A esta entrevista resolvemos dar o nome de “A paixão pelo futebol”.
Nascido numa pequena e remota aldeia: Gebelim, Alfandega da Fé, na terra quente muito cedo te mudaste para Bragança com os pais e os irmãos à procura de melhor vida e de estudos. Que recordações ficaram desses tenros anos?
Poucas. Eu frequentei a escola primária até à segunda classe em Gebelim. Em Fevereiro viemos para Bragança. A 13 de Fevereiro vim para Bragança, para a segunda classe. Nunca aqui tinha vindo, nunca tinha ido a Macedo que é a vila com que Gebelim tinha mais contacto, embora pertença ao concelho de Alfandega da Fé. Também nunca, naturalmente, tinha ido a Alfandega da Fé e, portanto, tudo era uma surpresa inimaginável. A maior, maior… foi no aspecto pedagógico. Eu sou canhoto. Faço tudo com a esquerda e, na aldeia, a professora já era mais evoluída do que a da cidade porque escrevi com a esquerda até à segunda classe. Aqui, obrigaram-me a escrever com a direita, de maneira que, eu tenho uma linda caligrafia, ao contrário. Não foi fácil essa mudança da esquerda para a direita, porque, o único movimento que eu faço com a direita é, exactamente, escrever. Tudo o resto faço com a esquerda. É, talvez, um dos factos mais marcantes. Um miúdo que nunca tinha saído da aldeia – tinha ido uma vez à feira a Chacim, que, embora maior, não passa de uma aldeia também. Vim, assim, para um mundo completamente novo…
É uma diferença enorme?
Uma vez tentaram explicar-me o que era um comboio e, como eu já tinha visto carros, disseram-me: “Olha, um comboio é como uma série de carros pegados uns aos outros. E esta foi a explicação que me deram, agora, daqui a imaginar o que era um comboio, era um bocadinho difícil. São estas imagens que marcam.
Na parte desportiva, quase não sabia o que era uma bola. Aos oito anos não sabia o que era uma bola e, na altura, não havia camadas jovens; a primeira e única camada que havia era a dos juniores, que foi onde comecei a jogar futebol. Os miúdos, hoje, quando chegam aos treze, catorze anos, querem desistir do futebol por pensarem que já é tarde. Não é. Eu só comecei aos dezassete anos, portanto, as pessoas têm muito tempo, se quiserem, para fazerem a aprendizagem no futebol. Foi aquilo que eu fiz o que não impediu que eu tivesse sido o segundo jogador a sair de Bragança e a encarar o futebol profissional. O primeiro foi o Pinto que saiu para o Lusitana de Évora e, depois, fui eu que saí a jogar para o Penafiel. As pessoas têm muito tempo, se quiserem seguir uma determinada carreira, não se devem precipitar porque aos doze, treze anos querem logo decidir, fazer já uma especialização no desporto, quando a especialização naturalmente chega mais tarde. Primeiro que façam a prática de todas as modalidades, do andebol, do basquete…
Embora, hoje se descubram talentos mais cedo.
Descobrem-se talentos, mas são talentos de laboratório. E, nalgumas modalidades, por exemplo, o caso da ginástica, quando comparada com o futebol, um indivíduo com 22 anos está no início de carreira, na ginástica uma atleta com 22 anos é veterana, está no fim de carreira. Aliás, uma ginasta Russa que acabou aos 24 anos já era considerada velhíssima para a prática da ginástica, naturalmente.
Bastante precoce para terminar uma carreira?
É muito cedo, mas começam com 4 anos e, se fizermos as contas, dos 4 para os 24 são vinte anos. No futebol, se se começar aos 14, 14 com 20 dá 34, portanto, a proporção mantém-se mais ou menos a mesma.
Há um limite para se praticar desporto ao mais alto nível…
Muita gente ainda se lembra do Joaquim Agostinho do ciclismo, que morreu, infelizmente, num acidente. Ele ira ter uma carreira longa porque começou aos 26 anos e isso dava-lhe a possibilidade de vir a acabar muito mais tarde. Um dos casos de longevidade no desporto é, por exemplo, o João Pinto do Sporting que começou muito cedo na alta competição, aos dezasseis anos. Hoje, com 32 anos está quase, quase no fim da carreira embora, seja uma carreira bastante longa. O normal seria já ter acabado, só que o seu aspecto, a sua constituição atlética, franzino como normalmente se diz, e não ter tido muitas lesões, permite-lhe que prolongue um pouco mais a carreira para além daquilo que seria normal. Porque o normal seria mesmo já estar a acabar.
