sábado, 4 de agosto de 2012

Entrevista com o Padre António Augusto Rodrigues Amado, natural de Pinelo, Vimioso



Nasceu em Pinelo, uma pequena aldeia do concelho de Vimioso, onde esteve até completar a escola primária. Que recordações guarda desse período da sua vida?


Recordações são as melhores que se pode ter duma infância de dificuldades, muitas vezes mas, também, de muitas alegrias e muitas recordações. Recordações da escola primária dos colegas, das professoras. Recordações também do trabalho que muitas vezes tínhamos que fazer. Recordações dos anseios que uma criança pode ter, uma criança da aldeia. Uma criança de pais remediados com uma casa de lavoura, com rebanho, com animais domésticos e além da escola, como dizia, era necessário, não só estudar mas, também, ajudar os pais nas tarefas diárias. Muitas vezes, eu vinha da escola, chegava a casa pegava na marmita e na cesta e ia a cinco quilómetros ou seis quilómetros para junto de uma irmã que guardava o rebanho e aí ficava toda a noite e de manhã cedo, ao acordar, voltar a casa para ir à escola e era assim o dia a dia e, outras vezes, ajudar os pais, já um pouco mais crescido, nas tarefas da cava da vinha.
As coisas mais fáceis… ir com os animais para o lameiro. Uma vida, de algum modo, sacrificada mas alegre e feliz porquê, como filho mais novo da família, não passei aquelas dificuldades que os meus irmãos mais velhos passaram. Os meus irmãos mais velhos eram os meus segundos pais. Uma dela até é minha madrinha…
Os mais velhos ajudavam a criar os mais novos e nesta vida de trabalho, de estudo, houve sempre um receio, sobretudo nos últimos anos, porque eu lutei de alguma… o meu projecto de vida em esboço e que se foi delineando até que fiz a quarta classe e manifestei desejo de ir para o seminário porque os meus colegas também teriam ido para o Seminário das Missões e foi precisamente aí que nasceu este projecto de vida, este ideal que pouco a pouco se ia delineando em mim e que os meus pais tiveram dificuldades em aceitar, não só pela situação económica que não era fácil mas, também que, pelo facto de eu ser o mais novo seria o seu protector quando já em idade avançada e eu seria o sucessor, o pastor do rebanho para dirigir propriamente a casa quando os meus irmãos começassem a sair e afinal foi isso mesmo que aconteceu mas, mesmo assim, os meus pais deixaram sempre em aberto o meu desejo embora pondo sempre dificuldades, a ver se esmorecia esse ideal em mim, até que chegou o dia. Só um ano depois de fazer a quarta classe é que eu tive o caminho aberto para eu ir para o seminário.


Para o seminário das missões católicas ultramarinas em Tomar. Nessa altura teve que lutar muito contra as saudades que sentia da sua família…


Sim e bastante. Veja um menino que sai da aldeia sem nunca praticamente andar de autocarro a não ser Pinelo/Vimioso. Em Bragança, despedi-me dos meus pais e encontro um grupo da mesma idade. Éramos dezasseis os que fomos para o seminário nessa altura. Entrámos no comboio, chegámos ao Pocinho e aquele menino que eu era, não sabe para onde há-de ir porque não sabia se havia primeira classe, se havia segunda classe. Chegámos ali e entrámos na primeira porta que encontrámos que foi, precisamente, para a primeira classe. Eu e o meu colega andámos à procura de lugar naquele compartimento de pessoas distintas, não encontrámos e ficámos no hall do comboio sentados naqueles assentos que havia que se dobravam. Quando chegou o revisor fomos a apresentar o bilhete e ele disse-nos logo: “Os meninos aqui não têm lugar, têm que ir para a terceira classe”. Nós sabíamos lá o que era terceira classe. “Mas vós portais-vos bem, deixais-vos estar aqui”. E lá fomos até ao Porto em primeira classe. Ao chegar à estação de São Bento vimos o sacerdote de barbichas lá ao fundo mas, ele passou pela primeira classe e não nos ligou porque, os meninos virem em primeira classe, seria demais. Fui eu ter com outros que vinham então na terceira classe lá em baixo. Nós, quando vimos que realmente não nos ligava, acenámos e ele ficou todo admirado quando nos viu acenar da janela da primeira classe, ficou admirado e lá nos cativou e fomos todos juntos.
Ao chegar ao Convento de Tomar foi um deslumbramento. Ao chegar ao Convento de Cristo em Tomar, aqueles corredores…podia andar um autocarro, quase, lá por dentro. Aquilo era enorme, grande, sentíamo-nos perdidos à primeira vista. Portanto, as saudades dos primeiros dias, embora tivéssemos gente da terra, gente das aldeias próximas, colegas…mesmo assim começava a nostalgia, começava a saudade. O filho mais novo é sempre o mais acarinhado, é sempre o mais babado, de maneira que a gente, de vez em quando, punha-se lá num cantinho… lá vinham as lágrimas. Não queríamos mostrar que éramos fracos mas, lá vinham as lágrimas de saudade…


