é que se sente ao fazer uma peça tão pequenina e ao construir algo que está no imaginário de todos nós, da maior parte dos transmontanos? São peças que fazem parte da casa de cada um quando se tem uma lareira como referiu…
Parece que o nosso corpo ganha asas. É que uma pessoa é muito diferente. Um aluno que anda na escola a estudar para tirar uma nota dezasseis ou dezoito, estuda e pronto. No artesanato, se uma pessoa faz… se sai uma porcaria, atira com ela ao balde do lixo e fica desesperado. Não tem comparação fazer uma peça bonita, bem feita ou que saia uma porcaria que a mim também me saem. Acontece-me, muitas vezes, estou a fazer qualquer coisa, quero fazer qualquer coisa, sai-me, começo cá a pensar, mesmo às vezes falo, se passarem na rua, dizem que eu estou maluco. No entanto, acontece-me muitas vezes, por exemplo, quero uma para mim e não me sai em condições e aparece uma pessoa e: - “Ai que bonita está.” Vendo-lha. Normalmente, eu equilibro o preço de maneira que também não há falência. O material que gasto é um pouco puxado e sou capaz, de maneira que não me prejudique muito, vendo-lhe a peça e eu tento fazer outra mais bonita ainda, para mim. No entanto, faço outra ainda mais bonita que essa mas, aparece um, faço outra. Estive agora aí, com uma senhora, uma vez chegou ao pé de mim e pediu-me que lhe fizesse um conjuntinho igual aquele redondinho que está ali (Apontou para um que estava numa estante). Fi-lo. Só lhe disse a ela quando lho entreguei: -“Sabe uma coisa? Ainda bem que não lhe entreguei o primeiro.” e ela: - “Então porquê?” - ”Este está bem melhor que o outro”. Na minha opinião.
E porque as miniaturas?
É a tal coisa, quando foi das minhas lareiras resolvi fazer as miniaturas para por ao pé da lareira ou no cimo e, depois tenho outra coisa. Normalmente, as senhoras chegam ao pé do marido: - ”Ó querido põe-me isto assim, faz-me assim uns furos para pendurar isto.” Acabam de fazer isso, lembram-se: - “Ai, podias ter feito mais para a esquerda ou mais para a direita.” (Risos) E, então, eu fi-los não sei se já notou…
Fez uns pés para segurar…
Já não precisa andar atrás do marido. Eu não gosto que me chateiem a mim e, possivelmente, os outros maridos também não gostam.
Acha que o artesanato e os artesãos são bem tratados em Portugal?
Não. Não, porque eu já assisti. Nunca fui a feiras de artesanato nem tenho intenções de ir. Em Bragança, por exemplo, a última feira de artesanato já esteve melhorzinha mas, eu tenho visto, aqui, feiras de artesanato que, cuidado! Há de tudo menos artesanato. Eu gosto de artesanato feito à frente das pessoas porque, eu vejo algum artesanato e chego ali e digo assim: - “Isto que aqui está é artesanato? Quem é que fez este artesanato?” Já por duas vezes que vou a uma feira do artesanato só por ir. Chego ali, vejo uma pessoa, um artesão a trabalhar com o aspirador. O aspirador é daqueles que aspira água e lava e… esse é que é o nosso artesanato? Pode ser que o haja…
O que é que sente quando você tem uma peça para vender e uma pessoa gosta muito mas depois acha que o preço é caro?
Eu, de toda a maneira, não me importo. Eu não faço artesanato para vender, nunca fiz. Eu só faço… eu, se estiver a fazer qualquer coisa, se a pessoa me aparecer para o comprar, se eu não estiver com disposição para o vender, nem sequer o vendo. Para mim, a coisa pior que pode haver, é maltratar o artesanato, porque ninguém vive à custa do artesanato. Porque, se uma pessoa quisesse viver à custa do artesanato, morria de fome.
Cada vez menos pessoas se dedicam ao artesanato, às artes tradicionais como profissão. Acha que se devia apostar na formação profissional de jovens nessa área?
Eu acho que sim mas, tem uma coisa também: quantos viriam aqui para me aturar a mim? Quantos teriam paciência? Eu não faço isto… o meu artesanato tem uma coisa, eu faço porque gosto, porque uma pessoa, se não tiver paciência, não faz de certeza. Porque, dez por cento do que faço, gosto, noventa por cento não tenho paciência, menos não dá. Porque há peças que eu não faço se não tiver paciência. Tem que se ter uma paciência forte mesmo.
Se aparecesse alguém, estaria disposto a ensinar?
Ajudaria sempre a pessoa naquilo que precisasse.
O que lhe parece a criação de um museu das miniaturas?
Se houver alguém que queira, alguém que possa, naquilo que eu puder ajudar, estarei disponível.
Estaria, então, disponível a contribuir com algumas peças?
