domingo, 8 de fevereiro de 2015

MANUEL BENTO FERNANDES - depoimento muito esclarecedor de um colega de seminário de AMADEU FERREIRA

Pede-me a Prof.ª Teresa Martins Marques, um testemunho sobre as vivências do Amadeu, durante a nossa permanência nos seminários de Vinhais e Bragança. Talvez fosse um erro de casting. Porém, é salutar ir ao baú das memórias actualizar e alimentar as raízes de uma identidade que nos marcou enquanto seres sociais.
«A Ideia-força é pois ir buscar outro caminho!/ Lançar o arco de outra nova ponte/ Por onde a alma passe – e um alto monte / Aonde se abra à luz o nosso ninho,// Se nos negam aqui o pão e o vinho,/ Avante! É largo, imenso, esse horizonte…/ Não, não se fecha o Mundo! E além, defronte, / E em toda a parte há luz, vida e carinho! // Avante! Os mortos ficarão sepultados…/ Mas os vivos que sigam, sacudindo / Como o pó da estrada os velhos cultos! // Doce e brando era o seio de Jesus… / Que importa? Havemos de passar, seguindo,/ Se além do seio dele houver mais luz!»
In Biografia de Antero de Quental.
Revejo, neste poema, ao espelho, o caminho intelectual que o Amadeu seguiu. A ideia-força, deste poema, é a expressão do ser e estar do Amadeu, na busca incessante de novos caminhos e lançar o arco para novas pontes, intelectuais e políticas, que permitam o acesso a novas formas existenciais, novas mentalidades, libertas das apeias da religiosidade tradicional. A situação sócio-económica familiar, não lhe augurava possibilidade de novas luzes, apesar da dedicação e carinho que lhe prestavam. Limpar o pó das crenças e cultos do obscurantismo religioso, pela intervenção escrita e teatral, talvez tenha sido um dos seus lemas de vida. Sempre acreditou que, nesta vida, há mais luzes!
Conheci o Amadeu Ferreira, quando ambos entrámos, em 1961, para o seminário de Vinhais. Algumas viagens, jogos recreativos, actividades estudantis e culturais foram a expressão da forma de ser e estar num determinado contexto. As viagens trimestrais de férias, às nossas localidades, eram uma aventura, quer pelas saudades da família, quer pelas peripécias que aconteciam nos táxis (de noite para não serem apanhados pela polícia), com 8-10 crianças, ou na linha de comboio do Sabor, Douro, e depois Tua. Por outro lado, as viagens de fim de ano, a localidades diferentes, em especial de Espanha, permitiam uma expressão mais livre das ansiedades próprias dos jovens de 12-20 anos, ou os passeios, em dupla fila indiana, para Rio de Fornos ou Cidadela, em Vinhais, ou para o Rio Sabor, os Trinta, campo de aviação ou de futebol, dava-nos uma visão da movimentação social das localidades. Era uma sensação de liberdade que muito contribuía para que o tempo fosse passando.
A vida no seminário revelava um ambiente próprio da época, cuja ética obedecia aos três pilares da organização social, «Deus, Pátria e futebol». Eram os princípios éticos que fundamentavam o comportamento dos cidadãos e a sua realização social. A fé ainda estava no Cristo crucificado e não no Cristo ressuscitado. E os transmontanos seguiam religiosamente estes princípios.
Não admira, pois, que a sociedade rural transmontana, até aos anos 60 / 70, seja uma sociedade conformista, condicionada por uma moral fechada e limitada. A obediência servil era o seu lema. Só assim lhe era reconhecida dignidade de boa pessoa. O cumprimento da norma estabelecida era o objectivo do cidadão para não ter problemas ou conflitos interpessoais ou institucionais. A repressão não era explícita, mas cada cidadão assumia, implicitamente, a moral tradicional de respeito servil à autoridade, como forma de possível sucesso. O pensamento crítico não abundava na cultura regional. O modelo de desenvolvimento serve apenas a alguns. Eram estes que definiam o que era bom ou mau, justo ou injusto.