Apesar de todas as dificuldades faltavam os carinhos e os mimos, não é?


Sim, embora o aconchego do seminário, de alguma maneira, compensava. Éramos dezasseis transmontanos, aqui de Vimioso, Mogadouro, Vinhais. Protegíamo-nos uns aos outros mas, sempre havia aquela saudade. Os superiores, no princípio, também eram compreensivos para o nosso à vontade de crianças mas, depois, começaram as exigências. Quarto de banho, havia só um. Não podiam ir dois ao mesmo tempo. Acho que de alguma maneira foi uma ida tranquila e uma estadia tranquila no Seminário.


Como é que foi esse percurso até ser ordenado padre em 1968?


Foi um percurso que eu recordo com muita saudade e, realmente, foi uma certa aventura, sobretudo, sair da aldeia e chegar… seria, talvez, a única maneira de ter estudado mas, ao mesmo tempo, era também aquele desejo de ideal que uma criança vai delineando, vai esboçando. Os primeiros anos de seminário seguiram-se, depois chegaram as crises da idade como todo o jovem, aos treze, catorze anos que se iam resolvendo em diálogo com os superiores… mas o seminarista, por ser seminarista, tem todas as dificuldades como qualquer jovem tem: a crise da puberdade, as primeiras… a afectividade começa a despontar… os estudos, também, geram certa dificuldade, mas foi-se delineando. Quem ia para o seminário, não queria dizer que fosse para ser padre. Era, de alguma maneira, uma promoção porquê, dos dezasseis que fomos para o seminário só eu é que cheguei a padre na Sociedade Missionária. Dos dezasseis que fomos apenas eu cheguei. Era um estudo da vocação. Era uma preparação para o sacerdócio e as decisões viriam mais tarde. Eu comecei a decidir ser padre aos dezoito, dezanove anos, já consciente e sabia, mais ou menos, o que me esperava. Claro que tive a simpatia de moças aqui e acolá. Convívio, isso também faz parte do crescimento afectivo da pessoa humana porquê, o padre nunca deixa de ser homem, embora saiba o que quer e luta por esse ideal. É uma decisão que se toma responsável mas, a última decisão que se toma é a preparação para o sacerdócio em que, com 25, 26 anos a pessoa já atingiu maturidade e é aí que se tomam as decisões para enfrentarmos a vida, uma vida de algum modo sacrificada, mas que se tem de lutar sempre por esse ideal. É uma decisão que se toma, não é uma decisão de momento mas é uma decisão que continua durante a vida toda e creio eu, é gradual mas, ao mesmo tempo, consciente. Creio que em qualquer profissão a decisão é do dia-a-dia. Devemos estar sempre com aquele desejo de começar de novo todos os dias. A vida não nos toma uma decisão para sempre, num momento para toda a vida, tomasse sim mas, depois, é renovada cada vez que que surgem dúvidas.


Alguns meses depois da sua ordenação seguiu como missionário para Moçambique. Fale-nos dessa experiência.