Vamos retroceder um pouco para falar do impacto que teve sobre ti a cidade de Bragança, quando aqui chegaste com oito anos que, apesar de não ter a dimensão que hoje se lhe conhece, já era muito maior que a pequena aldeia natal?
Bragança, comparada com a minha aldeia, era muito maior, embora fosse uma cidade muito pequena. A Avenida João da Cruz ainda era em terra batida, havia meia dúzia de casas, naturalmente, não havia os Tribunais e havia a estação cá em cima. De minha casa, eu morava na rua Almirante Reis, por cima da actual drogaria Brigantina, era terra batida até à estação. O largo dos Correios também. Havia o bairro da estação mas, depois, para cima, não havia mais nada, havia para baixo: a rua Direita, a rua de Trás e, mesmo assim, a gente tinha que arranjar pontos de referência para se orientar quando saía, para depois chegar a casa senão a gente perdia-se.
E era bastante pequenina na altura!
Pois era. Havia a Alexandre Herculano, que é das ruas mais antigas. O que existia era ali aquele centro. Existia a mãe de água, a mãe de água propriamente dita, não o bairro. Quando a gente vinha aqui era quase como se se despedisse da família. Vir aqui em cima era muito longe. Não havia a Avenida do Sabor, havia só o seminário. Na parte de trás do cemitério, era o Toural, onde se fazia a feira. Havia a Capela de Santo António depois mais nada.
Também se jogou futebol ali, no Toural?
Jogou, era o campo antigo. Era um campo pequenino, daqueles de noventa por quarenta e cinco que nós chamávamos o campo das tábuas, porque a vedação era feita em tábuas, tudo em tábuas. Tinha uma pequenina bancada com três degraus e, mais atrás, uma bancada feita em madeira, que um dia caiu. Felizmente ninguém se magoou. Foi aí que comecei, foi no campo do Toural que comecei a minha actividade.
Foi aí que despertou a paixão?
Já antes, porque eu, relativamente novo, já pertencia à equipa do Liceu, porque nessa altura os jogos entre escolas tinham uma grande importância no desporto escolar, que era desenvolvido pela Mocidade Portuguesa. Eu fui campeão distrital nos 100 e 200 metros no atletismo, depois fui campeão distrital em andebol, voleibol e ténis de mesa. Nessa modalidade, posso dizer que era um excelente jogador. Quando fui para Penafiel ainda continuei a jogar mas, o treinador proibiu-me de o fazer porque causava um grande desgaste físico.
Quando fui para tropa, tinha deixado de jogar há uns quatro e recomecei. Houve um torneio de ténis de mesa e joguei contra um indivíduo que na altura era jogador do Sporting, o Conceição. Foi com o único que perdi, ganhei tudo, cheguei à final e perdi com um profissional da modalidade, tinha jeito para aquilo aliás, em Bragança, jogava-se muito ténis de mesa.
Eu defendo que, como o nosso clima, no Inverno, é muito frio e o ténis de mesa é jogado, naturalmente, em recinto fechado, seria uma das modalidades que teria grande aceitação aqui na nossa região. Veja-se o exemplo de Mirandela, que é campeã nacional, várias vezes, em femininos e que, no masculino está também a dar os primeiros passos e provavelmente virão a ser campeões. A capital do ténis de mesa é a Madeira. Das oito equipas do campeonato feminino, seis são da Madeira e duas do continente. Mirandela já é campeã por quatro vezes seguidas… aliás não é por acaso que o xadrez tem na Guarda o grande centro, exactamente por causa do clima frio, que se joga dentro de casa em temperaturas agradáveis…
E os grandes campeões do mundo são russos…
Exactamente! Era isso que ia dizer. O clima condiciona as coisas. Nós, em Portugal, é só o futebol mas, há outras modalidades que são as modalidades de pavilhão e de casa, como o ténis e o xadrez que deviam ser mais valorizadas. Até se podiam jogar numa garagem.
