sábado, 24 de setembro de 2011

Entrevista com Dom António Montes Moreira - Bispo de Bragança-Miranda

Vossa reverendíssima, o senhor Bispo, nasceu em Trás-os-Montes, Vila Real e saiu da sua terra com a tenra idade de 10 anos. Que recordações guarda da sua, breve, infância?

 
Recordações que nem sempre se podem concretizar mas que deixaram na minha personalidade e no retábulo da minha lembrança um perfil de saudade, de nostalgia daqueles tempos em que, de criança, andava calcorreando os caminhos da minha aldeia. Embora eu tenha saído muito cedo para fora por causa dos estudos, o meu enraizamento é essa aldeia, é Trás-os-Montes. O que avistava em frente à minha casa era o perfil da Serra do Alvão e mais abaixo à esquerda, o perfil da Serra do Marão. Estes foram os dois pontos de referência que eu recordo com mais saudade dos meus tempos de criança.

Saiu bastante cedo, os seus pais quiseram dar-lhe uma vida melhor…

Concretamente eu sai aos seis anos, já fiz a instrução primária fora da minha aldeia. Eram as obrigações dos estudos, o meu pai foi emigrante nos Estados Unidos e com os dólares que lá amealhou permitiu que nós, os seus filhos, tivéssemos uma formação e para isso era necessário sair.

Imagino que Braga há quase 60 anos deveria ser bastante longe. Com certeza Vossa Reverendíssima, o senhor Bispo, teve que lutar muito contra as saudades que sentia da família?

Trás-os-Montes é e, sobretudo era, na altura, mais uma terra de emigrantes em que o facto de se estar fora fazia parte do quotidiano de muita gente. Embora tivesse muitas saudades, não tive muita dificuldade em adaptar-me a viver fora, mantinha bons contactos com os meus pais, frequentes. A altura das férias era uma oportunidade para retemperar a ligação e, mesmo ausente, a presença dos meus pais estava sempre na minha vida.

Sentiu de alguma forma a presença da II Grande Guerra?

Sim. Recordo-me de duas circunstâncias. A guerra acabou dia 8 de Maio de 1945, estava eu a acabar a quarta classe. Recordo-me perfeitamente desse dia, recordo-me que nos últimos meses, estudei num colégio interno, havia lá um moço que já era mais erudito que nós, comprava o “Primeiro de Janeiro”. Recordo-me que, nos últimos meses e semanas da guerra, trazia mapas do avanço das tropas aliadas e nós íamos vendo pelos mapas aquele avanço. Recordo-me muito bem do dia do desfile que se fez espontâneo de quando acabou a guerra e, recordo-me também, das privações que resultaram do tempo da guerra, do racionamento, mesmo antes de eu sair. Eu saí de casa em 1941 para ir para esse colégio e lembro-me que isso criou em mim, uma certa austeridade, que me tem sido útil e proveitosa.

Eram tempos bastante difíceis?

Sim, porque havia racionamento. Nunca passámos dificuldades graves mas, as coisas tinham que ser bem medidas.

Vossa Reverendíssima, com que idade é que sentiu o despertar da sua vocação?

É difícil dizer isso. Essas coisas não se podem contabilizar num momento preciso. A minha família era uma família profundamente cristã, a minha mãe pertencia à Ordem III Franciscana, o meu irmão mais velho também tinha ido já para o seminário. Havia um bom ambiente na aldeia e na família e tudo isso foi criando uma tendência, um gosto que se foi personalizando pouco a pouco.

O senhor Bispo sentiu, então, aos poucos essa vocação?

Sim, não foi nenhuma conversão repentina.

Imagino que S. Francisco de Assis seja uma referência na sua vida. Terá passado ele por Bragança?

