sábado, 31 de janeiro de 2015

OS LIVROS COMO SALVAÇÃO

Excerto de biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira (13)

Foi muito importante o contacto de Amadeu com as bibliotecas itinerantes, que outras não havia ali. «Por volta da minha 2.ª classe foi quando apareceram, pela primeira vez, as carrinhas da Gulbenkian a distribuir os livros. Ficava na Praça e nós íamos levantar livros para ler. A princípio, com grande curiosidade, não sabíamos como é que aquilo funcionava. O funcionário da Gulbenkian só nos deixava levar três livros a cada um. Fiquei muito desconsolado, porque queria levar mais. Levei os três livritos e nesse dia, ao fim da noite, já os tinha lido todos. A partir daí, eles iam lá todos os meses, passei a adoptar um esquema diferente: os colegas da minha rua iam comigo e requisitavam livros para mim. Cada um requisitava três e eu é que os lia. Juntava aos vinte e aos trinta livros, que eu lia logo, muito depressa. Era uma voracidade de leitura muito grande. Era quase um leitor compulsivo, a tal ponto que, se pudesse não fazer outra coisa, não fazia. E ainda hoje é assim.» Eram sobretudo livros de histórias, como o Pinóquio e outras histórias clássicas para crianças, desde os irmãos Grimm até o H. C. Andersen e outros. Lia-os todos mais do que uma vez, levava-os para o campo e aproveitava todo o tempo para ler, nomeadamente quando ia apascentar os animais, em que o trabalho era apenas de vigilância. «Às vezes queria levar uns grandes, mas eles não deixavam. Via a capa, parecia-me um título sugestivo e levava assim indiscriminadamente. Foi a partir daí que eu me tornei um leitor compulsivo, com a ajuda dos meus colegas. »
O analfabetismo assumia elevadas proporções e diríamos que esse quadro negativo aumentou a motivação de Amadeu para o romper. A mãe não aprendeu a ler, situação que era também a da mãe dela e a do pai. Quanto aos irmãos de Albertina, o Manuel fez a 3.ª classe na tropa, a Francisca, que também não aprendeu a ler, emigrou para Sevilha, onde veio a falecer de leucemia, deixando aí três filhos - Abílio, Manolo e Ana, que se dedicaram a uma agricultura moderna. A Maria que fez a 4.ª classe, lia bem e era a escrevedora de cartas no Bairro Alto, em Sendim. Do lado da família da mãe o analfabetismo vem do fundo dos tempos. Do lado da família do pai a situação não era diferente, pois ele e outro irmão , o José, que foi GNR, de seis, foram os únicos a fazer a 4.ª classe. Tudo isto revela a política de obscurantismo da educação do Salazar, e o respectivo impacto em relação ao país e ao seu crónico atraso.
As dificuldades económicas desde cedo o motivaram para conhecer outros mundos. «Os livros foram uma das coisas mais importantes na minha vida e desde muito cedo me apercebi da sua magia. Traziam mundos novos, gente nova, fomentavam a imaginação, o sonho, a diferença em relação ao meu dia a dia, sem intermediários, eles próprios erguidos em verdadeiros professores, um espaço de liberdade sem limites. Ao longo da minha vida, os livros foram talvez o único “vício” permanente de que nunca me consegui livrar, nem quero. Com eles criei uma relação de cumplicidade, de intimidade, de fonte de prazer, sem o qual seria difícil ou mesmo impossível, explicar e perceber muitas das minhas atitudes.»
Las Cuntas de Tiu Jouquin inclui o conto « Un cierto cheiro a doces» que fala da entrada do menino Jesé (o segundo nome de Amadeu ), na Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian:“ Tanto libro! Quien me dera tener assi ua carrada de libros”. «Talvez devido ao pó, e à forma como o papel envelhece e cheira, à medida que ia lendo os livros sentia aquele cheiro absolutamente extraordinário. Isso ficou comigo.» O incentivo pelo saber, pela importância do conhecimento é-lhe transmitido quer pelo pai, quer pela mãe, apesar de analfabeta ou por isso mesmo. “Tu estuda! Tu sê esperto para a letra! Tu sai deste mundo, que este mundo é um mundo triste e desgraçado! Vai à procura de outro mundo, mas, para isso, tens de estudar e muito!”.


Escrito por Teresa Martins Marques 

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