O hóquei em patins…
O hóquei em patins precisa de pavilhão. Os nossos pavilhões ainda não têm as condições que deveriam ter. Se fizermos uma estatística dos pavilhões que temos em Bragança, temos para aí uns seis ou sete pavilhões, o que parece muito bom mas, se quisermos organizar uma competição a sério, não temos nenhum, não têm as medidas necessárias. Veja-se, por exemplo, que ao do Liceu falta-lhe um metro, ao da polícia, isto só para falar nos mais recentes, faltam-lhe dois metros e não sei quê, ao da Escola Miguel Torga faltam-lhe dois metros ou falta-lhe um metro em altura… Normalmente entregam-se estas coisas a indivíduos que são bons técnicos, mas, bons técnicos na área deles, na área de engenharia e na área de arquitectura, mas não custava nada chegarem a um técnico de desporto e dizer: “Para o voleibol, qual é a altura que o pavilhão tem que ter?” – “Olhe tem que ter sete metros.” – “E quanto mede o campo?” – “Mede 40 por 20”. – “E quanto é que deve ter de protecção?” Os pavilhões tem de ter uma protecção por causa dos tectos, como é, por exemplo, para a prática do hóquei em patins, ou do andebol que, da linha lateral ao pavilhão propriamente dito, tem de ter uma área de protecção. Não custava nada perguntar aos técnicos das modalidades as medidas correctas para depois se fazer a obra de arquitectura e de engenharia como deve ser. Simplesmente, em Portugal, cada um gosta de estar sentado no seu poleiro e custa-lhes descer desse poleiro para colher informação e depois fazem-se asneiras, e o que é mais grave, para mim, é que depois ninguém é responsabilizado por estas asneiras que se fazem.
E hão-de continuar a fazer…
Tenho esperança que não!
Falemos de opções de vida. Foi um acto de grande coragem para os vossos pais, abandonarem a vida de agricultores e mudarem-se para a cidade para dar uma vida melhor aos filhos. Sentiste o peso dessa decisão?
Sentimos e de que maneira. Nós somos cinco irmãos quatro rapazes e uma rapariga e o meu irmão mais velho, o Amílcar, já tinha feito a quarta classe na aldeia, aqui fez o exame de admissão e ainda entrou no limite da idade que era doze anos para o primeiro ano, fazia nesse ano doze anos e começou a estudar. Se não tivéssemos vindo naquela altura, já não podia. Para o meu pai que, era lavrador na aldeia, vir aqui para o negócio, foi muito difícil.
O meu outro irmão que, nesse mesmo ano, tentou a admissão ao liceu chumbou e, não quis estudar mais. Foi ele que auxiliou o meu pai na venda do peixe.
Era muito difícil, porque o meu pai tinha, oficialmente, a terceira classe, embora soubesse ler e escrever, havia alguma dificuldade por falta de contacto com as contas que era necessário fazer; nessa altura não havia máquinas, eram as 750 gramas vendidas a cinco escudos e cinquenta centavos, era preciso fazer as contas e trocos e não havia clientela, porque nós não éramos conhecidos, não éramos daqui. Os meus pais vieram substituir uns tios meus que foram para o Brasil porque o negócio não estava a correr muito bem e quiseram dar aos filhos melhor do que o que tinham. Fomos nós que viemos para essa situação, que não era uma situação agradável. No princípio houve muitas, muitas dificuldades… as coisas não correram bem mas a partir de uma certa altura as coisas começaram a correr melhor.
Não posso dizer que tenha passado fome, nunca passei fome, felizmente, como se costuma dizer pão e água nunca faltaram mas tivemos muitas dificuldades. Aquelas histórias que se contam de andar com as calças rotas em determinadas partes do corpo que ficam atrás e nos joelhos e virar os casacos que passavam dos irmãos mais velhos para os mais novos etc., todas essas histórias eu passei por elas, agora pão e batatas, como se costuma dizer, houve sempre. Nunca tive uma bicicleta, nunca tive um triciclo, nunca nenhum de nós teve essas coisas, eu aprendi a andar de bicicleta com o Neca Pires e o irmão que eram nossos amigos e emprestavam-nos as bicicletas.
Os amigos foram sempre fáceis de conquistar mas, a família era o elo mais importante. Até que ponto foi importante nascer numa família humilde?
