quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

UM MUNDO IMUNDO - O FIO DAS LEMBRANÇAS (5)

(Excerto da biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)
Os jovens viviam no seminário sem as mínimas condições de higiene e só por ironia este regulamento era taxativo. Letra morta, como é evidente:
“Esmerar-se-ão todos em observar os preceitos higiénicos relativos aos cuidados com a pessoa quanto à limpeza do corpo, mudança de roupa etc. No seu vestuário e calçado andarão sempre limpos e decentes. Terão também cuidado em trazer o cabelo convenientemente cortado, evitando não só toda a falta de limpeza, mas também toda a vaidade e singularidade.”(p.63)
«Nós mudávamos de roupa interior ao domingo. Camisetes, camisas, cuecas ou ceroulas, no inverno. As cuecas nesse tempo, “bragas” em mirandês, eram uns calções de pano feitos pela Tia Teresa Arteira, que iam até ao joelho, pois ainda estávamos longe do pronto-a-vestir. Mesmo no verão era usual usar ceroulas ou mesmo nada por baixo das calças. As meias mudavam-se ao domingo, era um cheiro a chulé imenso.»
Nesse aspecto, as coisas não mudaram muito em relação aos hábitos de Sendim, em que a roupa interior era mudada ao domingo para ir à missa, mas as calças e outra roupa exterior podia ser usada mais tempo. Porém, o normal era usar uma roupa para ir à missa ao domingo e outra para usar no campo, no trabalho.
«No seminário, de manhã levantávamo-nos, vestíamo-nos, lavávamos a cara para acordar e fazíamos a cama, tudo num espaço de tempo relativamente curto. Havia uns lavatórios, ao lado das camaratas, para lavar a cara. Não havia água quente e a água era gelada. Ao lado desses lavatórios havia retretes turcas. A pessoa põe um pé de um lado e um pé do outro e tem de acertar no buraquinho. Casa-de-banho propriamente dita não havia. Banho não existia. Tenho uma vaga ideia de haver uma ou duas cabinas com chuveiro, mas sem água quente. Mas não estou certo de que se situassem junto à camarata, tal como as retretes. Havia ainda retretes no r/c do edifício, por baixo da sala de estudo, que eram de uso geral durante o dia. Havia apenas umas bacias de lata e uma torneira que deitava água quente, onde nós, duas vezes por semana, lavávamos os pés.
A tarde de domingo e de quarta-feira eram tardes de lavar os pés. Sentávamo-nos nuns bancos corridos, puxávamos as calças para cima até ao joelho, e lavávamos os pés, nessas bacias com água quente e sabão. Creio que só mudávamos as meias, mas já não recordo todos os pormenores. As meias que a maioria de nós usávamos eram meias de lã de ovelha, feitas pelas nossas mães. No verão eram meias de fio de algodão, também feitas por elas. Outra roupa não a voltávamos a vestir porque, de facto, não a chegávamos a despir.»
É quase inacreditável o que Amadeu nos conta: «nem sequer lavávamos os sovacos. O suor, o cheiro do corpo era considerado uma coisa pouco importante. Era preciso esconder o corpo. Mostrar o peito e os sovacos era muito complicado. A roupa interior, as calças, tinham de ser despidas e vestidas debaixo dos lençóis. Tirar a roupa do peito era complicado, porque ia contra aquilo que, na opinião dos padres, era a virtude mais importante que o ser humano podia ter - a castidade.
A castidade, tal como os padres a entendiam e a pregavam, significava rejeitar o corpo. Não apenas rejeitar a sexualidade, mas rejeitar o corpo, enquanto tal. «O corpo é uma coisa má, é uma coisa que não se pode mostrar, porque qualquer mostra do corpo que passe para além do joelho, é sujeitarmo-nos a nós próprios e aos outros àquilo que são as tentações do demónio em relação aos pecados do corpo relacionados com a sexualidade, que estava sempre presente, mas que nunca era falada. Não se podia mexer no corpo, que tinha de estar sempre coberto. Essa era uma questão relacionada com o celibato dos padres. Como é sabido, salvo contadas excepções, nunca houve qualquer celibato efectivo, tudo não passando de uma hipocrisia generalizada. »

Da Biografia de Amadeu Ferreira, escrita por Teresa Martins Marques

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