A esta entrevista vamos chamar “À procura da Liberdade”.
Nasceu em Picote, concelho de Miranda do Douro. Sabemos que não viveu lá muito tempo. Fale-nos, por favor, desse seu começo.
Até aos seis anos vivi em Picote, depois transferi-me para Sendim, ou seja, os meus pais é que se transferiram. O meu pai era Guarda Fiscal. Podia começar já por dizer que pertencia a uma família em que havia dinheiro, porque a maior parte das famílias, como se sabe, nessa altura, não conhecia a cor do dinheiro.
Eram tempos difíceis nessa altura. O dinheiro era escasso, o que potenciava muitas famílias necessitadas…
Eram famílias necessitadas na generalidade. Em Sendim havia duas ou três famílias ricas, havia depois estas ditas remediadas, em que o chefe de família poderia ser Guarda Fiscal, tinha uma remuneração e, já tinham possibilidades de adquirir coisas com dinheiro que a maior parte das pessoas não tinha. Sem querer, isso faz-me lembrar que, li uma história da evolução económica da Europa, em que dei por mim a fazer uma comparação muito estreita entre a economia, a sociedade da idade média e a sociedade que eu conheci quando miúdo, em Picote e em Sendim. Eram os mesmos instrumentos de trabalho, os mesmos sistemas de troca de bens; trocavam-se sardinhas por ovos, por exemplo. Recordo-me de a minha mãe me contar que levava dois sacos de trigo a Carviçais, primeiro ao Pocinho e depois a Carviçais; isto é, onde chegava o comboio, para trazer sal. Isto, só para dizer, como era a situação nessa altura agora, se quiserem, comecem a fazer comparações com os dias de hoje.
Que outras recordações é que guarda da sua meninice, da sua juventude?
Além das dificuldades referidas que eram muito notórias, principalmente antes de as barragens aparecerem e começaram a dar algum trabalho, o que potenciou que algum dinheiro começasse a circular, fez com que as pessoas despertassem e descobrissem a existência de outros mundos e, também contribuiu para que nos apercebêssemos do mundo fechado em que vivíamos, o que levou, precisamente, a que milhares de transmontanos emigrassem para a França, clandestinamente, isto é, sem autorização. Quando eram apanhados, eram devolvidos, muitas vezes, em condições extremamente difíceis, porque até as pessoas da minha idade se lembram. Chamavam-se passadores as pessoas que auxiliavam esses indivíduos a dar “o salto”, assim se chamava o transferir-se para França, tentando, portanto, ganhar algum dinheiro.
Muitos transmontanos deram “o salto", realmente…
Sim, é verdade! Há pouco disse-me que esta entrevista tinha um nome que era “À procura da Liberdade”; deixe-me falar sobre isso.
É evidente que a liberdade, como a fome, como outras situações extremas, como a guerra por exemplo, só quem a viveu… ou melhor, no caso da liberdade, só quem não a teve é que sabe o que é não ter liberdade. Por mais metáforas, por mais palavreado, por mais frases que se utilizem, é difícil caracterizar uma situação extrema e a falta de liberdade é realmente uma situação extrema.
Já dei algumas entrevistas em que dizia que, só com o passar do tempo, me fui apercebendo do que era a falta de liberdade; a privação de liberdade para ganhar o seu pão, a sua vida, levou tanta gente a emigrar, clandestinamente, porque não lhes era permitido sair livremente. As pessoas não tinham liberdade para procurar melhores condições de vida.
É evidente que a liberdade, como a fome, como outras situações extremas, como a guerra por exemplo, só quem a viveu… ou melhor, no caso da liberdade, só quem não a teve é que sabe o que é não ter liberdade. Por mais metáforas, por mais palavreado, por mais frases que se utilizem, é difícil caracterizar uma situação extrema e a falta de liberdade é realmente uma situação extrema.
Já dei algumas entrevistas em que dizia que, só com o passar do tempo, me fui apercebendo do que era a falta de liberdade; a privação de liberdade para ganhar o seu pão, a sua vida, levou tanta gente a emigrar, clandestinamente, porque não lhes era permitido sair livremente. As pessoas não tinham liberdade para procurar melhores condições de vida.
Senti, por volta dos anos 60, ao acabar o curso na academia militar, onde era aspirante, uma necessidade premente de sair daqui, de conhecer outras culturas e resolvi fazer uma coisa que era habitual: viajar para o estrangeiro, normalmente França, Inglaterra… recorríamos a algumas associações que nos arranjavam trabalho. Trabalhava-se durante as férias o que nos dava o suficiente para viver, não diria que dava para pagar as despesas todas, mas auxiliava muito e era uma nova experiência.