É como na guerra. Na guerra, estamos todos debaixo da mesma pressão, isso faz grandes amizades. As dificuldades que tivemos de enfrentar fizeram com que fossemos muito unidos. A luta para as superar reforçou o elo de união entre todos. O meu irmão Marcolino que era mais novo e, aqui o meu agradecimento por me terem convidado, se calhar, eu até nem merecia estar aqui. Dentro da minha área fiz alguma coisa mas, felizmente, há pessoas bastante mais importantes na nossa vida social e cultural… dentro da minha modéstia fiz aquilo que podia e sabia mas, se calhar, não tinha a pretensão de vir aqui para uma situação destas. Mesmo assim, correspondi com todo o agrado. Como estava a dizer, o meu irmão Marcolino que veio um pouco mais tarde, embora ele tenha sido fabricado ainda na aldeia - viemos para a cidade em Fevereiro e ele nasceu em Maio - é o único brigantino da família. Nasceu um pouco débil, nós até lhe chamávamos o “escapou”, porque a esperança de que ele sobrevivesse, nessa altura, era pouca, felizmente sobreviveu, escapou, para nos dar a alegria de podermos estar numa situação destas, divulgarmos um pouco da nossa vida, darmo-nos um pouco a conhecer.
É possível, mesmo que se nasça em família humilde, a vida dá-nos inúmeras oportunidades que devemos aceitar e agarrar. Desde que haja empenho desde que haja querer, que haja determinação, as coisas vão-se conseguindo. Nós somos um exemplo muito positivo, os cinco irmãos. Nunca deixámos de lutar por uma vida melhor.
Foste aluno do Liceu de Bragança. Isso é uma marca que se leva pela vida fora?
É, porque nós éramos muito poucos na altura a estudar e, até convêm dizer, que só aqui havia liceu, por ser capital de distrito. Todas as pessoas do distrito - havia colégios nalgumas localidades como era, por exemplo, em Macedo, em Moncorvo - vinham estudar para Bragança. Podiam ir para no Porto ou para Lamego mas, normalmente, as pessoas vinham para aqui estudar. Como éramos muito poucos todos nós nos conhecíamos, e essa amizade ainda hoje se mantém independentemente de alguns andarem no primeiro ano do Liceu e outros quase a acabar; não havia como há hoje o ciclo preparatório, era o Liceu e mais nada. Fazia-se a admissão entrava-se logo para o Liceu, do primeiro ano ao sétimo anos. O sétimo ano era o que dava entrada para a Universidade.
Lembro-me que no primeiro ano havia até à turma E, portanto, cinco turmas do primeiro ano e no segundo ano seria o equivalente... O Liceu tinha, quando eu lá andava, à volta de trezentos alunos de todo o distrito…
O que era bom?
Era bom num determinado aspecto. Infelizmente, havia muita gente que estava fora do sistema e hoje não. Hoje toda a gente tem acesso ao estudo. O ensino obrigatório era até à quarta classe e havia muita gente que a não fazia. Hoje é obrigatório até ao nono ano embora essa obrigatoriedade seja um pouco falaciosa. Bragança, hoje, nas escolas preparatórias e secundárias terá à volta de três mil alunos ou mais; na altura éramos trezentos no Liceu. A Escola Industrial tinha menos. O facto de sermos poucos permitia que todos nos conhecêssemos e mantivéssemos, ao longo da vida, um certo contacto.
Recordo-me da rivalidade existente entre os alunos do Liceu e da Escola da Cadela, porque os do Liceu eram os indivíduos que iam para a Universidade e os da Escola eram indivíduos que iam para o mercado de trabalho com os cursos de electromecânica, o curso geral do comércio, etc. Uma das maiores tolices que se fizeram a seguir ao 25 de Abril foi acabar com os cursos práticos, com os cursos que davam directamente acesso ao mercado de trabalho.
Hoje existem as escolas profissionais…
Sim, mas os alunos não sabem para que é que servem os cursos que frequentam. É necessário definir para que servem os cursos que se oferecem e que esses cursos estejam direccionados para as necessidades do mercado. É necessário exigir formação adequada e especializada para as diversas profissões.
Se eu quiser abrir um salão de cabeleireiro abro mas, com a obrigatoriedade de ter profissionais da área, perfeitamente profissionalizados. Se eu tiver capital e quiser abrir um restaurante, sim senhor, abro o restaurante à vontade mas ponho à frente do mesmo, pessoas que tenham feito um curso de hotelaria numa escola profissional de hotelaria. Pretende-se desenvolver o turismo, devemos ter pessoas qualificadas nas várias vertentes ligadas a essa área. Assim criamos emprego e vamos servir melhor os utentes desses mesmos serviços. Penso que isto é primário num país que se quer desenvolvido.