Há uma tradição que situa a passagem de S. Francisco por Bragança em 1212 mas, é uma tradição de que não há confirmação nas fontes medievais e, pessoalmente, acho que será um pouco difícil. O que nós sabemos, eu li a obra de São Francisco, ele realmente veio à Espanha daquele tempo. Na altura, quando se falava em Espanha, entendia-se toda a Península Ibérica. São Francisco veio realmente à Península Ibérica. É tradição que esteve em Santiago. O que diz o cronista é que, São Francisco adoeceu na Espanha e teve que regressar. Mesmo tendo em conta que tenha vindo a Santiago é sempre difícil dizer, o que podemos dizer é que é uma tradição e não está confirmada. É certo que o convento franciscano de Bragança é bastante antigo e também a presença dos franciscanos em Santiago de Compostela estava comentada pelo menos desde 1222. O convento franciscano de Bragança está referenciado desde 1271. Infelizmente, as tradições nem sempre podem ser confirmadas, mantenhamos a tradição sem dizer que é uma certeza.

Até que ponto é, São Francisco, uma referência?

S. Francisco é uma referência como simplicidade de vida, como uma vivência cristã profunda, como referência de Deus na natureza, como serviço da igreja.

De que forma o facto de ser transmontano marcou, Vossa Reverendíssima, nas suas opções?

É sempre difícil dizer isso porque nós somos feitos por muitos elementos. Eu só estive seis anos seguidos em Trás-os-Montes. Uma certa personalidade transmontana no sentido de uma franqueza, de disponibilidade, isso está presente. Uma das características interessante dos seminários menores de institutos religiosos é que como há moços de todas as regiões do país, até mesmo de fora do país, isso permite que haja um confronto de origens, não direi de culturas porque é uma palavra demasiado ampla para isso, mas permite esta confrontação, um conhecimento mútuo muito importante.
Nesse sentido há uma certa tendência para se afirmarem mais as origens em contraposição. Recordo alguns aspectos que serão um pouco marginais mas, por exemplo, naquela altura não jogávamos futebol, jogávamos andebol, era bastante frequente fazer jogos por províncias, Minho contra o resto, Trás-os-Montes contra o resto. Sem criar agressividades, era uma afirmação de identidade.

Um certo espírito de competitividade?

Dentro do bom ambiente e o facto de haver seminaristas de todos os cantos do país, não apagava a identidade de imagem mas permitia contrastá-la com as outras identidades numa linha que, em geral, era uma linha positiva.

Vossa Reverendíssima desenvolveu ao longo da sua vida uma vastíssima obra ao nível da História de Portugal. De toda a sua obra qual destacaria?

Duas áreas, eu trabalhei inicialmente na história do Cristianismo antigo, fiz a tese sobre o século IV, o primeiro Bispo conhecido de Lisboa. Não pensava, nessa altura, que também iria ser Bispo. Escolhi o de Lisboa porque, enfim, é dos primeiros que são conhecidos. Nesse tempo não havia bispos em Bragança, se não talvez tivesse escolhido um de Bragança mas cheguei a pensar num escritor de Braga. Numa primeira fase, o meu trabalho de investigação científica situa-se nos primeiros séculos onde me sinto com algum à vontade. Depois nos últimos 20, 25 anos trabalhei bastante mais em história franciscana em Portugal, sobretudo do século XVIII para cá.

Vossa Reverendíssima é um franciscano convicto?

Numa circunstância, sempre tive alguma curiosidade por assuntos de história franciscana, tinha a formação básica numa área anterior, mais antiga do século IV mas aconteceu que no centenário do nascimento de São Francisco em 1982 eu tive que fazer algumas palestras relacionadas com história franciscana. Aí comecei a dedicar-me mais intensamente à história franciscana portuguesa. Foram essas duas circunstâncias.

De que forma o facto de viver na Bélgica e em Roma lhe permitiu, senhor Bispo, vivenciar a sua pátria?

Quando se está lá fora aprecia-se… há um carinho especial pelo país nomeadamente vertido em termos de saudade, mas sem sentimentalismos. Vive esse tempo todo, tive alguns colegas portugueses. Em Lovaina no ano em que fui, éramos 15 estudantes portugueses nessa universidade. Nesse tempo havia poucos portugueses na Bélgica, havia se bem me recordo, dizia o cônsul, 600 portugueses nesse belo país. Vivia-se um bom ambiente, éramos muitos estudantes estrangeiros. A universidade teria, sensivelmente, 10 mil estudantes, dos quais, cerca de mil eram estrangeiros, pertencentes a umas 60 nacionalidades. Tínhamos um clube de estudantes estrangeiros do qual eu fui vice-presidente durante um ano, havia um bom ambiente internacional. Foi na altura em que o Benfica ganhou as duas primeiras taças europeias, em 62/63, há quarenta anos e realmente isso contribuiu para que o nome de Portugal, nessa altura, com o Eusébio e com a Amália, fosse conhecido e respeitado, estava no topo.

