terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O FIO DAS LEMBRANÇAS (14) O MENINO QUE MATOU A MORTE

(Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)

«Tive febre tifóide complicada por volta dos três ou quatro anos. Lembro-me de episódios para tomar os medicamentos, porque eu não os queria tomar, nomeadamente comprimidos. Lembro-me de um episódio em que o médico me quer obrigar a tomar o comprimido e eu acabo por vomitá-lo. Lembro-me também de um momento em que eu acabei por conseguir tomar os comprimidos. Estava sentado numas escadas e era um dia de sol não muito quente. Lembro-me desse sol amarelado a bater em mim e eu sem frio a tentar beber um copo de água. Digamos que a memória dessa doença é uma memória que está bem viva. Há um episódio de que eu me lembro muito fortemente e que me deixou muita impressão, com o qual sonhei sempre ao longo da vida e ainda hoje me vem nos sonhos. É um episódio que terá acontecido por essa altura, talvez ligeiramente antes. É um episódio em que eu estou a dormir durante a noite, estava muito quente, admito que estivesse cheio de febre, não sei, e eu estava deitado na cama. Nós dormíamos num quartinho, estavam os meus pais numa cama ao lado e eu e o meu irmão Abel dormíamos numa cama pegada à deles, tudo no mesmo quarto, um quarto que hoje olho para ele e vejo-o tão pequenino que nem cabe lá uma cama, mas naquela altura cabiam duas. Estou eu deitado, acordado, e sinto, a meio da noite, uns olhos a quererem perseguir-me, uns olhos a quererem comer-me, uns olhos a quererem agarrar-me, uns olhos muito fortes, muito vivos, que me perseguem. Então encho-me de coragem, não digo nada, levanto-me da cama, agarro nos olhos, vou à lareira da cozinha, que era um cantinho onde se punham os paus a arder, agarro na tenaz, abro a cinza, agarro nos olhos, espeto-os lá e dou-lhes com a tenaz em cima. Mato os olhos e ficam lá enterrados. Os olhos nunca mais me perseguiram. Eu voltei todo contente para a cama e adormeci. Tive sempre a sensação, ao longo da vida, que aqueles olhos eram a morte que me perseguia, era a morte que me queria agarrar, que me queria levar, e que, de alguma maneira, eu enterrei na cinza, que era a maneira que eu tinha de me ver livre dela. Depois passei a associar isso à situação de eu me ter curado. Não sei se isto é verdade ou não, mas é aquilo que ficou na minha memória. É um episódio que se associou a mim ao matar a morte, o que é uma coisa contraditória. A morte não se mata. Um episódio, talvez, dos mais antigos, dos mais vivos e dos mais fortes que nunca me esqueceu ao longo da vida.»

Escrito por Teresa Martins Marques.

Retirado do Facebook.

Sem comentários:

Enviar um comentário