Acontece lá fora.
Acontece, e tem que acontecer. O ano passado fui de férias para Cabo Verde. Fiquei agradavelmente surpreendido pelo atendimento. A maneira como as pessoas servem à mesa é altamente profissional. A evolução que eles têm tido é notória, nós não infelizmente.
E é Cabo Verde. Sem menosprezar ninguém.
Foi uma colónia portuguesa com fraco desenvolvimento. Agora encontra-se lá, em visita de estado, o nosso Presidente da República que tem feito elogios extraordinários ao desenvolvimento que aquele povo tem tido desde o 25 de Abril.
No Penafiel conviveste com António Oliveira que é hoje o Presidente do Penafiel. Que outros grandes nomes do futebol nacional recordas dos teus tempos de futebolista profissional?
O António Oliveira ainda faz o favor de ser meu amigo e ainda nos encontramos. O ano passado estive aqui com o irmão dele, Joaquim Oliveira, na Feira do Fumeiro de Vinhais. Chamam-lhe o senhor sport tv.
Em Penafiel estive hospedado na pensão deles, que era a pensão Roseirinha, propriedade dos pais, dona Lucinda e senhor Ribeiro. O António, embora ainda não tivesse idade para jogar, treinava connosco. Houve um grande convívio que se tem mantido, felizmente, ao longo do tempo.
Tenho muitos amigos no futebol: o Calisto, o José Augusto que agora está na Coreia com o Humberto, o Vítor Oliveira, o médico do Gil Vicente, José Albino, Dr. José Albino, que era estudante de medicina na altura em que eu estava a tirar o curso de educação física e lembra-me que ele era chato, chato, chato porque nós fumávamos e ele não, e estava sempre a dar-nos cabo da cabeça: “É pá não te envergonhas? Os vícios dominam-te. És uma vergonha. Tu nem mereces ser gente porque fumas.” E um dia, num jogo transmitido pela televisão, vejo o José Albino a fumar. Depois estive com ele e disse-lhe: “Então ó Zé como é que é? Andavas sempre a dar-nos cabo da cabeça e agora tu estás a fumar?” – “É pá, o futebol é terrível, os nervos do banco e não sei quê, e tal…” Isto é uma pequena história do Zé.
Como as coisas mudam!
Como as coisas mudam, exactamente. Ele, agora, fuma e eu que fumava muito na altura, deixei de fumar, infelizmente, por razões de saúde mas deixei de fumar.
O futebol mudou muito. Para melhor ou para pior?
Para melhor, indiscutivelmente. Nós, os mais velhos, andamos apegados a muitas coisas. No meu tempo… não tem o mínimo de comparação o futebol daquele tempo com o de agora, basta comparar as bolas. Naquele tempo cada bola que batia na cabeça, era um quilo que batia na cabeça, aleijava que eu sei lá, não eram impermeáveis, ainda eram aquelas do pipo de cabedal puro e tinham que se encher e depois atar-lhe um fio para o ar não sair e metia-se para dentro. Aquela parte que ficava muito dura, quando tínhamos o azar de nos bater na cabeça, era pior que uma bala, chegava a abrir a cabeça. Em tempo de chuva, quando era chutada pelo guarda-redes e nos batia na cabeça, toda a gente trincava os dentes, porque era como levar com um calhau.
Os campos eram todos pelados, só Porto, Benfica e Sporting é que eram relvados o resto eram todos pelados mesmo a nível da primeira divisão.
A preparação física é completamente diferente, a maneira de ler o jogo é completamente diferente. Quando vemos imagens do futebol de antigamente, os jogadores quase parados e havia… apareciam jogadores com boa técnica individual. Essa técnica evidenciava-se pela não movimentação dos jogadores.
Hoje privilegia-se a técnica?