Isso deu-lhe, com certeza, um certo distanciamento crítico sobre aquilo que se fazia em Portugal? Sobre a região?

Do ponto de vista das concepções políticas, naturalmente. A vida da Bélgica que, era um regime democrático, deu-me um distanciamento saudável em relação ao que se vivia em Portugal, sem posições excessivamente marcadas.

Nessa altura proferia algum tipo de opinião ou preferia manter-se à distância?

Numa me dediquei a actividades do tipo político activo mas, a minha concepção de apreciar a vida das sociedades, actualmente, foi um pouco influenciada por isso, sobretudo, a questão colonial ultramarina. Assisti, na altura, à independência das colónias francesas em1960, à independência da Argélia, à independência do Congo Belga, o que permitia mostrar que a política portuguesa de então estava, realmente, desfasada. Nesse sentido o facto de ter vivido lá fora permitiu-me um olhar diferente que me possibilitou aceitar com tranquilidade o 25 de Abril mas, também, com sentido crítico.

Voltemos um pouco atrás. Vossa Reverendíssima, falou há pouco de Lisboa. Esteve em Lisboa, esteve em Itália também. O que pensa de Santo António, de Lisboa ou Pádua?

Santo António é uma das grandes personalidades da vida e da cultura portuguesa; é o português mais conhecido em todo o mundo. Em toda a parte do mundo é difícil entrar numa igreja onde não haja o culto a Santo António. Recordo que uma vez estava em Roma no dia de Santo António, a presidir à eucaristia na Igreja de Santo António dos Portugueses e, na homilia, entre alguns aspectos mais religiosos, falei de Santo António como a expressão do universalismo português. No fim da missa o embaixador português junto do Cardinal disse-me: “Olhe, já fui embaixador no Ceilão e uma vez ia de carro e vi ao lado de uma estrada, parecia-me uma imagem. Parei, fui ver e era a imagem de Santo António que tinha escrito por baixo - Santo António protege o povo de Ceilão - em português. Conclui que reportava ao tempo em que os portugueses estiveram no Ceilão.”
O nosso Santo António é a primeira expressão forte do universalismo português. Devemos dizê-lo, não só por um certo bairrismo e por um certo nacionalismo. A cultura teológica doutrinal de Santo António foi adquirida em Portugal. Esse é um aspecto muito positivo que foi posto em realce no seu último centenário, em 95, sobretudo graças ao estudo de um grande professor falecido há uns oito anos, o professor Gama Caeiro que fez uma série de estudos e a tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa sobre o nosso santo. Pôs em realce o valor cultural de Santo António como produto da cultura portuguesa, dos centros culturais portugueses, onde se destaca o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Santo António é neste momento bastante estudado na Faculdade de Letras no âmbito da cultura portuguesa.

Há sempre aquele dilema entre portugueses e italianos, será português ou italiano?

Isso acontece com muitos… nós, aí, se calhar, fazemos um certo bairrismo nacionalista. Há muitos italianos que não fazem ideia nenhuma que Santo António nasceu em Portugal mas, nós também dizemos da Rainha Santa Isabel de Aragão, dizemos Santa Isabel de Portugal. É certo que em italiano há uma nuance, uma pequena distinção da qual nem todos os italianos estão conscientes. Em italiano há duas maneiras de dizer o “de”, em italiano correcto deve dizer-se Santo António di Pádova e não da Pádova. Em italiano o “da” significa origem e o “di” é uma referência determinativa. Nós, em português só temos o “de”, enquanto que em italiano tem duas expressões, duas proposições, se é “da” significa que é nascido, em rigor. Recordo-me uma vez que fiz uma homília no Convento Geral dos Franciscanos em Roma no dia de Santo António, tinha que ser eu, e comecei por dizer que era Santo António da Lisbona e di Pádova, assim está correcto, porque é o “da” e o “di”. Nem todos os italianos são sensíveis a estas nuances da linguagem. De modo que é um problema superado, temos por todo lado bairrismos que não são saudáveis. Santo António é uma expressão da unidade europeia mas temos que reconhecer e de afirmar que a sua cultura teológica foi feita, foi vivida em Portugal, a sua formação doutrinal foi adquirida aqui.