É uma experiência maravilhosa de um jovem que tem um sonho ideal e que luta por esse ideal. Não há melhor perspectiva do que ver-se logo confrontado com esse ideal. O anseio de todo o missionário, que é um sonhador, um visionário… no bom sentido, quer muar o mundo.
É uma utopia mas, acho que deve haver muitos assim, e há felizmente para realmente mudar o mundo. O grande desejo do seminarista missionário é partir o mais depressa para as missões e foi o que realmente me aconteceu a mim. De maneira que, o partir do nosso país para um mundo embora, na altura, Portugal fosse um mundo diferente, um mundo que o missionário vai transformar, vai humanizar.
O missionário não ia só evangelizar, não há evangelização sem humanização em primeiro lugar. Evangelizar é humanizar. Era curar, era ajudar, até ensinar as coisas da lavoura, como acontecia muitas vezes. Eu estive sempre num seminário no centro de Moçambique, o Seminário Missionário do Mariri, que era um pólo de educação. Onde tínhamos duzentos alunos gratuitamente. Os estudos eram gratuitos. É claro que nem todos eram para serem padres… era uma promoção humana onde havia um centro de formação de irmãs religiosas, irmãs nativas como nós lhe chamávamos. Onde, lutámos por isso, havia também um colégio, chamado Colégio dos Colonos. Não era só para colonos, era também para filhos de professores que podiam pagar as despesas do colégio e o centro era o seminário. Tanto os seminaristas, como as postulantes das irmãs religiosas, como os filhos dos colonos ou filhos dos professores que pagavam a estadia, porque podiam, concentravam-se no seminário. Era, de algum modo, uma promoção humana tendo como finalidade, também, construir ou formar sacerdotes para a evangelização local. A igreja não está verdadeiramente realizada se não for implantada no próprio meio. Os missionários vão desbravar, digamos assim mas, depois, têm de construir a própria igreja local.
Recordo-me, quando íamos nove missionários a passar por Angola, de Benguela, o navio Império avariou, e estivemos quatro dias no Lobito e fomos fazer um giro de autocarro. Íamos na estrada e ao longe vimos uma grande igreja construída e, ao lado, um galo de Barcelos, também, muito grande e aquilo chamou-nos a atenção mas, afinal, esta igreja estava deslocada. Via-se o edifício mas não tinha casas à volta. Construiu-se a igreja, edifício da igreja material mas, não se construiu a comunidade. Vamos primeiro construir a igreja pessoas, a igreja comunidade, a igreja comunhão e depois, a própria igreja. São os fiéis construir a igreja que eles precisam. Nós vimos aquilo como o começar ao contrário. Fazer a igreja e depois construir a comunidade. Acho que deve ser ao contrário. A igreja, o edifício, deve ser construída pelos fiéis, depois de responsáveis, de conscientes. Por isso, o missionário, ia sim evangelizar mas, também, humanizar.
Recordo-me da euforia, depois da independência, de um padre nativo, que numa reunião no seminário para implantar os grupos dinamizadores, se voltou contra nós e nos acusou dizendo: “Os missionários vêm para aqui, vêm ensinar a rezar, salvar almas, vêm só salvar almas.” Levantei-me, na altura era reitor mas não podia dizer o que queria:“Não senhor, não viemos salvar almas, viemos salvar corpos. Em primeiro lugar nós humanizamos, nós civilizamos, depois evangelizamos”. Ele calou-se. Estava o exemplo nele mesmo. Ele foi formado pelos missionários não só lhe deram o espiritual. Viu-se bem porque, mais tarde, ele foi o representante do grupo local da educação no distrito onde estávamos. Ele sabia que o missionário ia para evangelizar mas, sobretudo, humanizar. Afinal evangelizar o que é? É tornar as pessoas felizes, tanto no corpo como no espírito.


Permaneceu, em Moçambique, quase dez anos, de 1968 a 1976. Esse foi, sem dúvida, um dos períodos mais conturbados na vida nas ex colónias. Como foram esses anos? Falou já nos anos depois da revolução. Terão sido talvez os piores anos?