Hoje não. Hoje é o aspecto físico que é mais importante. Os jogadores individualistas, como era nesse tempo, não têm lugar no futebol. Tem de ser o individual ao serviço do conjunto. Quem hoje quiser resolver as coisas sozinho, não consegue. O aspecto táctico, muito mais fechado, limita a liberdade do jogador que tem de se sujeitar à táctica. Claro que há jogadores que sobressaem mais do que outros mas, isso é natural, porque é um jogador que marcou um golo, que fez boa abertura…
Antigamente os estádios estavam cheios, havia amor à camisola. Hoje já não existe. Vamos ver se, agora que temos tantos estádios novos, eles voltam a encher…
Isso é indiscutível, porque também não havia mais nada, não havia televisão, rádio não se ouvia porque não havia aparelho para ouvir, os jornais eram pouco divulgados, basta bem dizer que, se falarmos dos jornais desportivos, por exemplo, havia um jornal trissemanário “A Bola” e havia um jornal bissemanário que era “O Record” e não havia mais nada. Hoje há três jornais desportivos diários. Todos falávamos no “Jornal de Notícias”, no Primeiro de Janeiro e no Comércio do Porto. Em Lisboa era “A República”, o “Diário de Notícias” e outro que não me lembra agora. Semanários não havia. Havia o “Diário Ilustrado” e a “Flama”, porque o grau de analfabetismo em Portugal também era muito grande, também não havia compradores porque o dinheiro era pouco.
Na época de 66-67 foste vencedor da taça da federação portuguesa de futebol da terceira divisão nacional, queres falar-nos dessas e de outras conquistas que realizaste no grupo desportivo de Bragança?
Essa foi a primeira, foi a mais saborosa. Foi em Coimbra e jogámos com o Elvas. É a mais saborosa porque ninguém mais a vai ganhar, foi o único ano que foi organizada, portanto não tinha sido antes nem foi depois. Bragança é o único clube da terceira divisão que tem.
Mas a par desses é o único.
Só há três equipas em Portugal que têm esse troféu, uma da primeira, outra da segunda e outra da terceira divisão que é o Bragança. Da segunda e da primeira sinceramente não sei quem são os vencedores. A nossa já foi disputada tarde, foi em 17 de Julho, porque nós tivemos que protestar um jogo, realizado entre o Lamego e o Águeda, em que o Lamego utilizou jogadores irregularmente. Fui assistir a esse jogo porque o Lamego era um potencial adversário e apercebi-me das irregularidades. O Bragança, naturalmente, protestou e foi-nos dada razão muito tarde por isso a final foi disputada em 17 de Julho.
Foi muita, muita gente de Bragança a Coimbra que não contava com tanta gente. As bebidas acabaram ainda antes de acabar o jogo.
Nós desconhecíamos qual era o equipamento do Elvas que, por azar, era exactamente igual ao nosso amarelo e azul. Só levávamos um equipamento porque na altura não havia muito mais e tivemos que jogar com um equipamento que o Elvas nos emprestou.
No fim do jogo houve uma grande invasão do campo. A malta acabou cedo com a bebida e já estavam com os copos e nós, todos aflitos para que não nos estragassem os equipamentos porque os equipamentos não eram nossos e tínhamos de os entregar, no fim, todos certinhos. Isso condicionou um bocadinho a festa mas o público aceitou bem.
Lembro-me que tínhamos ido em vários carros particulares e eu tinha partido o dedo anelar da mão direita. No fim tinha a mão inchadíssima. Mesmo assim, vim a conduzir de Coimbra a Bragança, chegamos aqui às cinco da manhã, dormi até ao meio dia, fui ao Hospital, a mão já parecia uma bola de futebol e ao entrar encontrei um médico e disse-lhe: “Sr. Doutor tenho aqui esta mão inchada…” “Bem pode! Esse dedo está partido.” Respondi: “Que fino é o senhor! Depressa viu que está partido!” “Esse não falha!” Fomos fazer a radiografia e estava mesmo partido. Aguentei as dores durante quase vinte e quatro horas.
Hoje dá vontade de rir?
Dá. Quer dizer, era um bocado de inconsciência. Era a força dos vinte e tais anos em que aguentamos com tudo. Aquela final era muito apetecida. A adrenalina da vitória fez com que eu conseguisse vir a conduzir de Coimbra a Bragança. Se calhar, se tivesse perdido, não acontecia isso
Exacto. No entanto, a tua vida não foi apenas o futebol. Foi também a guerra colonial que, a exemplo do que aconteceu a muitíssimos jovens, foste obrigado a ir. Agora, 30 anos depois do 25 de Abril que sentimentos guardas desse tempo?
