quinta-feira, 8 de setembro de 2011

História nº 2

Por volta dos meus quatro anos e, dentro da normalidade, apanhei o sarampo. Até aí nada de novo. É perfeitamente natural que as crianças tenham estas doenças infantis, na sua forma benigna, e que se livrem delas no prazo medicamente instituído. Foi o que, com certeza, aconteceu comigo.
No entanto, como o que conta é a originalidade, resolvi dar algum colorido ao meu obrigatório repousar e comecei a fazer uma exigência deveras extravagante.
Queria, porque queria, um sombreiro aberto por cima da cama e comecei a fazer birras e a choramingar.
Os meus pais tinham de ir trabalhar, os meus irmãos tinham de ir para as respectivas escolas e eu tinha de ficar sozinho por algum tempo. Ou porque não quisesse ficar sozinho, ou por me sentir de alguma forma protegido, comecei a choramingar e a dizer que queria um sombreiro.
- Para que é que queres o sombreiro, meu filho? - perguntava a minha mãe.
Não sabia, apenas sabia que queria um sombreiro. A minha mãe lá me levou o guarda-chuva, mas continuei a choramingar, "que não era assim, que o queria aberto..."
Como a minha mãe não conseguisse entender o meu pedido, foi falar com o meu pai que, depois de me ouvir, lá acertou com o desejo: abriu o guarda-chuva e pendurou-mo no tecto do quarto, por cima da cama.
Depois de ver a obra feita, fiquei feliz da vida, não fosse cair uma grande trovoada que me molhasse todo. Acabaram-se as birras e o choro.
Ainda hoje ao falarmos deste episódio rimo-nos a bom rir ao pensar nele.
É caso para dizer que uma pessoa, quando é criança, tem umas ideias originais e engraçadas.
Efectivamente, nem sequer imagino o porquê da minha insistência na colocação do guarda-chuva aberto, pendurado no tecto. Deduzo, hoje, que seria talvez para me proteger de qualquer eventualidade ou, apenas, uma perrice de criança debilitada pela doença que, não sendo grave, acaba por abater.
A criança avança pelo seu caminho de nuvens e de sonhos e tudo para ela deveria cingir-se a isso; no entanto, sabemos que não é bem assim.
O crescimento das pessoas faz-se, também, pelos obstáculos que vamos enfrentando no dia a dia e a vida, por vezes, não é nada fácil.
Penso que as crianças não devem sofrer. O sofrimento destes pequenos seres incomoda-me e penso que deve incomodar toda a gente. Por vezes sofrem e muito, e não são só as doenças que porventura se manifestam ao longo da sua vida.
Não quero dizer com isso que para crescer é necessário sofrer. Não. Quero dizer que o nosso crescimento pessoal faz-se com todas essas coisas porque temos de passar, até mesmo, as doenças infantis.
É assim que o menino se vai tornando homem, aos poucos, devagar. Convém que tudo aconteça a seu tempo, sem tropelias, para que a evolução se faça correcta e adequadamente.
Todos nós nascemos da dor. Mas, já que dela nascemos, não deveríamos ser poupados a ela durante toda a nossa vida?
Não sei, não tenho resposta para isso e talvez ninguém tenha. Sei apenas que a dor será um caminho para algo mais que nós não compreendemos e que tão mal aceitamos.

Marcolino Cepeda
(Retirado do livro "Pontes - segredando segredos", publicado em 2001, edição do autor)

2 comentários:

  1. Bela história Marcolino. Por vezes, sobretudo quando estamos doentes ou aborrecidos, não sabemos o que queremos ou queremos coisas absurdas, ao menos na aparência. Crescemos e não mudamos muito, porém continuamos a não nos aperceber do ridículo de certas situações. Eu costumo dizer que a nossa sorte é termos quem muitas vezes nos apare o jogo, isto é, alguém que gosta de nós. POr mim, nunca agradecerei suficientemente isso.
    Obrigado por mo lembrares. Abraço
    Amadeu

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  2. Amadeu,

    Esta e outras pequenas histórias alimentam a memória que tenho de mim e dos meus. Nunca poderei esquecer-me da família maravilhosa que me calhou. Fui e sou um felizardo, nessa coisa de me apararem o jogo muitas vezes. Digo-te que nunca se agradece o suficiente, por mais vezes que o façamos. Sei-o.

    Um abraço
    Marcolino

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