Também gratificantes. O risco, por vezes, sobretudo num jovem que veio para realizar o seu sonho, o seu projecto e uma dedicação total aos outros, muitas vezes, o risco é saboroso, digamos assim. Eu cheguei, fui logo para o seminário, estive como formador, como professor no Seminário Liceal do Mariri, ficava a cento e cinquenta quilómetros da capital do distrito. Depois veio o 25 de Abril, nós tomamos conhecimento porque o meu colega estava a ouvir a BBC. Houve aquele período conturbado, a revolução… surgiram muitas dúvidas: se a revolução continuaria, se não continuaria, se haveria depois a transição das províncias ultramarinas para países… tudo isso e nós vivíamos numa certa ansiedade. Tive dias em que chegávamos ao fim do dia e os alunos: “Se vierem os guerrilheiros o que é que fazemos?” Eu dizia-lhe: “Não tenhais medo, não fujais. Nós temos a despensa, temos a cozinha, temos ali comida. Damos-lhe de comer e não nos farão mal”. E eles ficavam tranquilos. Depois, houve realmente a passagem para a independência e vimo-nos confrontados com alguma coisa revolucionária. Assistimos à independência e por fim houve aquela transição, houve um… agora não me recordo da data exacta em que o presidente Samora Machel nacionaliza todas as escolas do país. Estavam incluídas também as escolas privadas e mesmo os seminários pertencentes à diocese, de maneira que, começamos a defender os nossos direitos e até dos próprios nativos.
Recordo-me que tivemos ordem para sair do seminário e irmos para a cidade. Tínhamos lá outro seminário maior e eu, nessa altura, era reitor e tínhamos que deixar tudo o que tínhamos no seminário e mandavam-nos para a cidade. Nós tínhamos de reagir porque não era certo nós irmos do Mariri para Porto Amélia, hoje Pemba, e chegarmos lá e não termos camas, não termos roupas, não termos mobílias, não termos nada. “Nós estamos a defender os direitos dos nativos de Moçambique. Se nós vamos para lá temos que ter condições para eles poderem viver. Assim como as irmãs religiosas, que eram africanas e não lhe queriam permitir levar nada do que elas tinham na sua casa para Pemba. Elas arranjavam casa em Pemba, mas não tinham os móveis. De maneira que não queriam partir e deixar os seus haveres. Eu disse-lhe às irmãs: “Nós não vamos obedecer. Pomo-nos em contacto, se for necessário, com estruturas superiores.” Não podia ser porque elas eram moçambicanas. Elas tinham a sua vida organizada, não podiam ficar com a sua vida desorganizada de um momento para o outro. Vieram os camiões da diocese e começaram a carregar. Veio a comissão liquidatária a proibir e uma irmã veio ter comigo e disse-me: “Senhor padre passa-se isto.” Eu disse: “Continuem a carregar”. Então a comissão liquidatária veio ter comigo e eu expus-lhe, precisamente, este ponto de vista: “Eu estou a par da constituição da República Popular de Moçambique. Defendo os direitos dos naturais. Não estamos a defender os nossos direitos. Hoje estamos aqui mas, amanhã, poderemos sair. Estamos a defender os vossos irmãos e não vos vamos obedecer. Pomo-nos em contacto com as estruturas centrais.” Os meus argumentos resultaram e deixaram-nas sair com as suas coisas.
Outro facto que aconteceu foi a fundação dos Grupos Dinamizadores nas escolas que, de alguma maneira, as estruturas próprias da FRELIMO obrigariam a uma dinâmica própria, diferente da dinâmica que tínhamos como seminário. Houve uma vez em que veio o Representante da Educação no Distrito e vieram os guerrilheiros da FRELIMO a acompanhar e houve uma espécie de comício num salão grande que nós tínhamos em que falavam guerrilheiros.
Foi nessa altura em que o sacerdote, que acima referi, fez a acusação e houve alguma acusação da parte dos alunos mas, umas acusações que, praticamente, não tinham grande sentido. Um aluno levantou-se dizendo que o prefeito deles que era africano e que hoje é padre, não lhe deixava desenhar a bandeira da FRELIMO na carteira e umas coisas assim a que eles davam uma importância extraordinária e a partir daí viravam-se contra nós. Que nós éramos contra o regime, que eramos contra a FRELIMO.
Essa transição passou, nós aguentámos, estávamos a par da constituição da República Popular de Moçambique. Nós queríamos realmente que o país evolui-se. O desejo que nós tínhamos, como missionários, éramos portugueses mas, em primeiro lugar, éramos missionários e, como missionários, não nos queríamos envolver em política, queríamos respeitar o direito dos povos até à autodeterminação, até à independência e até que o comissário político local… Um dia tivemos uma reunião com as estruturas superiores do partido com o comissário político em que ele nos fazia acusações mas, nós provamos que, realmente, estavam a fazer-nos acusações mas, quem estava a ser o corrupto era ele e ele, depois dessa reunião, foi para as zonas libertadas. Foi preso porque nós provámos que estávamos a cumprir o nosso dever como missionários, como formadores e como humanizadores da sociedade moçambicana que, o que queríamos era o bem do povo, o bem dos seminaristas, daqueles que estavam lá e que progredissem humanamente …


A verdade acabou por vir ao de cima. Já em Portugal, desenvolve actividades em várias freguesias e aldeias. Como consegue ter tempo para isso tudo?