Eu fui para Inglaterra. Estamos no ano de 69, precisamente no ano que apareceu a minissaia, tínhamos tido notícia dela, é evidente que em Lisboa não havia, em Portugal não havia mas, tínhamos tido notícia dela. Foi nessa altura que fui para a Inglaterra onde trabalhei num hotel. Inicialmente pensei que era para trabalhar como porteiro para ganhar umas boas gorjetas, mas afinal era trabalho não especializado, internamente, lá no hotel.
Foi uma experiência interessantíssima mas, o que mais me impressionou e, era esta a ideia que queria vincular, foi que eu tive a sensação de que tocava na liberdade. A liberdade via-se em tantas coisas… na minissaia, via-se na forma das pessoas trajarem, Londres já nessa altura era um cidade muito cosmopolita, havia indianos, havia tudo. Enfim, faziam o que queriam, cada um vestia-se como queria vivenciando os seus usos e costumes, havia “speakers corners” onde se reunia muita gente e se falava contra tudo e contra todos. Pegavam no caixote, subiam para cima dele, expunham as suas ideias livremente, de tal maneira que, se tinham audiência estava bem, se não tinham, não havia problema; às vezes, via-se um indivíduo a falar para três ou quatro pessoas, outras vezes a falar para um conjunto de pessoas. Realmente, todas essas coisas e, mesmo a actuação da polícia, ensinavam liberdade.
Eu fui para Inglaterra. Estamos no ano de 69, precisamente no ano que apareceu a minissaia, tínhamos tido notícia dela, é evidente que em Lisboa não havia, em Portugal não havia mas, tínhamos tido notícia dela. Foi nessa altura que fui para a Inglaterra onde trabalhei num hotel. Inicialmente pensei que era para trabalhar como porteiro para ganhar umas boas gorjetas, mas afinal era trabalho não especializado, internamente, lá no hotel.
Foi uma experiência interessantíssima mas, o que mais me impressionou e, era esta a ideia que queria vincular, foi que eu tive a sensação de que tocava na liberdade. A liberdade via-se em tantas coisas… na minissaia, via-se na forma das pessoas trajarem, Londres já nessa altura era um cidade muito cosmopolita, havia indianos, havia tudo. Enfim, faziam o que queriam, cada um vestia-se como queria vivenciando os seus usos e costumes, havia “speakers corners” onde se reunia muita gente e se falava contra tudo e contra todos. Pegavam no caixote, subiam para cima dele, expunham as suas ideias livremente, de tal maneira que, se tinham audiência estava bem, se não tinham, não havia problema; às vezes, via-se um indivíduo a falar para três ou quatro pessoas, outras vezes a falar para um conjunto de pessoas. Realmente, todas essas coisas e, mesmo a actuação da polícia, ensinavam liberdade.
Assisti, sem querer, a uma cena que me impressionou. Uma altura em que eu passava pelo Piccadilly's Circus, um sítio em que se juntavam os hippies que, também nessa altura, estavam na moda. Eu passava muitas vezes por ali e via esse pequeno largo cheio deles; tinha umas escadas internas e o pessoal sentava-se por ali, de qualquer maneira e, houve um dia em que passei e percebi que devia ter havido uma decisão da polícia para evacuar. Já tinham evacuado, praticamente, a praça toda, estavam apenas dois casais, que estavam instalados, rodeados por dois polícias, notoriamente, a tentar convencê-los a saírem de lá e eles, provavelmente, inventando explicações e mais explicações, estou a dizer inventando, porque eu estive, sem exagero, meia hora a assistir à cena e dizia para mim próprio: isto, em Portugal, seria impossível. Verifiquei, sei lá, qualquer má resposta que ofendeu a polícia, ou que a polícia achou mais incorrecta. Pegaram neles pelas costas e meteram-nos em duas carrinhas e foram embora, primeiro impressionou-me a eficácia da polícia. Isto só para dizer que tudo era diferente e tudo me dizia que era quase como se tocasse a liberdade, o que não existia em Portugal.
Realmente, essa sua experiência deve tê-lo marcado profundamente. Temos, no entanto, que voltar um pouco atrás no tempo para lhe perguntar de que forma o marcou o facto de ter nascido nesta região?