Sim, sempre às ordens. Eu tenho peças na igreja da nossa zona, oferecidas para a igreja e estão lá.
Antigamente usavam-se muitas varandas e portões em ferro forjado o que já não acontece hoje. É mais uma tradição que se perde. Acha que vale a pena lutar pela preservação desse uso?
Penso que sim. No entanto, hoje, na nossa zona, especialmente, nas aldeias servem-se das coisas com muito desapego. Se uma pessoa quer mudar de azul para vermelho, o azul foi-se, acabou, morreu, passou para o vermelho. Eu tenho ali aquelas peças, garfos... sabe que, você é capaz de não saber que é muito mais jovem que eu mas a gente comia com aqueles garfos, era o que existia. Quando começaram a vir os outros a gente estava toda contente porque vinham os outros garfos: - “Olha, já tenho os garfos de alumínio em casa! Já se acabaram os de ferro.” Hoje as pessoas, é assim nas aldeias, as varandas forjadas e janelas, toda a gente ficou contente. Faziam tudo e mais alguma coisa para atirar dali com o forjado dali para fora.
Com o tempo foram-se deteriorando aspectos mais tradicionais da nossa cultura…
Sim, sim.
Pensa que isso se deveria preservar e haver pelo menos alguém que continuasse essa tradição?
Ainda aqui há tempos, alguém me disse, falou-me nisso e perguntou-me se sabia onde é que as havia e eu indiquei-lhe uma casa mas, não tinha a certeza, não sei se a pessoa foi lá ou se não mas, eu disse-lhe que na minha zona, se houvesse era ali. Era uma daquelas casas que nós chamamos das tais de sangue azul porque, a gente passa à porta, tem os muros altos, não olha lá para dentro. Quando eu era garoto, ainda saltava aquilo tudo, agora não.
Que tipo de peças costuma fazer no seu artesanato?
Faço aquelas miniaturas para a lareira e faço os porta-chaves, faço garfos para comer e os outros também mais pequenos.
Faz, essencialmente, o quê?
Todas as peças que são utilizadas na lareira. Temos o fole, a tenaz, a pá, a vassoura, o ganchinho para puxar as brasas, temos a tripé, o garfo, a grelha, o espeto e o assador…
Enquanto transmontano, o que acha que poderá ser feito para que Trás-os-Montes não se transforme num deserto sem jovens?
Isso já me passa muito ao lado. Possivelmente serralharias, porque eu vejo, hoje também já se vêem as cozinhas com…. aquecimento, com caldeiras e, portanto, já não é preciso quase material.
Quanto tempo leva para fazer uma peça? E o conjunto?
Uma pessoa… para dizer que demoro uma hora e depois demorar mais… eu posso até demorar dez minutos, isso depende conforme está a correr. Vou soldar um assador, já tenho soldado assadores em cinco minutos, já tenho soldado assadores em mais de uma hora. Isso depende de como corre o trabalho. Eu tenho um assadorzinho num porta-chaves que pode ver ali. Já tem acontecido que eu soldo-os em pouco mais de cinco minutos. Tem duas asas, eu chego ali, tenho o cuidado, em vez de cortar duas asas, eu corto umas quatro ou cinco porque corre-me tantas vezes a vida mal. Um porta-chaves pequenino, se eu disser assim: - “Andei aqui duas horas à volta disto e não fui capaz de o fazer.” Pensam que estou maluco. Eu fiz a candeiazinha que tenho ali, fiz o bico. Quando vou soldar o bico, onde é que estava ele? Corri tudo a saber dele. Aí, em casos desses, quase entro em desespero.
O que é que acontece quando perde assim uma peça?
Nem vale a pena dizer nada…
Chateia-se muito?
Um bocadinho.
É um misto de chatice com tristeza.
Se uma pessoa tem uma pecinha daquelas que custou tanto a fazer, a preparar e depois chega no final e não a encontra… Ainda aqui há dias, aquele folezinho que está além eu pedi a quatro ou cinco amigos se me arranjavam um tubinho para fazer o bico do fole. - “Eu até o tenho lá, eu até o tenho lá.” E tive que ser eu a descobri-lo porque ninguém mo arranjou. Fui fazer uma visita ao hospital e um desses amigos estava lá doente: - “Olha atrás da minha porta. Está lá.” Praticamente, encontrei-o por acidente. É aquele que ali está. Vê? (Levantou-se e foi buscar um pequenino fole, absolutamente perfeito. Passou-mo para a mão e olhou embebido para a pequena peça que tanto trabalho lhe havia dado.) Esse, não está à venda…
Em que devemos apostar para, sem perder as características mais marcantes de Trás-os-Montes, acompanharmos os avanços do mundo em que vivemos?