A actividade de sacerdote é, sobretudo, ao Domingo. As missas paroquiais, atender a catequese, a administração dos sacramentos, tudo isso tem que ver, de alguma maneira, com aquele ideal que está sempre presente e que, verdadeiramente, é uma luta por cumprir, esse ideal inicial, e que permanece em toda a vida, não olhando, talvez, nem a meios económicos. Como padre, posso dizer que não sou exigente na cobrança de estipêndios. Dou liberdade às próprias pessoas de, voluntariamente, espontaneamente poderem pagar, para que o pároco possa ser útil e possa desempenhar a sua missão. Não sou daqueles de obrigar mas sou daqueles que faço tudo para que as pessoas vejam que o sacerdote está nas mãos dos próprios paroquianos e que eles devem colaborar com o pároco para que ele possa desempenhar, verdadeiramente, a sua missão que não é uma profissão.
Eu nunca pensei e nunca fiz a vida de padre como uma profissão. Uma missão de entrega total e às causas de Deus, às causas dos benefícios das pessoas, à cultura. Tenho desempenhado não só da parte espiritual mas também cultural. Logo que cheguei a Pinelo fundei um rancho de pessoas idosas, como um livro que eu escrevi… que eu corrigi, um rancho folclórico que depois vai… as coisas depois passam, também dei aulas na escola EB 2,3 de Vimioso, onde me interessei sempre pelas actividades, não só da educação moral e religiosa católica mas, também, pelas actividades culturais que os alunos podiam desenvolver e ensaiar teatro. Ensaiei uma peça em Campo de Víboras, o “Auto da Ressurreição de Cristo” que, na altura, juntou bastante gente e… não só desenvolver a parte espiritual das pessoas mas, também, a parte cultural onde também estou inserido e procuro dar, sempre, a minha colaboração.


Mas, pode sempre dizer-se que é um homem dos sete ofícios, que se dedica, além dessas causas, entre as quais nós destacamos o Lar de Santa Eulália em Pinelo. Fale-nosdessa vertente na sua vida.


É uma dedicação, a minha preocupação é que os idosos sejam bem acolhidos, bem tratados e bem alimentados e que vivam os seus últimos anos de vida na alegria, na tranquilidade, no convívio uns com os outros e até com as próprias funcionárias. Eu procuro criar no Lar de Santa Eulália, de Pinelo, um ambiente familiar entre mim e as funcionárias. Não há uma relação de autoridade de patrão e empregados. Há uma relação… aliás como foi o meu timbre, mesmo com os meus alunos, tive sempre uma relação muito próxima, uma relação de igualdade e creio que esse ambiente que as pessoas podem respirar, é um ambiente familiar em todo o relacionamento que as pessoas podem ter umas com as outras e procuro criar esse ambiente no lar. As funcionárias comem todas juntas. Eu, como Presidente e praticamente também como orientador, além de ser da direcção faço parte dos funcionários do lar, porque nós não temos alguém que… com uma formatura que possa ser a orientadora geral. Sou eu que dou quatro horas ou seis horas ao lar, às vezes, 24 horas para que as coisas possam correr bem e eu vou almoçar, vou jantar, a maior parte das vezes como lá mas, muitas vezes, como fora e gosto que comam todos juntos, que dialoguem todos juntos, como uma família e quando há qualquer problema, por exemplo, uma funcionária que precisa de sair, dialoga-se antes, resolve-se o problema e há este intercâmbio que acho saudável e vejo que tem havido autênticos milagres em idosos que vão para o lar. Há idosos que vão para o lar e que muitas vezes só querem ir já em última instância e muitas vezes eles chegam lá e dá a impressão que eles se revitalizam. Vão, talvez, mal alimentados, a higiene não é aquela higiene que uma pessoa deve ter e eles chegam lá e como que é uma renovação, sentem-se bem. São cuidados. Cria-se um ambiente realmente familiar e depois nas estruturas próprias que renovamos, ainda há pouco tempo foram renovadas com sacrifício, mas com coragem e que realmente é um lar acolhedor. Mesmo no exterior, interior pode-se fazer um convívio ali ao lado, todos confraternizam. No interior também tem tudo. Recordo-me quando foi a inauguração desta parte da renovação, o senhor Bispo esteve presente e ele dizia-me: “Isto não é um lar de terceira idade, isto é um hotel”. Um hotel não é mas, realmente, se uma autoridade como o senhor Bispo diz uma coisa dessas é porque alguma coisa ali está presente para que as pessoas se possam sentir bem. Depois há aquelas preocupações económicas, a Segurança Social, o termos idosos a mais. Temos uma lista de espera mas, dessa lista de espera, vamos atender os mais necessitados.