Penso que o ter participado no “25 de Abril” teve um pouco que ver, ou talvez muito, com o ter nascido nesta região. Como disse, sou filho de um guarda-fiscal, sou um filho já tardio, tinha dois irmãos muito mais velhos que, por acaso, estiveram em África mas, tinham regressado antes dos acontecimentos que se verificaram, os acontecimentos relacionados com a guerra ultramarina. O regresso, de pelo menos um deles, deveu-se ao falecimento do meu pai. A minha mãe viu-se com um miúdo de oito anos para criar. A única coisa que sabia fazer era a lida da casa. Como o meu pai era guarda-fiscal e, numa aldeia, isso significava mais que ser remediado, quase significava ser duma classe alta, porque havia dinheiro, a minha mãe fez das tripas coração, virou-se como se costuma dizer. Ela ainda está viva, tem 98 anos, está num lar em Miranda, mas foi sempre uma pessoa que me marcou muito porque fez realmente um esforço fabuloso para conseguir educar-me com aquilo que ficou. Quase diria que teve de inventar formas de fazer dinheiro para me educar. Tive o azar de ser de uma aldeia, de não ter feito o exame de admissão na devida altura, o que me obrigou a ir para um colégio em vez do liceu que ficava mais caro e, assim, estudei em Miranda e diga-se de passagem que ao fim do primeiro ano já estava a dizer que não queria estudar mais, porque via os miúdos que estavam a trabalhar na barragem e não tinham que ir preparar as lições para casa. Aí valeu o meu irmão, regressado de África por causa da morte do meu pai que disse: se tivesses tirado más notas, talvez, assim como tiraste boas notas tens de continuar a estudar. Também lhe devo muito a ele, como é evidente, por causa disso. Fui criado de maneira a perceber as dificuldades que existiam em casa. Fiz o 2.º e 5.º anos, vim fazer exames a Bragança e, depois do 5.º, tive de mudar para o Porto. Eu não podia vir para o liceu, como disse e tudo isso ficava bastante caro. Fiz os estudos equivalentes ao terceiro ciclo e aí voltei a Bragança. Tive sempre uma ligação com Bragança e quando chegou a altura de ir para a universidade escolhi a academia militar fundamentalmente por questões económicas. Percebia, perfeitamente, que não podia ir para a universidade. Até gostaria de ter ido para engenharia, mas percebia perfeitamente que não tinha condições financeiras para tal. Ouvi dizer que na academia militar pagavam um salariozinho, enfim, davam subsídio, davam alimentação e não pagava pensão. Foi isso que condicionou a minha ida para a vida militar, não foi efectivamente a minha vocação especial. Foi mais uma condição económica que, diga-se de passagem, aconteceu a muita gente que depois veio a participar no “25 de Abril”, vieram a ser capitães de Abril. Temos que nos lembrar que nessa altura já tinha começado a guerra. A frequência na academia era alimentada, fundamentalmente, por classes ricas. Enfim toda a tradição da nobreza, mas quando começou a guerra deixaram isso para os pobres e os pobres preferencialmente, do interior, por isso é que nessa altura a frequência na academia militar era de Trás-os-Montes e das Beiras.
Falemos de liberdade e Capitães de Abril. Comente, por favor, a incursão das Caldas.
A incursão das Caldas, ou seja, 16 de Março é realmente um movimento feito por pessoas ligadas ao 25 de Abril, em que se verificou uma descoordenação bastante grande. Nessa altura, eu já tinha feito reuniões com elementos da comissão coordenadora do MFA; nessa altura tínhamos uma organização que, como costumo dizer, era uma organização desorganizada. Uma vez tive de explicar numa entrevista, precisamente, a seguir ao 16 de Março das Caldas, e que me perguntaram: "Mas como é que vocês conseguem funcionar tendo a PIDE (que era a polícia política) à perna?" Embora nos sentíssemos vigiados e tivéssemos de andar meio fugidos, o que respondi a esse jornalista foi: "A gente lá se vai defendendo porque isto é uma organização desorganizada. Eles ainda não perceberam muito bem quem são os cabecilhas e, por isso, a dificuldade de actuar. Andam a tentar seguir-nos, a gente troca-lhe as voltas conforme podemos e, se calhar, isto vai dar certo precisamente por causa desta forma muito portuguesa de criatividade, há quem lhe chame desenrascanço, sempre nos resolveu muitos problemas e continuará a resolver."