Dedicou grande parte da sua vida ao ensino e ao estudo, pode desenvolver também a sua vocação missionária?

Se por missionária entendermos ligações ao trabalho da igreja em países que não são de maioria cristã… tive alguma actividade nesse género quando fui superior provincial dos franciscanos. Porque os franciscanos portugueses têm missões há mais de um século em Moçambique e na Guiné Bissau. Há uns setenta anos, na minha qualidade de superior provincial, tive muito contacto com essas regiões. Fui várias vezes a Moçambique, outras tantas à Guiné e uma vez que os franciscanos nativos de Moçambique e da Guiné fazem parte da formação em países vizinhos, tive ocasião de visitar países vizinhos, uns sete ou oito.
Depois quando estive em Roma, no Conselho Geral, aí com responsabilidades sobre a ordem inteira, isso permitiu-me um conhecimento, a partir de relatórios, naturalmente, da realidade da ordem franciscana em toda a parte do mundo. Era um dos aspectos muito enriquecedores. Ler agora um relatório sobre os franciscanos no Japão, ler um sobre a Argentina, outro sobre a Croácia, outro sobre o Alasca, outro sobre o Canadá nesse aspecto, enfim, o perfil transmontano que é sempre um pouco mais universalista aliou-se felizmente de uma forma muito estimulante com uma vocação franciscana que também é universalista e o facto de ter desempenhado estes cargos permitiu-me uma dimensão universalista que noutros não seria fácil de desenvolver.

Gostaria de ter desenvolvido mais essa vocação missionária? Ou pensa que já fez a sua parte?

Eu tive outros encargos na vida, as coisas não foram por esse lado. Apreciei muito esse aspecto quando fiz a visita canónica aos franciscanos na Terra Santa. Foi há seis anos, estive uns dez meses em Israel, em contacto com a comunidade internacional porque os franciscanos têm uma grande presença na Terra Santa desde o tempo de São Francisco. Neste momento são cerca de uns trezentos na Terra Santa e países vizinhos. A minha participação nessa dimensão universal da igreja fez-se mais a partir dos encargos que eu tive de responsabilidades de governo.

Não o deixam triste, as guerras santas, nos países árabes?

Sim, a dimensão religiosa divida é uma dimensão superior mas onde mais facilmente pode haver contrafacções. Além disso, para bastantes desses movimentos, a religião serve de pretexto e não é necessariamente uma motivação fundamental. Várias das guerras chamadas religiosas, o caso mais típico é o caso da Irlanda do Norte, têm alguma origem religiosa. A colonização da Irlanda, no século XVI, pela Inglaterra criou alguma clivagem religiosa ou partiu de uma clivagem religiosa mas com o tempo aquilo é um problema em que a dimensão religiosa serve apenas de capa mas, no fundo, é um problema nacionalista e um problema do tipo económico. Na Terra Santa acontece também. Se é certo que há condicionantes religiosas sobretudo no mundo judaico mais extremo e também no mundo islâmico mais radical, no fundo é um problema de posse pela terra, em que todos consideram que têm direito a possuir aquela terra. As posições mais radicais tornam as situações difíceis.
Um dos aspectos que a imprensa fala pouco, a luta pela terra, assume umas posições que não são necessariamente de carácter de soberania política mas, de propriedade no sentido estrito do termo. Há uma preocupação quer da parte judaica, quer da parte árabe de adquirir a terra e fazer todo o possível para a manter. Se algum elemento árabe vende a sua casa a um judeu isso levanta dificuldades. Há preocupação de parte a parte para aumentar o domínio territorial no sentido de propriedade predial só.

São demasiado extremistas?