A lista de espera é só da aldeia ou…


É da aldeia e de aldeias vizinhas. Os estatutos põem, como prioridade, os necessitados, idosos da freguesia. Prevalece a necessidade porque, realmente, há necessidades que não podem esperar para amanhã, tem de ser logo e, muitas vezes, a Segurança Social é um pouco exigente e não nos permite termos idosos a mais no lar o que está muito bem mas, há necessidades que não podem esperar.


Fale-nos um pouco do seu livro “Pinelo - terra com memória”. Que memorias quis preservar com este livro?


Deixe que eu volte novamente a África. Os missionários, fomos formados com respeito pela cultura para onde nós íamos. Estava presente sempre na nossa vida, na aprendizagem da língua, na aprendizagem dos costumes, na aprendizagem das histórias, porque é aí que o missionário vai beber as chamadas as fontes do verbo. Vai beber a religiosidade do próprio povo e a partir daí vai… aquele evangélico, Jesus disse: “Eu não vim nem abolir o til nem o jota da lei, eu vim aperfeiçoar”. A realidade do missionário era essa, era sabermos o verbo e, a partir daí, que essas sementes germinassem até chegar realmente ao “Eu vim aperfeiçoar”. De maneira que, como natural da minha terra, não poderia também deixar de procurar essas sementes, essa cultura que a religião deve respeitar e a partir daí procurar, além de preservar, a cultura do povo mas, ao mesmo tempo procurar ver, como vemos no meu livro, várias orações de pessoas que mas disseram e que eu gravei. Ao passar para texto escrito, não se percebia muito bem na gravação eu fui perguntar à pessoa com quem tinha gravado e essa pessoa já não me soube dizê-la novamente porquê a memória já lhe tinha falhado. É importante preservar a memória, os ditos, as orações, os provérbios, as histórias, os costumes, até os costumes religiosos. Nós, muitas vezes, como padres somos levados… devemos ser revolucionários, não cortar com a raiz. A raiz deve estar presente para poder levar evangelização. O meu livro “Pinelo, terra com memória”, foi nesse aspecto. Uma recolha que eu fiz ao longo do tempo, pelas pessoas da aldeia, nos idosos da aldeia. Até os próprios alunos, muitas vezes, traziam-me das suas aldeias elementos e, a partir daí, está aí coligido um apanhado dessas mesmas memórias que, creio que é válida, numa linguagem sucinta, numa linguagem simples. Os comentários que eu faço, coisas de que eu me recordava da infância aí estão. Não sei se é um grande livro, um pequeno livro mas, é um livro.


O concelho de Vimioso é um dos exemplos mais angustiantes no que à desertificação diz respeito. Que poderemos fazer contra este flagelo que atinge quase todo o nordeste transmontano?


Não é fácil quebrar a tendência da desertificação. Creio que já devia ter sido feita alguma coisa para isso e não sei se não será tarde demais para nós quebrarmos essa tendência. Há quem tenha esperança que sim, mas não será fácil. Eu creio que as pessoas que amam a sua terra, por qualquer lado onde se vá, onde se contacte com emigrantes, com pessoas que estão no Porto, que estão em Lisboa, elas estariam na terra se tivessem condições. Eu visitei as minhas irmãs, há anos, no Brasil e eles exclamavam por vir para a terra. Tenho uma irmã que está desejosa de vir para o lar, para a aldeia. As pessoas estão ligadas à terra e as pessoas do nordeste, do norte que tinham aquele sentimento da terra. Eu também vim para aqui de alguma maneira para isso, para fazer alguma coisa pelo meu povo. Eu estive sete, oito anos em Africa, já estou aqui vai fazer trinta e quatro anos e olho para trás: “O que eu fiz?” Esforcei-me, lutei, fiz tudo o que pude? Talvez pudesse fazer mais mas, essa tendência… as pessoas têm de se fixar mas, para se fixarem é necessário arranjar condições para que fiquem porque hoje, a agricultura e, sobretudo, a nossa agricultura do minifúndio, não dá. Cativar os jovens arranjar estruturas próprias. Há algum tempo encontrei dois jovens de Vilar Seco e perguntei-lhes pela terra. O que me disseram é não iam lá há algum tempo e que viviam em Bragança porque a estrada estava melhor e tinham melhores condições. Olhe, eu quero que façam as estradas que têm de fazer e que nos aproximem o mais possível mas, como vê, é cada vez mais difícil manter as pessoas nas aldeias.