Nessa altura do 16 de Março, já estava na Escola Prática da Administração Militar. Sou chamado pelo comandante do aquartelamento que, manda reunir todos os oficiais por volta das quatro da manhã e, explica-nos que há tropas a caminho para invadir Lisboa, tropas não, uma coluna, diz ele. Quando eu ia entrar no aquartelamento, aparece-me um oficial que fazia parte da comissão coordenadora do MFA, a dizer-me que já havia tropas a movimentarem-se, designadamente, os comandos de Lamego, que iriam ocupar o Porto e que vinha muita tropa sobre Lisboa e, portanto, fiquei assim sem perceber o que se estava a passar porque, oficialmente, o comando diz-me que era uma coluna militar, a fonte interna do MFA dizia-me que havia muita tropa. Eu próprio não tinha ainda objectivos definidos, dentro das minhas funções de comandar essa unidade. Não sabia qual era o objectivo que me competia ocupar, por outro lado tinha sido feita uma reunião com o comando para verificar o estado de operacionalidade da unidade e quais as funções que lhe poderiam ser atribuídas.
Tinha-lhe sido apenas atribuída uma função de reserva em segunda prioridade, isto é, nem sequer era reserva em primeira prioridade e o comando, ao dizer-nos que vinha uma força sobre Lisboa, diz-nos também, que lhe tinham sido dadas ordens para ocupar uma das entradas de Lisboa, designadamente a entrada do Lumiar; achei estranho e pus ao comandante a seguinte questão: Então, se nós tínhamos, apenas, uma missão pouco prioritária, agora diz-nos que vamos defender Lisboa? De certeza absoluta que vem realmente muita tropa? – “Não, vem só uma coluna, são as ordens que eu tenho e as ordens que eu cumpro, preciso de oficiais que se ofereçam como voluntários para comandar uma companhia que vai posicionar-se e defender uma determinada entrada de Lisboa”.
Nessa altura ofereci-me como voluntário e disse: “Cá dentro não sei bem o que se passa, vou lá para fora”. Houve mais uns oficiais que se ofereceram, formamos uma companhia e fomos então situar-nos, por acaso, junto a uma escola. Tivemos que pedir às professoras dessa escola para ficar ali, dizendo-lhes que ia haver ali um exercício militar e que podia haver uma bala perdida, embora fosse de madeira, que dispensassem os miúdos da escola e elas, efectivamente, mandaram-nos para casa. As pessoas andavam por ali. Lá nos fomos posicionando e, entretanto, dei indicações aos oficiais, que transmitissem aos soldados que não havia tiros; isto é, íamos verificar o seguinte: se viesse muita gente, se viesse muita tropa faríamos apresentar armas e íamos marchar atrás deles por Lisboa, se fossem poucos íamos tentar dissuadi-los, porque assim não valia a pena. Ficámos, assim, nessa posição. Ainda houve uma altura em que se perdeu o contacto, foi precisamente quando essa coluna voltou para trás, aí ficámos mesmo aflitos e pensámos que ia aparecer mesmo. Enfim, não apareceu, tudo correu bem.
De qualquer das formas, não há dúvida alguma, que isso foi extremamente importante para depois melhor prepararmos o planeamento do Movimento. Permitiu perceber como é que as forças reagiam. A minha escola ou o meu quartel reagiu mas, reagiu aparentemente contra. Nós sabíamos que estava a favor, não é? Percebeu-se que… aquilo aconteceu por má organização mas, serviu para se retirarem, realmente, muitos ensinamentos. Foi como se fosse um exercício real, que nos convenceu de que era possível tomar o poder. E, portanto, foi extremamente importante, se calhar, até mais do que se pensa, porque permitiu melhorar muito o planeamento e evitar efectivamente confrontos militares, muito embora, tivéssemos tido situações em que só não aconteceram porque não calhou. Houve realmente muita sorte em determinadas situações: foi o caso de Salgueiro Maia no Terreiro do Paço, não andou aos tiros porque não calhou. A fragata que estava postada no rio teve os canhões apontados. A desgraça era que se começássemos com o primeiro tiro, não sei como conseguiríamos parar.
O seu papel foi fundamental na Revolução dos cravos. Sentiu o peso dessa responsabilidade?
Olhe, estas coisas… quase diria que se fazem sempre, impensadamente, não há heróis pensados, não há situações ponderadas… o objectivo que eu tomei, a escola prática… posso dizer que antes de eu ter sido questionado pelo Otelo, sobre se era capaz de tomar conta dos estúdios da Rádio Televisão Portuguesa, isto porque era perto do quartel. “É só dares ali um passo. Podes lá ir?" e eu disse: “Ó Otelo, conta com isso, conta com isso tomado”, e depois o Otelo ouviu precisamente o Vítor Alves dizer-lhe: “Ó Otelo dizes ao Bento para tomar, ele não tem tropa!” Porque realmente eu não tinha tropa, eu tinha soldados da administração e soldados cozinheiros, padeiros, a maior parte deles até se chamam padeiros, não é? Não sabiam combater com armas. Mais tarde, vim a saber que tinham sido questionados, primeiro, os pára-quedistas para tomar esse objectivo, porque era um objectivo importante. Os objectivos de comunicação social, nessas alturas, são importantes, são extremamente importantes.