Depois há os extremismos de parte a parte, em parte mais significativa da parte islâmica, da parte muçulmana. Da parte árabe, aí, não devemos supor, ligar excessivamente à dimensão religiosa porque, enfim, entre os árabes há alguns cristãos, uma minoria. A população cristã naquele país, na Palestina e Israel, serão dois ou três por cento. Numa população global de cerca de oito milhões, contando tudo, Israel, os territórios ocupados e anexos não serão mais de 150 mil pessoas. Nós, com frequência, identificamos o árabe, o muçulmano, o islâmico, árabe a dimensão de tipo racial, a dimensão religiosa que é, predominantemente islâmica, é outra coisa.

Desempenhou cargos muito importantes a vários níveis, qual foi o que mais o marcou durante a sua longa trajectória profissional?

Com perspectivas diferentes, talvez o que me tenha marcado mais e entusiasmado mais até por um aspecto de pioneirismo, foi o trabalho na Universidade Católica. Eu pertenci ao grupo fundador da Sede de Lisboa, fui o primeiro professor/secretário da Faculdade de Teologia de Lisboa. Nessa altura só havia Teologias, as Ciências Empresariais começaram quatro anos depois. Os dez anos em que estive no Conselho Superior da Universidade, foi na fase de lançamento. O primeiro curso de gestão, em Portugal, a nível universitário foi lançado pela Universidade Católica em 1972, depois apareceu uma infinidade deles. A irradiação para o Porto, para Viseu, foram épocas de pioneirismo e nesse sentido, sem estar a comparar, são níveis diferentes mas, fiquei muito marcado pelos primeiros quinze anos na Universidade Católica. Depois, a nível da ordem franciscana, fui provincial, fui conselheiro geral em Roma, foi a segunda vez que no século XX que um português exerceu essas funções, aí apreciei muito pelos contactos internacionais.

Como interpreta a falta de vocações religiosas que hoje, infelizmente, se sente a nível mundial?

Sente-se sobretudo nos meios europeus e nos meios anglo-saxónicos. O mesmo não acontece na Ásia e na África, a América Latina está numa situação mais ou menos equilibrada. Falando nas nossas regiões, na Europa, julgo que há duas explicações fundamentais. Por um lado, há uma baixa demográfica e, naturalmente, nas famílias que, não são famílias numerosas, é um pouco mais difícil que surjam vocações de consagração. Por outro lado, estamos numa situação de uma baixa bastante generalizada de vida cristã em termos globais e naturalmente se o nível de vida cristã nas famílias, nas paróquias e nas comunidades não é elevado, não podemos admirar-nos se não surgem vocações de consagração. Se não há um húmus básico de prática da vida cristã também não podem surgir em número significativo essas vocações. Estamos numa baixa generalizada agora, há uma renovação na área de grupos e de comunidades, de facto, há mais vitalidade, isso nota-se sobretudo na pastoral de algumas cidades. Conheço melhor Lisboa, naturalmente. Em Lisboa, já há muito tempo, acompanhei bastante a pastoral embora não sendo diocesano, já desde há perto de 40 anos. Há já muitos anos que em Lisboa a maioria dos seminaristas são originários das cidades e não dos meios rurais. O que prova que a renovação da igreja começa pelos meios urbanos, como aliás a própria vida, todos os movimentos de renovação em qualquer área começam normalmente nos meios urbanos, têm muito mais possibilidades.

Têm mais peso actualmente?

E há mais possibilidades de recursos ao nível dos trabalhos, de pessoal. Os meios rurais estão numa fase de decadência sociológica e por outro lado a renovação dos meios rurais neste momento está-se a fazer noutra área em termos de mentalidade através da televisão, de modo que, em várias áreas rurais, já não se pode fazer a distinção entre cidade e o campo. O meio rural tradicional está em extinção.

Há uma descrença maior em termos de fé, de religião, hoje em dia, se compararmos com 20 ou 30 anos atrás?

Em termos globais podemos dizer isso, não convém endeusar excessivamente o passado como se tudo no passado fosse melhor do que no presente. Aí temos que ser mais realistas e diria mesmo mais optimistas no sentido de que o passado não é necessariamente melhor do que o presente. Se, em termos de prática religiosa numérica, a assistência à missa é um dos barómetros, é um barómetro bastante falível, um barómetro que mede só a prática exterior. Há mais vitalidade religiosa do que no passado. O grau de participação é superior ao que era no passado.