Não sei quando concluíram a estrada. Agora, a desculpa, são os ratinhos…


Primeiro estão as pessoas e eu já o disse ao Ministro quando foi a inauguração daquela passagem entre Miranda e …da ponte entre Miranda e Vimioso. “ Senhor Ministro primeiro estão as pessoas, as pessoas estão em primeiro lugar a preservar. Crescei e multiplicai-vos, diz-nos a bíblia, e dominai a terra. O homem é o rei da natureza. Claro que devemos respeitar a natureza e eu sou um Francisco de Assis. Eu gosto da natureza, eu gosto de trabalhar no campo e trabalho. De maneira que, sim senhor, vamos respeitar a natureza mas, vamos respeitar o rei da natureza. Haja hierarquia. No sábado passado fomos a um passeio. Fomos ao Douro, foi como que uma viagem ao passado quando eu passava naquela linha de comboio desde 1952 para baixo, para cima. Hoje é diferente o movimento que tem. Os barcos baixam, sobem. Antes eram as rochas que nós víamos em baixo, na água, no fundo. Se se pode transformar um Douro, se se pode transformar uma… aquela zona do Gerês onde eu fui passar férias, uma vez ou outra, por doença. Já agora eu vim de África porque estava doente… O clima tropical… atrai-me. Se não fosse pela doença, eu hoje estaria em África. O homem tem de transformar, tem de inovar, tem de respeitar mas, vamos por as coisas em hierarquia, vamos dar importância aquilo que tem importância e, se houver aí cinco ou seis ratos ou dez ratos que não fazem o ninho naquele trajecto, na estrada, fazem-no ao lado. A natureza habitua-se e adapta-se.


Para terminar a nossa entrevista de “Nordeste com carinho”, perguntamos-lhe: Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?


Em primeiro lugar os meus pais. Criaram os filhos. Não senti nunca dificuldades como muitas vezes sentiam os meus colegas. Nunca me faltou alimentação, nunca me faltou vestuário, calçado. Gostava de andar descalço mas, muitas vezes, os meus pais ralhavam comigo e eu tinha de andar calçado. Às vezes aparecia em casa com um dedo a sangrar por andar descalço. Em primeiro lugar os meus pais e, sobretudo, o meu pai. Quando me despedi dele, ao ir para África, ele foi ao autocarro comigo e diz-me ele assim: “Filho nunca mais te volto a ver.” E eu disse: “Não, pai, eu volto.”
O que é certo que dois anos depois ele falecia. E eu, quando ele faleceu, fui para a mata e sozinho, recordando….Marcaram-me os dois e a minha mãe e o meu pai. O meu pai nunca me disse que não mas, se eu tivesse desistido ele talvez tivesse ficado contente, porque via a vida e o amparo deles a ir-se embora. A realidade é que se não tivesse ido para missionário, teria ido para França, para a Alemanha, constituído família. A minha mãe era mais de amparar “Filho é a tua missão, é a tua vocação segue-a”.
Para além dos meus pais, um ou outro padre no trajecto da vida e mesmo amizades que tinha com pessoas e com amigos. Depois há duas figuram que norteiam a minha vida de sacerdote: São Paulo, aquele homem que diz a verdade, que foi frontal quando foi derrubado do cavalo, mas que foi um grande pregoeiro missionário, exemplo para mim e depois São Francisco de Assis. Um mais entusiasmado, mais intelectual, mais cultural. São Francisco de Assis mais voltado para a natureza. Ler o livro da vida porque nós vemos todos os dias em que lemos. Quem quiser sobe à montanha e contempla e aí chama irmão a tudo a todos os seres. O respeito, em primeiro lugar, pela vida humana e tudo o resto deve estar submetido a isso.

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