Eu próprio, quando li o livro do Otelo, verifiquei que ele tinha feito o seu plano de utilização dos meios de comunicação social com base num manuscrito que estava em anexo e eu, quando vou ver esse manuscrito, reconheci a letra: “é pá, eu conheço esta letra mas, de quem é esta letra?” E verifiquei que a letra era minha. Por acaso conhecia alguém da RDP e fui ouvindo umas conversas, sabia o que é que precisávamos e então fiz, fundamentalmente, uma relação de prós e contras de cada meio de comunicação social nessa altura e qual era, realmente, o mais importante. E o mais importante era, efectivamente, o Rádio Clube Português por uma razão simples. Sabem qual é que era? Porque tinha gerador próprio. Por exemplo, a televisão, a emissora nacional era muito bom, cobria tudo mas, era fácil calá-la, a televisão também não era importante, isto como primeiro meio de comunicação, porque só emitia a sério a partir das seis horas, entre as duas e as seis horas tinha a telescola. Dizia lá, nesse manuscrito que, o principal meio de comunicação era nessa altura o Rádio Clube Português e esse é que era fundamental, e foi. E ele adoptou essa estratégia; isto só para dizer que quando falei sobre a importância dos meios de comunicação e quando decidi tomar a televisão, foi por ingenuidade e inexperiência. Se fosse um combatente experiente teria respondido, provavelmente, como responderam os pára-quedistas: “Pois, sim senhor é importante e, se depois a coisa dá para o torto, como é que é?” Porque isto, quer queiramos quer não… tudo está bem quando corre bem e hoje é fácil dizer que o Regime estava preso por um fio mas, na altura sabia-se lá se estava preso por um fio, o que é que íamos encontrar pela frente ou não, os riscos que íamos correr, ninguém sabia.
O que nós sabemos pela leitura do seu relatório é que a insegurança e as incertezas minavam de certa forma o sabor da vitória da tomada da RTP mas, apesar disso, nem por um momento vacilou nas suas convicções e manteve-se firme no seu posto de comando. Longas setenta horas.
Fale-nos do seu papel e das razões da tomada da televisão como primeiro passo da Revolução:
Conforme estava dizendo, a minha decisão… porque é que eu entrei nisto… já dei, sem querer, algumas das razões. Por ter nascido em Trás-os-Montes, porque, por acaso, encontrei um indivíduo ou outro que… um ex oficial do exército que tinha participado no golpe de Beja e estava numa situação tão extrema que, nem a carta lhe deixavam tirar, não tinha quaisquer meios de subsistência, impressionou-me aquilo. Isto, só para dizer que, não éramos muito politizados mas, realmente, apercebemo-nos que havia muitas coisas que não tinham que estar assim e, daí que quando fui contactado para entrar no Movimento de contestação a uma legislação que tinha saído para os capitães eu fui logo dizendo, isso aconteceu no ano anterior mais ou menos em Julho, Agosto, e me perguntaram se queria assinar essa carta e eu fui logo dizendo: “Mas não há mais que isso, do que só contestar esta legislação?” “Não, isto é um motivo próximo para aqueles que pouco querem fazer… nós queremos ir mais longe.” “Mas é o mais longe que temos de ir realmente”. E a partir daí apareço… a ideia lá está no momento de ir para a televisão, pois bem, vamos para a televisão.
O que queria evidenciar é que só depois de ter dito ao Otelo que sim senhor contasse com a televisão é que eu fui para casa a pensar: E agora o que é que eu faço na televisão? Se eu tivesse tido uma visita guiada, não é? Aquilo tinha sido uma maravilha, seria fácil fazer planos para tomar a televisão. Agora, eu, da televisão, a única coisa que sabia, era o que qualquer telespectador sabe, através do ecrã. Casualmente, foi-me indicado um jornalista que, era o Adelino Gomes, hoje ainda no exercício da profissão, que tinha passado por lá e me deu uns croquis muito maus. O Adelino havia passado lá uns tempos, há uns anos mas, falava-me do estúdio A, do estúdio B, da régie, mas o que era isso? Ele, de televisão também não sabia, já que era, essencialmente, jornalista da rádio.