Será necessário modernizar?

É necessário por um lado haver uma linguagem que seja mais acessível mas, por outro lado, também é necessário que as pessoas façam um esforço por aceder a uma linguagem religiosa. Toda a gente acha natural que para se saber informática seja necessário saber inglês e nós adaptámo-nos à linguagem da informática que é uma linguagem técnica. Também é necessário que haja uma certa habituação a uma linguagem técnica religiosa. De qualquer maneira, há algum problema de comunicação. O problema não existe só da parte do comunicador está também da parte do receptor. Não se pode apresentar uma mensagem religiosa como se fosse uma receita culinária. Tem que haver um esforço de compreensão, um esforço de assimilação, um esforço de concepção da parte do receptor.

Há uma falta de feedback entre um e o outro?

Não diria que é um diálogo de surdos mas tem que haver um esforço das duas partes. Pela parte que nos toca como cristãos e, naturalmente, como responsáveis pela igreja temos de fazer um esforço maior para tornar a linguagem mais acessível. É um dos aspectos da chamada nova evangelização apresentada pelo Papa João Paulo II. Nova linguagem, novos métodos, um novo orador da apresentação da mensagem.

Qual é o papel da igreja na melhoria das condições de vida das populações?

Simplificando muito eu distinguiria duas áreas. Nós quando falamos em missões e, de facto, historicamente e, mesmo actualmente, a actividade missionária da igreja processa-se em países que, em geral, têm um nível económico bastante baixo e, aí, a igreja tem que exercer de uma forma, por um lado, superlativa, em relação ao Estado mas, por outro lado, de uma forma que faz parte da mensagem cristã, a caridade. A igreja é um veículo de promoção humana, cultural e social. Não é por acaso, só para dar um exemplo, que em países do terceiro mundo, a igreja está bastante na vanguarda, historicamente, da promoção económica, social e cultural.
Para falarmos mesmo da nossa região, em Portugal, aqui há sessenta, setenta anos só havia liceus nas cidades mais importantes e alguns colégios que havia, eram colégios que vinham da igreja. Isso leva, muitas vezes, a considerar que, o papel da igreja em relação ao bem-estar das pessoas, é um papel sobretudo de carácter de melhoria das condições económicas, sociais e culturais. Quando o papel específico da igreja, religioso, inclui esse aspecto porque a nível de promoção religiosa tem que necessariamente incluir uma promoção humana.
Numa outra área, por exemplo, um missionário cristão na Suécia que é o país tipo do país desenvolvido, qual será a função já que está tudo assegurado pelo Estado? É tornar a vida mais humana. É mais difícil ser missionário cristão na Suécia do que missionário cristão no Zimbabué, porque uma população africana tem mais apetência pela dimensão religiosa da vida. Nos meios secularizados, pobres de cristãos, a apetência pela dimensão religiosa está muito enfraquecida, por isso é que o Papa actual faz um grande esforço na chamada nova evangelização. Como nós, ao falarmos de missões, entendemos quase só as áreas de terceiro mundo, facilmente associamos a actividade missionária como tendo um grande papel na promoção económica, social e cultural. Mas a grande função da igreja, a função religiosa é tornar o homem consciente de que é filho de Deus e que por isso somos irmãos uns dos outros. A função e promover uma humanização das relações humanas. Aí há um grande papel do missionário cristão na Suécia para tornar a vida mais humana. Como consequência, se uma vida religiosa, se nós vivemos como filhos de Deus, deve levar a umas relações humanas mais fraternas. Essa é uma dimensão importante da igreja. Em Portugal temos que jogar nos dois lados.

Qual é o papel da igreja na luta contra a desertificação do Nordeste Transmontano?

Em primeiro lugar é criar melhores relações humanas. Em segundo lugar, a igreja não tem uma palavra a dizer em tudo, muito longe disso, há muitos actos que são de carácter económico, social e cultural pois aqui na nossa região se não houver focos de atracção das pessoas, se não houver pólos de desenvolvimento económico, social e cultural e educacional pois não pode haver fixação das pessoas.

Seria importante a Universidade de Bragança?