Fui cumprir o serviço militar para as Caldas da Rainha. Quando souberam que eu estava lá, foram falar comigo para ir jogar para o União de Leiria. Eu disse: “Pronto pá, eu vou”. Na altura, em Leiria, tirava-se a especialidade de amanuense. Disse-lhes que se me dessem essa especialidade, jogava lá. “Então quanto é que quer?” “Eu não quero nada, eu quero é ver se não vou para Angola ou lá para o ultramar.” Lá mexeram todos os cordelinhos e quando saíram as especialidades, havia sido seleccionado para as operações especiais para Lamego. Vê-se que as cunhas falharam.
Estive três semanas nas operações especiais em Lamego. Pediram voluntários para os comandos e eu não me voluntariei. Na tropa não era voluntário para nada mas, voluntariamente, à força, fui para os comandos e fiz a especialidade que depois era completada em Angola. Tive a oportunidade de desistir e desisti. Mesmo assim, fui integrado numa companhia de caçadores com a especialidade de operações especiais para Angola onde estive de 69 a 71.
Foram dois anos difíceis, onde vi morrer camaradas meus, alguns dos quais, nos meus braços. Mentia-lhes e dizia que se iam safar…
Devíamos embarcar para a metrópole no dia 25 de Dezembro. Meteram-nos no barco que estava ancorado no Porto de Luanda, dia 24 para podermos consoar todos juntos. Foi o prémio por ter estado lá dois anos.
A guerra colonial dava para fazermos outra entrevista. De certeza que terias muito para nos contar. Deixou muitas sequelas em muita gente mas, não queremos ir por aí. Falemos de coisas mais actuais e mais leves. O que pensas da situação do distrito a nível desportivo? Achas que estamos no bom caminho?
É muito difícil, com a desertificação populacional que está a haver no nosso distrito é muito, muito difícil. Há equipas, por exemplo… estou a lembrar-me de Vimioso onde a câmara disse que dava todo o apoio e não se consegue formar uma equipa de futebol. Têm instalações, há a pretensão e até o projecto de construir um estádio com todas as valências, e não há clube de futebol.
Os outros concelhos sentem as mesmas dificuldades. Não há gente. A desertificação é cada vez mais acentuada. Aldeias com trezentos, quatrocentos habitantes, como eram Parada, Coelhoso, Rossas, França, outras aldeias que já participaram no campeonato e, onde neste momento, é impossível por não conseguirem onze pessoas válidas com idade, para jogar futebol. A Associação de Futebol de Bragança, apostou na criação de um maior número de clubes, facilitando, até certo ponto, as inscrições para ver se apareciam mais equipas. Essa aposta falhou e a razão principal, para mim, é que não há gente. Para fazer um clube de futsal, precisamos de cinco jogadores mais dois ou três suplentes, ainda se consegue. Uma equipa de futebol de onze, já exige muita mais gente, o que dificulta muito a sua criação.
Numa das campanhas eleitorais para a presidência da Câmara, numa aldeia aqui perto, um Presidente da Junta dizia: - “Quando nós tínhamos garotos, não tínhamos campo de futebol. Agora fizeram-nos o campo de futebol, não temos garotos.” É assim, infelizmente.
Houve um afluxo grande de pessoas das aldeias para as vilas; depois houve o afluxo das vilas para a cidade de Bragança. Agora acabou porque já não há mais gente para fazer esse afluxo.
Para além do futebol, há hóquei em patins, ténis de mesa e outras modalidades que ocupam menos gente.
E é por aí que devemos ir. Mas debatemo-nos com outros problemas. Não há intenção dos nossos governantes de apostar nessas e noutras modalidades. Falta dinheiro.
Tenho contado isto várias vezes no programa desportivo em que participo na RBA. O Isidro Borges que foi seleccionador nacional de ténis mesa e é treinador de ténis mesa, enfim… é o homem do ténis mesa de Mirandela, é professor de trabalhos oficinais. Em Bragança e talvez em Mirandela há para aí vinte professores de trabalhos oficinais que não têm horário. Na minha escola há para aí uns dez professores que têm horário zero. Estão lá e não dão aulas porque não têm alunos. Ora bem, não era muito mais útil, por o professor Isidro Borges a divulgar o ténis de mesa, a nível do distrito, do que estar ele ali a dar aulas e haver mais vinte que não fazem nada? Ele era útil para a sociedade e os outros também se sentiam úteis a dar aulas.