O que queria evidenciar é que só depois de ter dito ao Otelo que sim senhor contasse com a televisão é que eu fui para casa a pensar: E agora o que é que eu faço na televisão? Se eu tivesse tido uma visita guiada, não é? Aquilo tinha sido uma maravilha, seria fácil fazer planos para tomar a televisão. Agora, eu, da televisão, a única coisa que sabia, era o que qualquer telespectador sabe, através do ecrã. Casualmente, foi-me indicado um jornalista que, era o Adelino Gomes, hoje ainda no exercício da profissão, que tinha passado por lá e me deu uns croquis muito maus. O Adelino havia passado lá uns tempos, há uns anos mas, falava-me do estúdio A, do estúdio B, da régie, mas o que era isso? Ele, de televisão também não sabia, já que era, essencialmente, jornalista da rádio.
O que é que eu precisava de saber, fundamentalmente, eram pontos sensíveis, pontos importantes para dominar a televisão, como não podia deixar de ser, não os encontrei, de tal maneira as coisas correram que, eu, teoricamente, posso dizer que, embora o Otelo diga que ele foi o primeiro a alcançar um objectivo, acabei por ser, eu, o responsável pela conquista do primeiro objectivo definido pelas forças do movimento. À hora prevista estávamos lá.
Porquê “Mónaco”?
Isso tem que perguntar ao Otelo porque ele é que deu o código.
O que eu queria frisar, realmente, é que às três horas estávamos em “Mónaco”, enfim, não estávamos a gozar férias, porque logo a seguir, comecei a questionar-me a mim próprio: “Agora, estará tudo bem?” Fiquei sem notícias, comuniquei a dizer que tinha ocupado “Mónaco” o que fiz por meios de comunicação alternativos, não utilizei o meio normal que era a rádio, por mais voltas que a gente desse, não conseguimos que funcionasse! Eu tinha-o experimentado antes e funcionava na perfeição. Enfim… são estes planos que a gente faz; planeia-se tudo muito bem mas, depois chega a altura e não conseguimos que funcionem conforme planeado. Tivemos que utilizar um meio alternativo que foi comunicar por telefones clandestinos mas, só tinha a capacidade de falar e não de receber, eu comuniquei e fiquei sem saber como é que as coisas estavam a correr lá fora, isto às três da manhã.
Nem sabia se alguém o estava a ouvir ou não?
Pelo menos, a equipa de interface que, fazia a ligação com o posto de comando recebeu a minha mensagem a dizer que tinha ocupado a televisão. Agora eu não sabia… todos os outros objectivos… podia muito bem, estar numa situação equivalente àquela que tinha acontecido no 16 de Março, ou seja, as outras coisas terem corrido mal e comecei logo a pensar: “E agora o que é que eu faço? O que é que eu faço se os outros não saíram do quartel ou voltaram para trás, o que é que eu vou fazer depois?”
A minha esperança era que, estava num sítio que admitia, não fosse bombardeado, porque, enfim… é um estúdio de televisão. Admitia que fosse muito importante e não fosse bombardeado e portanto podia pelo menos fazer uma chantagem e dizer: “Não saio daqui enquanto não me deixem falar para explicar porque é que estou aqui, que não vim roubar ninguém, vim com estas ideias mas, pelo menos, hei-de deixar alguma mensagem”.
Repare, eu estava tão impreparado ao tomar os estúdios da televisão, como não podia deixar de ser que, chegados à altura de emitir e abrir a emissão, aparecem-me as pessoas, funcionários da televisão e, tive de arranjar um método de selecção à última hora, porque, como é natural, apareceram diversos funcionários para trabalhar; nós não queríamos nem podíamos deixar que todos os funcionários entrassem por serem difíceis de controlar. Aquela casa leva muita gente e eu precisava só dos funcionários necessários e suficientes para por uma emissão no ar, para emitir um comunicado e depois ver-se-ia que funcionários eram necessários para dar continuidade a outros programas. Eu precisava, apenas, o número suficiente para por a televisão no ar e então, lá me lembrei de dar ordens a quem estava a guardar a entrada de seleccionar os funcionários aleatoriamente, isto é: cada indivíduo que aparecesse com uma determinada especialidade entrava, quando aparecesse outro funcionário com a mesma especialidade já não entrava. Eram os primeiros funcionários de cada especialidade a entrar. Era jornalista, entra, o próximo jornalista, não entra, já não queremos, não precisamos. Isso criou, depois, situações engraçadas com o Zé Mensurado porque queria entrar a toda força. Tentou entrar como jornalista, mas eu disse: “Não, jornalista já cá tenho”. Tentou entrar como Director de programas: “não, Director de programas já tenho”. Tentou entrar alegando outras funções que desempenhava, porque era um tipo importante e, quando me disseram quem era o indivíduo - apresentava o Telejornal todo arrumadinho – e eu, por mero acaso, havia-me instalado no gabinete dele que estava extremamente desarrumado, fiquei muito chateado com aquilo: “Ai é o indivíduo que é dono deste gabinete? Bolas, já me fez perder a minha tralha toda!” Tinha os meus planos, as senhas, as contra senhas e as ordens. Já me tinha baralhado naquilo e então, quase por vingança, dessa desarrumação disse: “Não entra cá!” E ele não entrou.
