quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O FIO DAS LEMBRANÇAS (7)

(Excerto da biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)

Albertina conta que o nascimento do primeiro filho, o Abel, tinha sido de joelhos, um parto muito difícil. Quatro anos depois, quando nasceu o Amadeu, também de joelhos, foi uma coisa muito rápida. «Nasceu à uma hora da manhã. Tinha estado a trabalhar no campo, a trilhar e a limpar, a ajudar uma tia. Foram cear e comecei-me a sentir-se mal. Logo as águas se sentiram. O pai deixou-se dormir. Abanava-o para o acordar: Esperta! Esperta!»
Acendeu a candeia de petróleo, que punha o nariz da cor das uvas, cheio de negruras. A iluminação era também a azeite. «Íamos comprar os quartilhos e os litros. O azeite vinha numa azeiteira e botávamos para a candeia.» Faziam tudo à luz da candeia - fiar e coser - com a candeia pendurada na cuba, de lado.
Albertina sente que está prestes a ter a criança e sacode o marido:
«- Eu não estou bem, levanta-te! Levanta-te e vai chamar a minha mãe!
- Então o que se passa?
- Ainda me perguntas o que se passa? Eu sei lá! Então não há-de nascer o garoto ou garota?
Não sabia se era filho ou se era filha. Agora logo sabem!»
O marido foi chamar a sogra e, quando esta chegou, Albertina «já tinha puxado pelo saco e já estava a ter o garoto. Aquilo foi uma hora. Foi duro. Foi uma hora e passou logo». Amadeu estava com pressa de chegar ao mundo. A mãe sente que este filho tem algo de muito especial. Com grande vivacidade, dizia-me quando a entrevistei em Sendim no Verão de 2012: “Este filho já pulava diferente na minha barriga! “
Depois veio o Manuel. Albertina ficou muito doente, durante a gravidez do Manuel, cinco semanas sem ver a rua. Tinha dificuldade para andar e ficou muito inflamada. Durante um mês sentava-se de lado, nas lajes, com uma cabeceira de palha em baixo. Ou então ao pé da lareira e o Amadeu, já com quatro anos, ia para junto dela. Tinham matado uma galinha para ela comer depois do parto e o Amadeu também queria “um cachico”:
«- Queres um cachico, queres?
- you quiero! »
E dava-lhe um bocadinho.
«Foi andando, andando e o garoto deixou de se arrimar a mim. Tinha o Manuel muito pequeno. Deixava-o às vezes um dia inteiro no berço com uma chupeta na boca. Não chorava nem nada. Ficava aquela alma parada ali todo o dia.
- Amadeu, parece que tu não estás bom!
- An! An!
-Então não queres um cachico?
-Num quiero nada…
Começou assim a pôr-se doente, doente, doente, esteve quatro meses, sempre doente, sempre ao colo. Ia para a praça, ali ao pé do banco, onde havia uma bica.»
O Amadeu só queria beber daquela água corrente. Não queria tomar os comprimidos que o médico lhe receitou. A mãe deitava-os na água tirada do cântaro e ele, doente, mas sempre finório, percebeu logo e barafustava. Carlos, o irmão mais novo conta-nos a versão ouvida inúmeras vezes à mãe: «o Amadeu completava três anos, e sofreu de febre tifóide durante longos meses: ter sucumbido seria o desfecho normal para aquele tempo. Medicamentos já existiam, mas não havia dinheiro para os comprar. Certo dia, desesperada, a mãe interrogou o médico da aldeia, o Dr. Raposo:
- Ah senhor doutor, então vamos a deixar morrer o rapaz?
- Tenho aqui um remédio, mas é muito caro para ti! - Enquadra o médico.
- Bem cara é a morte senhor doutor, e paga-se! Depois a mãe acrescentava sempre o seguinte comentário: “L tiu quando oubiu aqueilho nun tornou a dezir, nien preta, nien branca. Fui-se adrento i trouxo un frasquito cheno de remédio branco: parecie leite, mas algo mais spesso.”
- Todos os dias, pões-lhe cinco gotas deste remédio num copo com água. - Explicou-lhe o médico. Depois a mãe avançava no conto e acrescentava:
- “ A la fin de trés dies Amadeu yá nun querie beber de l’auga cul remédio i miraba para mi culs uolhos arregalados, parecie un lucifer. El nun era malo, era la doença que l fazie! Apuis ponie-se de longe i gritaba-me: “you nun quiero dessa auga , you quiero auga de la bica. Dá-me auga de la bica , dá-me auga de la bica tie gorda !”.
A mãe cansada, de noite e de dia sempre com a criança ao colo. «Depois estourou-lhe um ouvido, ainda hoje não tem membrana do tímpano. Não tornou a comer durante quatro meses. Só queria comer um nabo ou uns tremoços. Nem caldo, nem sopa, nem pão, nem nada. Durante quatro meses.» Dona Albertina encosta-se para trás na cadeira: « Não sei como isto vai ser… Eu dormia sentada na cama com ele ao colo. Começou a faltar-lhe o ar.
- Amadeu, tu o que tens, filho?
- Nada. Não tenho nada.
Eu chorava. Derramei muita lágrima.»
Resolveu levá-lo por fim, ao médico.
- Sr. doutor, o garoto está muito doente.
-Estás assim tão aflita? Ainda tens mais dois!
-Pois tenho, senhor doutor, mas não quero que este se me morra. Porque logo se me criou e tem uns gestos, uns feitios que nem se podem dizer! Não queria que se me morresse.
Ele lá olhou, lá olhou e eu disse:
-Ó senhor doutor, os comprimidos ele não os toma! Bota-os fora!
- Como não toma? É porque tu não sabes dá-los! Deixa cá ver. Dá cá um!
O médico tapou-lhe o nariz e mandou a mãe meter-lhe o comprimido na boca.
-Eu meti-lhe o comprimido. O médico disse:
-Deixa que já engoliu.
- E vai ele, abriu a boca e deitou-o no chão da sala, dizendo palavrões, furioso com o médico!

Escrito por Teresa Martins Marques.

Retirado do facebook. 

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