O rio Fervença da minha infância ainda tinha a água límpida e fresca. Ainda se podia dar um mergulho.
Nessa altura, o verão ainda era verão e o inverno ainda conservava as características de um bom inverno transmontano.
Naquele tempo, os divertimentos não eram oque são hoje e a vida era muito mais simples e natural. Parecia que as pessoas eram mais felizes...
Os invernos eram mais rigorosos. Caíam grandes nevadas. Os fusos de gelo enfeitavam os beirais das casas e os ramos despidos das árvores.
As águas gelavam nos tanques e as mulheres tinham de afastar o gelo para poderem lavar a roupa dos filhos.
Mas, o que mais me marcou foi o facto de, também, o rio gelar. No rio, ali no Jardim António José de Almeida, fazia-se umaenorme camada de gelo que permitia andar por cima dele sem que se partísse.
O António e o Abílio Reis, cujo pai tinha uma oficina de motos, andavam com elas no rio gelado. Eu assistia, admirado, àquela façanha e nunca mais me esqueci do tempo em que o Fervença se transformava numapista de gelo.
Agora, as lembranças do Fervença da minha meninice, levam-me para todos os rios que no mundo existem e sei que todos eles, gelem ou não, têm uma importância primordial.
Um rio não nasce rio. Nasce nascente, numa qualquer serra ou monte e, por aí vai correndo até se transformar em regato onde brilha o sol que bate nele e começa a ter peixes que brilham a esse mesmo sol com todas as suas cores. De regato a riacho ou ribeiro é um pulo, é um passo, e lá vai ele, lampeiro, a correr serra abaixo. Uma ou outra cascata ou cachoeira ou queda de água ou catarata, que isto da língua portuguesa tem muitos chamiços para a mesma coisa, dá vida ao seu leito calmo para lembrar a quem olha que também a vida tem momentos mais tormentosos e agitados.
Há os que correm para outros rios que ficam grandes com os pequenos que neles desaguam e esses, muitos deles, vão direitinhos para o mar. Outros há, ainda, que formam lagos e lagoas, alguns tão grandes que quase parecem mares de água doce.
Enfim, um rio não nasce rio, faz-se rio por montes e vales, por serras e planícies, atravessando, por vezes, vários países, em direção ao seu lugar de repouso, doce ou salgado, onde se mistura e transforma, verdadeiramente, na essência da vida: a origem primeira de todos os seres.
Marcolino Cepeda
(Retirado do livro "Pontes - segredando segredos", publicado em 2001, edição de autor)
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