Repare, eu estava tão impreparado ao tomar os estúdios da televisão, como não podia deixar de ser que, chegados à altura de emitir e abrir a emissão, aparecem-me as pessoas, funcionários da televisão e, tive de arranjar um método de selecção à última hora, porque, como é natural, apareceram diversos funcionários para trabalhar; nós não queríamos nem podíamos deixar que todos os funcionários entrassem por serem difíceis de controlar. Aquela casa leva muita gente e eu precisava só dos funcionários necessários e suficientes para por uma emissão no ar, para emitir um comunicado e depois ver-se-ia que funcionários eram necessários para dar continuidade a outros programas. Eu precisava, apenas, o número suficiente para por a televisão no ar e então, lá me lembrei de dar ordens a quem estava a guardar a entrada de seleccionar os funcionários aleatoriamente, isto é: cada indivíduo que aparecesse com uma determinada especialidade entrava, quando aparecesse outro funcionário com a mesma especialidade já não entrava. Eram os primeiros funcionários de cada especialidade a entrar. Era jornalista, entra, o próximo jornalista, não entra, já não queremos, não precisamos. Isso criou, depois, situações engraçadas com o Zé Mensurado porque queria entrar a toda força. Tentou entrar como jornalista, mas eu disse: “Não, jornalista já cá tenho”. Tentou entrar como Director de programas: “não, Director de programas já tenho”. Tentou entrar alegando outras funções que desempenhava, porque era um tipo importante e, quando me disseram quem era o indivíduo - apresentava o Telejornal todo arrumadinho – e eu, por mero acaso, havia-me instalado no gabinete dele que estava extremamente desarrumado, fiquei muito chateado com aquilo: “Ai é o indivíduo que é dono deste gabinete? Bolas, já me fez perder a minha tralha toda!” Tinha os meus planos, as senhas, as contra senhas e as ordens. Já me tinha baralhado naquilo e então, quase por vingança, dessa desarrumação disse: “Não entra cá!” E ele não entrou.
No Carmo, Salgueiro Maia teve um papel muito relevante. Acha que ele foi um injustiçado ao longo da sua vida?
Sim, embora tivéssemos que alargar isto um pouco mais. Podemos dizer que a grande maioria dos capitães de Abril foram injustiçados e, já agora, aproveito para prestar uma homenagem a todos os Capitães de Abril que entraram e que… repare, se eu lhe perguntar a si ou a qualquer outra pessoa, mesmo mais velhos: “Quantos capitães de Abril conhece?”, não iria além de um, dois ou três. Eles foram à volta de quatrocentos, e foram indivíduos que correram riscos. Corremos riscos, efectivamente. Eu, pessoalmente, senti-os, não vale a pena estar aqui a citar mas, todos nós corremos riscos a sério e, esses Capitães de Abril que arriscaram as suas vidas, fizeram o 25 de Abril, foram para casa e apenas eles sabem que foram Capitães de Abril e, talvez, alguns familiares e camaradas saibam, no entanto, vão para casa e ficam no anonimato. Se calhar, este seria um bom tema para um estudo sociológico.
A Revolução fez trinta anos (a entrevista foi realizada em 2004), acha que valeu a pena?
Sem dúvida alguma! Já aqui falei de como era a vida que eu conhecia, em que Sendim e muitas aldeias quase viviam ao nível da Idade Média. Socioeconomicamente estavam praticamente a esse nível e vejam como é que estão hoje. Veja como é Bragança hoje! Dizem já que é a quarta cidade onde melhor se pode viver. Estes trinta anos mudaram muita coisa. Já ninguém vive na Idade Média, felizmente.
