Inverno. Dezembro quase janeiro. Novo país, nova vida. Outro eu, o mesmo eu. Conflito. Saudade. Chocolate quente, denso, daqueles que fazem bigodes divertidos e brincalhões.
Tripé baixinho talhado pelo meu avô de um pau de castanho, agora meu.
Lato ao lume com a vianda dos porcos a fervilhar. Mais uma malga de trigo, algumas castanhas... "Já não querem comer.", diz a avó. "Está na hora de fazer a matança."
Manhã gélida, ar cortante apenas entrecortado pela fogueira generosa e polivalente.
Uma bela torrada na ponta da faca equilibrada na grelha. Mãos hábeis, viram-na para que torre pelo outro lado. No escano a azeiteira aguarda a sua vez. Observo. Aprendo e comparo.
Aqueço as mãos que tenho frias. Pequenas e alvas, pouco habituadas a trabalhos rudes. Apenas a maciez dos livros ávidos de serem lidos. Doces sobremesas aos fins de semana.
"Faz a tua cama! Arruma o teu quarto!" A voz incisiva da minha mãe, quando eu já carregava os livros e a sacola, atrasada para o ônibus que não podia perder.
Saltava os degraus como uma pantera, quase aterrando de joelhos no chão em precário equilíbrio. Não tinha tempo para cair. Porta fora, corria para a praça, manhã fresca de verão, ainda enfarruscada pela noite escura. Quase seis horas da manhã.
"Ai que já não o consigo apanhar!" Mais velocidade, um livro que cai falhando por pouco a valeta. "Puxa vida!"
Avisto o ônibus. Aceno ao motorista. Vê-me. Espera com o carro engatado. Todos olham para mim. Todos nos conhecemos e reconhecemos de todas as manhãs à mesma hora. Cheguei sem fôlego e sou içada por dois senhores que já sorriem.
"Bom dia!", em uníssono, cantada resposta com sabor a bossa nova.
Mostro o passe, passo a catraca, agradeço ao motorista, "Da próxima, eu não vou esperar por você." Sorriso malandro no canto da boca, fingindo zanga.
Ao longe, uma voz doce com sotaque português, desperta-me da minha viagem ao meu recentíssimo passado.
"Toma a torrada, filha! Pega no prato. Onde estarias tu, rapariga?"
Maquinalmente obedeci. "Obrigada, avó." Estava tão longe, tão alheada do meu lugar de agora que até o frio se tornara suportável, travestido de calor tropical.
"Estás pouco faladora, filha... Tens saudades, não é?"
O carinho e a ternura das suas palavras abriram o dique das minhas emoções e eu chorei como um rio no seu remanso mais calmo.
O andar arrastado do meu avô fez-me engolir todas as águas da minha mágoa. Vinha contente, pareceu-me... "Ainda és mais pimpona à luz do dia, rapariga! És parecida com o teu pai." Sorriso ténue nos lábios finos.
"Oh mulher, dá-me cá uma malga e um bucho de aguardente. É preciso aquecer o corpo que o frio impregna os ossos." Ao mesmo tempo pegou no pão e na sua navalha de bolso e cortou uma fatia de ponta a ponta que posou na toalha sobre a mesa do escano. Foi à mosqueira e tirou de lá um bocado de carne gorda cozida. Cortou uma boa fatia que colocou na grelha. O cheirinho espalhou-se como fumo invadindo as narinas agradavelmente.
A avó apareceu com um pequeno copo de vidro cheio de aguardente e uma malga vazia. Já o meu avô se sentara no seu banquinho de castanho. Ajeitou as brasas, pôs mais um pau ao lume e encheu a malga com o chocolate quente que se consolidava no pote. Deu um trago na aguardente e virou a carne que crepitava na grelha exalando todo o seu poder. Cortou a fatia de pão ao meio e, virando-se para a grelha, com a sua inseparável navalha, tirou um bocado generoso da crepitante carne gorda.
"Queres um cibinho, garota?"
Anuí e estendi a torrada em que ainda não tinha tocado. Embora saborosa, era muito forte para mim. Comi com algum esforço e não voltei a comer. O chocolate cresceu na minha caneca. A torrada parecia interminável. Um nó angustiante na garganta impedia-me de engolir fosse o que fosse. Levantei-me e, com alguma dificuldade, abri a porta da rua. O ar era tão frio que me fez bem. Acordei da minha tristeza e, pela primeira vez, conscientemente, a única rua da minha aldeia, onde, alguns metros mais acima, numa casa com uma pequena varanda cheia de craveiros, eu nascera, há pouco mais de vinte anos.
"Ui! Que frio! Entra e fecha a porta rapariga, que ainda congelas!" A minha tia, atrecida, embrulhada num belo xaile de lã. "Bom dia!"
Dez horas. Tudo branco. Pingentes a brilharem pendurados dos beirais... A viagem só agora começou.
Maria Cepeda
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