Essa solução como outras. Por outro lado também devemos ter uma vocação um pouco universalista. É, de facto, mais importante que as pessoas viviam bem, independentemente do lugar onde se encontram. Nós, transmontanos, temos uma larga tradição de emigração. Para o nosso desenvolvimento e para a fixação são necessários os pólos de desenvolvimento e depois as vias de comunicação. O resto virá a seguir. Aí, a acção da igreja, quer no futuro, quer actualmente, na situação presente a igreja deve ser um factor de humanização das relações entre as pessoas.

Qual é o papel que cabe ao Bispo de Bragança-Miranda?

É o papel de estar atento à situação em primeiro lugar, para conhecer a situação e procurar que as comunidades cristãs sejam um sinal anunciador dessa humanização das relações, dessa fraternização. Uma paróquia deve ser uma comunidade de irmãos, deve ser uma comunidade em que as pessoas, sendo diferentes, se sintam irmãs, isso é uma tarefa que nem sempre é fácil. Porque a tendência que por vezes temos de cada um protagonizar, a tendência para o protagonismo, às vezes, dificulta um pouco esse relacionamento. A função da igreja, nessa matéria, é que, se cada comunidade cristã for um exemplo de fraternidade, dá um excelente contributo para a valorização da nossa região.

Para quando os arranjos dos espaços circundantes da catedral?

Essa parte foi assumida de fuma forma gentil e cortês pela Câmara Municipal de Bragança. Os nossos projectos estão praticamente concluídos aguarda-se, quer em relação a essa parte, quer em relação à parte que pertence à diocese que é concluir as galerias laterais e toda uma série de acabamentos exteriores, depende agora dos prazos. O projecto do arquitecto está completo, é preciso libertar verbas da parte do Orçamento do Estado. Vamos ver, espero que seja possível este ano recomeçar a quarta e última fase.

Era importante que se fizesse o mais breve possível?

Sim porque quando se vê uma obra crescer e quando se vê uma obra quase a terminar isto estimula mais o sentido da generalidade das pessoas, não no sentido de andarmos a multiplicar peditórios mas, no sentido de as pessoas considerarem que a catedral é um ponto de convergência de toda a diocese e de todo o distrito. A catedral, sendo um edifício religioso, tem também uma grande função cívica como uma obra de arte. Já está nos nossos roteiros turísticos, quem vem a Bragança também quer ver a catedral mesmo não estando acabada. De modo que é uma mais-valia, não apenas do ponto de vista religioso, mas do ponto de vista cultural, do ponto de vista do património edificado da nossa cidade. Vendo que está em conclusão as pessoas tomaram mais consciência de que é obra de todos e que deve ser concluído com o custo de todos. Aí temos que dizer as coisas com simplicidade e com franqueza transmontana. Deve haver uma contribuição mais generosa da parte de todos para a conclusão da catedral.

Todos conhecemos a opinião oficial da igreja em relação ao aborto, falta-nos conhecer a de Vossa Reverendíssima. Qual é a sua opinião?

É a opinião da Igreja. Sobre esta matéria só desejava sublinhar um aspecto. A Igreja opõem-se ao aborto. Isto deveria ser dito na forma positiva: a Igreja é favorável à vida. É preferível utilizar-se a linguagem positiva do que dizer simplesmente que a Igreja é contra o aborto. A Igreja é contra o aborto porque é favorável à vida. Pessoalmente tenho alguma dificuldade em compreender que pessoa, movimentos ou instituições, que são paladinos dos direitos humanos, dos direitos do ambiente e dos direitos dos animais, o que está muito certo, manifestem uma alergia, até uma oposição ao direito fundamental que é o direito à vida, sem o qual os outros direitos não seriam possíveis.

A lei em Portugal diz que o aborto pode ser feito em caso de violação, em casos de deficiência do feto ou em casos em que a vida da mulher esteja em risco. Concorda com estas três alíneas?