O nosso Trás-os-Montes… Isto já não é o nosso Trás-os-Montes. Antigamente aproveitavam-se mais os garotos. Isto, nestes tempos, já não posso dizer nada porque, o meu tempo era completamente diferente do que é agora. Eu, muitas e muitas vezes, colegas meus da minha aldeia… nós tínhamos uma coisa. Os garotos esperávamos pelo Domingo para nos juntarmos todos com os animais, machos, burras, mulas para irmos lá para um cabeço, para andarmos juntos, porque nos outros dias andávamos a trabalhar, ou a cavar ou a lavrar ou a apanhar a azeitona ou a apanhar as uvas ou a fazer isto ou a fazer aquilo porque aquilo era de trabalhar. Não havia subsídios de desemprego nem subsídio familiar, não havia nada disso. Eu estou a contar por mim, não sei o que se passava em casa dos outros. A minha aldeia, neste momento, tem duzentos e noventa eleitores e todas as aldeias desceram o número de eleitores. A minha aldeia não tem aumentado mas tem-se mantido. Todos os anos, na minha aldeia, se fazem casas, recuperam ou fazem e ao fim-de-semana está tudo cheio. Há uma festa, está tudo cheio e eu lembro-me muito bem, andávamos quase todos descalços. Às vezes, estávamos à espera do sapateiro, no dia de festa, que nos trouxesse as botas.
Os tempos mudaram muito. Não acha que o governo deva apostar, também, um pouco em Trás-os-Montes?
Eu acho que sim. O transmontano, sempre o “lixaram” de toda a maneira. Podiam-nos aproveitar mais um bocadinho… nós sempre trabalhamos e continuamos a trabalhar.
Para o final da nossa entrevista vou fazer-lhe uma pergunta que fazemos a todos os entrevistados. Que personalidade ou personalidades o marcaram ao longo da sua vida?
Possivelmente, podia ter passado um pouco ao lado porque é uma coisa que eu… um dia fiz a minha quarta classe, éramos cinco, diziam que era um bom estudante, não sei se era ou se não, as pessoas é que falam de nós. Um dia a professora vai a nossa casa dizer que eu era bom aluno, que podia continuar a ver se me deixavam continuar e o meu pai: - “Como é que deixo continuar? Não tenho dinheiro, não há transporte, não há nada.” A professora e o padre disseram para me mandar para Macau. Disseram que não, que não queriam diferençar os filhos. Não sei se fui diferençado ou não. Possivelmente, houve estudantes que, no meu tempo, da minha instrução primária, temos dois médicos. Naquela altura, não eram melhores alunos que eu. Possivelmente eles tinham dinheiro, eram filhos de guardas. Havia um padre na minha aldeia, muito meu amigo, passou-se um caso na aldeia com ele que, possivelmente, se eu estivesse lá não se tinha passado, que eu era dos tais que um dia o padre vem ter comigo e pergunta-me se eu queria ir para sacristão, era eu garotinho. Antigamente, a missa era em latim e deu-me o livro para eu aprender a missa e eu já sabia quando chegou ao pé de mim e me disse que a missa, a partir daquele. momento, já era rezada em português. Eu atirei com o livro e disse-lhe: “Ai agora passou para português? Nunca mais lhe entro na igreja.” Entrava, mas nunca mais fui a ajudá-lo na missa porque, antigamente, era só o sacristão que dizia dominus bobisco e eu era muito amigo do padre José Batista Aragão, de Travanca. Fui sempre muito amigo dele. Foi posto de lá para fora. Acho que não tiveram razão. Sempre que me ponho a pensar acho que não tiveram razão. Eu não estava na aldeia, estava na tropa na altura.
Foi portanto uma pessoa que o marcou na sua vida?
Sim. O meu pai também e marcou muito. O meu pai sempre foi muito trabalhador e o meu pai era um verdadeiro artesão. O meu pai, ainda aqui há dias, alguém lhe deu um elogio. O meu pai nasceu em 1910, tinha 96 anos e todos os anos na feira de artesanato, aparece um senhor com um moinho. Não é o moinho que eu conheço, não é um artesanato que eu conheço. O meu pai fazia em tamanho grande. Fez o moinho, fez um pisão, ainda aqui há tempos estive na aldeia com o senhor José Luís, e estive a mostrar-lhe um conjuntinho e diz-me assim: - “Como é possível! Sai-se mesmo ao pai.” O meu pai fez o pisão e punha aquilo tudo a trabalhar. Pagava contribuição pelo funcionamento daquilo e depois deixou de dar dinheiro e ele continuou a pagar a contribuição. Hoje dão subsídios, naquela altura faziam-no pagar. Acabou com aquilo, teria eu cinco ou seis anos mas, um dia qualquer, ainda faço um mas em vez de fazer grande, faço uma miniatura… Sabe o que é um pisão? É aquilo que os mirandeses e as gentes das Terras de Miranda utilizavam para pisar as mantas, aquelas mantas grossas, para as tornar macias. Era uma máquina que fazia aquilo. Tinha eu seis anos quando acabou.
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