Quem pensaria, há trinta anos, que Bragança podia ter, podia atingir este grau de desenvolvimento? Portugal, é evidente, podia estar melhor, podia ser tudo muito melhor. Fizeram-se muitas asneiras, desbaratou-se muito dinheiro mas, uma coisa é certa, Portugal alterou-se completamente.
Há indicadores que levam as empresas ou os gabinetes de estudo, de investigação, a não perceberem bem como é que hão-de classificar Portugal: se um país completamente desenvolvido, se um país em vias de desenvolvimento. Tão depressa apresenta indicadores a nível dos maiores da Europa, veja-se a escolaridade infantil, por exemplo, como é que venceu o grau de analfabetismo mas, entretanto, tem licenciados e doutorados desempregados, quer dizer há realmente alterações. A par do nosso principal objectivo que era o desenvolvimento, havia mais dois que eram democratizar e descolonizar.
Há indicadores que levam as empresas ou os gabinetes de estudo, de investigação, a não perceberem bem como é que hão-de classificar Portugal: se um país completamente desenvolvido, se um país em vias de desenvolvimento. Tão depressa apresenta indicadores a nível dos maiores da Europa, veja-se a escolaridade infantil, por exemplo, como é que venceu o grau de analfabetismo mas, entretanto, tem licenciados e doutorados desempregados, quer dizer há realmente alterações. A par do nosso principal objectivo que era o desenvolvimento, havia mais dois que eram democratizar e descolonizar.
A Democracia, Portugal também já começa a sentir que, afinal, a Democracia não é o regime perfeito mas, está implementada o que ninguém pensava na altura… eu, recorda-me que nos primeiros dias do 25 de Abril muita gente dizia: “Não senhor, ainda não é possível dar tanta liberdade às pessoas, as pessoas ainda não sabem o que é que vão fazer com a liberdade, ainda não estão preparadas.” Dizia-se que as pessoas ainda não estavam preparadas para a liberdade, para a democracia.
Apesar do 25 de Abril nós, enquanto transmontanos, continuamos algo abandonados ao nosso próprio destino. Quer comentar?
Eu não sou tão pessimista. Sem querer, já respondi com a história de Bragança ser a quarta cidade com melhor qualidade de vida. Realmente, eu percebo isso porque vivo em Lisboa, outras vezes, passo temporadas cá e, é muito complicado, principalmente, em situações de saúde, não direi tanto em educação mas, principalmente, saúde; não ter a saúde mais perto, ou não ter um médico mais perto. Muito embora essa ligação aos meios de saúde, essa proximidade, nem sempre está ligada à distância interna que, com o helicóptero podemos resolver. Sou capaz de estar mais longe num bairro de Lisboa, se tiver de circular com automóvel e apanhar uma quantidade de filas, do que estar a quilómetros de distância e ter um helicóptero que chegue lá mais rápido. Isto tudo para dizer que a proximidade não é um problema. Não me parece que isso seja assim tanto. Efectivamente, hoje o desenvolvimento de Portugal, está muito assente no Litoral mas, eu, ainda estou em crer que, um dia as pessoas vão começar a descobrir que, o que é bom, é vir e viver em Trás-os-Montes, é vir descansar, que o que é bom, é vir tirar o stress cá para cima e não é ir para a praia.
Que personalidade ou personalidades o marcaram mais ao longo da sua vida?
Isso é, realmente, uma pergunta complicada. Eu podia dizer que, no âmbito do 25 de Abril, e pós 25 de Abril, na preparação, foi Otelo que foi imprescindível, a seguir ao 25 de Abril uma das pessoas que mais me impressionou foi o Costa Gomes porque, notoriamente, evitou as muitas hipóteses que tivemos de entrar em guerra civil. Deve ter sido o grande responsável, apesar daquele seu ar dito de “trolha”, de jogar no "sim, mas, talvez"… foi efectivamente a sua capacidade de jogar com esses factores que evitou que as coisas se descontrolassem, portanto, impressionou-me bastante.
Citando portugueses que se têm vindo a destacar, como por exemplo, António Dâmaso acaba por me impressionar porque está a entrar numa área completamente nova. Uma pessoa que há-de vir a ter muita influência no conhecimento, na área mais desconhecida do corpo humano, que é o cérebro. É uma das coisas que me está a impressionar.
Gostaríamos de estar mais tempo à conversa consigo porque ainda há muito para dizer. Foi um prazer tê-lo connosco, muito obrigado por ter aceite o nosso convite.
De nada, muito obrigado, eu.
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