Aí temos um caso nítido de que o que é legal não é necessariamente moral. Há bastantes aspectos em que não há uma equivalência entre as duas dimensões, entre a dimensão legal e a dimensão moral, isso significa que legalmente se pode fazer isso sem ser passível da justiça humana. Aí temos uma exemplificação, nesse caso qual é a diferença se o feto tem uma anomalia? Qual é a diferença entre ser já nascido, se aos 15 anos se revela uma anomalia? Vamos também eliminar essa pessoa. Dito com toda a naturalidade e sem qualquer aspecto de agressividade, às vezes tem-se comparado esse aspecto às câmaras de Auschwitz. Concordo que a comparação é cruel mas é uma comparação verdadeira, isto é uma exemplificação do que eu dizia a princípio, em termos de princípio.
Tenho dificuldade em aceitar que os paladinos dos direitos humanos, quer pessoas, quer instituições, não sejam sensíveis a este aspecto do direito fundamental, do direito à vida. A questão das malformações… então, se o aborto é legal até às xis semanas porque é passível se for umas semanas mais à frente ou ser depois do nascimento. Em termos de lógica é bom, às vezes, raciocinarmos por absurdo para vermos onde estão as contradições da marcha do nosso pensamento. O feto tem um defeito mas em grande parte devido à oposição ao aborto a medicina tem progredido muito nesta matéria. Neste momento já é possível fazer operações intra-uterinas. Se fossemos pela solução do aborto estava tudo eliminado. Se um feto traz alguma malformação muitas das quais são corrigidas, qual é a diferença entre haver uma malformação às quatro semanas de vida ou haver uma mal formação ao quatro anos de vida? Porque é que não se pode eliminar também aos quatro anos de vida? A pergunta fundamental tem que ser esta: o feto é um embrião, tem ou não estatuto de pessoa humana? Da resposta a esta pergunta é que vem o resto.

Então, a partir do momento da concepção, o feto já tem vida própria?

Sim, o feto tem vida própria que, se não houver interrupções no seu percurso, chega ao nascimento. A posição da igreja, nesta matéria, não é uma posição predominantemente religiosa, é uma posição de defesa do valor humano que, naturalmente, é mais reforçada por uma concepção religiosa da vida que vê na vida um dom de Deus como em muitas outras coisas. Por isso, a posição da igreja em relação a esta matéria, não sendo uma posição especificamente religiosa, é valorizada pela fundamentação religiosa que lhe é associada.

Voltando ao nordeste transmontano, o que pensa Vossa Reverendíssima, do futuro da região?

Eu não sou o profeta, profissionalmente sou mais historiador do que analista e futurólogo. Creio que o Nordeste tem possibilidades de desenvolvimento melhorado, como lhe disse há pouco, duas áreas. A área das comunicações que na nossa região, sobretudo na parte sul, são ainda bastante deficientes e valorizando os pólos de atracção de carácter económico e cultural, valorizando as nossas culturas agrícolas, valorizando o turismo. Associando tudo isso numa boa integração europeia associada ao turismo aí nós podemos oferecer produtos de alguma qualidade a partir da nossa paisagem e não simplesmente da paisagem orográfica mas, da paisagem cultural, da paisagem humana o que nos leva a que, na área do turismo e tudo o que está associado ao turismo, seria possível criar aqui uns pólos de desenvolvimento.

Para terminar, Senhor Bispo, que personalidade ou que personalidades o marcaram ao longo da sua vida?

É difícil responder a essa pergunta porque em termos de política internacional, de acção geral da igreja, posso dizer que aprecio A, B ou C. Posso-lhe dizer que vi uma vez a Madre Teresa no aeroporto em Roma e fiquei muito fascinado pela figura daquela pessoa, toda a gente suspendeu o seu trabalho só para a cumprimentar e para lhe beijar a mão, até vi um padre americano a beijar-lhe a mão. Devo dizer que, por mim, elegeria vários professores que tive em Lovaina que me marcaram muito, isso sim. Naturalmente eu sou sensível a apreciar algumas figuras políticas mundiais mas, isso não mexe muito com a minha vida. Portanto, em resposta à sua pergunta, em vez de dar uma resposta do tipo geral, que não afectou a minha vida, diria dois ou três professores que eu tive na universidade em Lovaina que foram homens marcantes no Conselho Vaticano II. A universidade de Lovaina, Faculdade de Teologia, teve vários professores que marcaram muito o concílio, impressionaram-me muito e marcaram-me muito.


Esta entrevista foi realizada em 2005.

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