Era de toda a conveniência, um organismo que fosse capaz de coordenar tudo isto e assumir responsabilidades. O mundo do desporto não é só futebol.
Era necessário fazer alguma coisa.
Sim e não é difícil. O apoio a outras modalidades desportivas resolvia-se facilmente. Veja-se o caso do xadrez. Contratar um indivíduo para vir ensinar as regras da modalidade a Bragança, a Macedo, a Vimioso, a Freixo… fazer o mesmo com o Andebol, o Basquetebol, até porque já começamos a ter instalações numa grande parte das sedes de concelho.
A grande força do futsal no distrito é em Moncorvo. Tem várias equipas e a sede da associação está lá. Com os apoios certos, seria a capital donde irradiaria o futsal para todo o distrito.
O ténis de mesa, naturalmente em Mirandela; o andebol que, teve uma grande implantação em Carrazeda de Ansiães com o professor Jerónimo, irradiaria daí; o hóquei teria como base, Bragança. Com as coisas assim distribuídas poderíamos potenciar um desenvolvimento sustentado dessas modalidades. Poderíamos ter taxas de práticas desportivas a nível distrital que fariam inveja a muita gente, com modalidades apropriadas à nossa realidade, porque querer que o futebol seja dono e senhor, não é possível.
Bragança começou a ter boa formação há uns quatro ou cinco anos, felizmente, mas tinha uma má formação. Independentemente disso, tem sido o alimentador de todas as equipas aqui à volta e isso não pode ser. Quando essa fonte se esgotar, essas equipas vão ter dificuldades em arranjar onze jogadores. Por outro lado também não se compreende que o campeonato de honra da Associação de Futebol de Bragança seja disputado por doze equipas e na competição júnior apareçam apenas três a fazer o campeonato. Onde estão os atletas que alimentaram as equipas sénior?
É necessário haver uma entidade oficial que coordene isto, que queira fazer alguma coisa, porque não é um indivíduo, um particular qualquer que, vai congregar o que quer que seja em prol do desenvolvimento do desporto.
A política também faz parte do teu percurso. Estás de alguma forma desiludido com o rumo que o país está a tomar?
Eu diria que quase todos os portugueses. Aliás o Saramago disse não ia votar, embora tenha feito marcha atrás. O povo também sente o mesmo. Parece querer dizer que não vale a pena…
Achas que o facto de terem sido construídos dez novos estádios de futebol para o EURO 2004 foi a medida mais acertada?
Eu acho que sim, contra a opinião generalizada. Para vencer uma candidatura tinha de se apresentar os dez porque se fossem apenas seis, como alguns defendem, ou oito, ou cinco, não tínhamos ganho. É melhor construir dez para ter o Europeu do que não ter nenhum estádio.
Agora, enquanto nordestino, pensas que devemos defender as nossas diferenças, as nossas individualidades?
Eu acho que sim. Há determinadas províncias em Portugal, como é o caso de Trás-os-Montes e Alto Douro que são naturais, quer dizer, não foram criadas artificialmente; é como os algarvios, os alentejanos, os Minhotos… os outros sim, os outros são indiferenciados, nós não. Temos uma cultura própria e o quererem-nos tirar isso… revolta-me. Houve um senhor, a quem faço questão de chamar “sujeito”, de Vila Real que conseguiu fazer com que nos separássemos. Esse senhor devia ser condenado a cimentar a união desta província, até ao seu último dia de vida. A nossa força está na união e nas nossas particularidades.
E agora porque o tempo escasseia… que personalidade ou personalidades te marcaram ao longo da tua vida?
Nunca fui uma pessoa que tivesse grandes ídolos.
No campo desportivo.
No campo desportivo se calhar o meu treinador do Penafiel, o Frederico Paços, que infelizmente também já não está entre nós, se calhar foi a personalidade que me marcou mais. Na política, o Mário Soares, indiscutivelmente. Socialmente, se calhar estas novas figuras das ex-colónias portuguesas que tão bem se afirmaram e que tão bem têm conduzido os seus países, na generalidade, ao desenvolvimento.
Esta entrevista foi realizada em 2005. Hoje, o meu irmão Tojé, já está reformado do futebol mas, ainda mantém uma perna na política. (Marcolino Cepeda)
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