Apesar de o Concilio Vaticano II estar em andamento (62-65), os seminários levaram tempo a renovar a sua pedagogia de formatação sócio-religiosa. Não se abriam ao mundo na busca de novas perspectivas de realização humana. Felizmente já havia, minoritariamente, alguns formadores com novos sentimentos de alma. Contudo, ainda não “vivíamos num mundo que perdeu a ingenuidade”, no dizer de Karl Jaspers. Por isso, quer queiramos quer não, este ambiente de medo, de opressão e de miséria manifestava-se na mentalidade educativa e nas frustrações que iam criando. Num ambiente triste, ríspido e severo do seminário, um antigo convento, onde os claustros eram um ponto de correria, para libertar alguma energia acumulada, o jovem acaba por descobrir-se e descobrir que o mundo que o rodeia é de repressão na educação, de pobreza da sua terra, de desigualdades sociais, por um lado; o desejo do seu corpo, a camaradagem, a amizade, o amor, por outro. Basta lembrar o que se passava no seminário, no tempo de Vergílio Ferreira, e como retratou, estes sentimentos, maravilhosamente, no seu livro, Manhã Submersa. A manipulação política e religiosa orientavam os cidadãos para a preservação da estrutura agrária familiar, para a manutenção de um meio cultural, propício a determinadas classes. Alguns espíritos mais esclarecidos, e já com uma consciência das injustiças sociais, foram manifestando-se lentamente. O campo cultural não aspergia as flores que iam despontando no meio do deserto. Aos jovens restava dar continuidade à herança familiar ou trabalhar na agricultura e outros afazeres a ela ligados.
Por isso, com o raiar de certos horizontes, a ânsia de ser alguém na vida, de possuir um estatuto social, impelia os jovens a criar os seus modelos nas vivências que o rodeavam. Reconhece-se que nas aldeias e vilas transmontanas da época, anos 50-60, os três modelos de promoção social estavam no médico, professor e padre. Para lá deles só alguns agricultores ou comerciantes possuíam algum estatuto dominante na sociedade. Seguir qualquer destes modelos era a garantia de melhor vida e de evitar a fome.
Como as carências económicas da maioria dos casais da época eram grandes, mandar estudar os filhos para as escolas de Bragança, era incomportável. Não havia outras mais próximas. Só restava mandá-los para os seminários da região ou de fora, conforme as influências dos párocos. No final da 4.ª classe, os párocos, normalmente, chamavam as famílias de alguns alunos para as incentivar para a vocação sacerdotal. Esta selecção não era aleatória. Obedecia a critérios comportamentais éticos e sociais da família ou pela qualidade do aluno. Por outro lado, os filhos ficavam encurralados pela mãe, ou por uma irmã, que sonha com uma vida mais confortável em virtude da prometedora carreira eclesiástica do filho. Constata-se que a maior parte das freguesias contribuíram, com vários dos seus jovens, para o serviço sacerdotal da diocese e outras. Estes, bem como os ex-seminaristas, proporcionaram, às suas famílias, outro nível social e cultural.
A falta de horizontes, para lá dos que o regime apresentava, bem como o domínio da religiosidade, na fundamentação do agir humano, não desenvolveu na maioria dos cidadãos uma consciência cívica e política, para contestar as visões etnocêntricas do governo e da sociedade religiosa. O nordeste transmontano era uma terra «por onde Cristo não passou», na expressão de um conterrâneo do Amadeu, na campanha eleitoral (1958) do Sr. Almirante Américo Tomás, ao nordeste transmontano.
Porém, nos anos 50-60, com a construção das barragens do Douro Internacional, as condições económicas mudaram para alguns. O comércio e a venda dos produtos agrícolas passou a fazer-se directamente porta a porta ou nos largos dos bairros habitacionais. Sendim, terra natal do Amadeu, soube aproveitar as oportunidades comerciais que as circunstâncias proporcionaram. Manhãs cedo, era ver os caminhos, qual formigueiro, cheios de burros e mulas, com a carga de produtos agrícolas, em direcção às barragens de Bemposta e Picote.
Com a emigração a partir dos anos 60, novos horizontes se foram criando, bem como a mudança de paradigmas sociais e religiosos. O diálogo de culturas levou a uma consciencialização da necessidade de outros horizontes sociais e políticos. Para lá da moldagem do carácter, segundo visões tradicionalistas, manifestavam-se já alguns raios de uma ética social, num clima de «ethos social».
Genericamente, todos os rapazes que se formavam, completavam um curso médio ou superior, nessa altura, iniciavam os seus estudos nos seminários. Os que, por aspirações diferentes, ou por falta de vocação, não chegavam à ordenação sacerdotal e decidiam sair, ao longo da caminhada, tinham dois destinos. Se as famílias tinham posses económicas davam continuidade aos estudos. Se as famílias viviam com dificuldades o seu dia-a-dia, face aos escassos rendimentos, ficavam na orla familiar ou procuravam emprego compatível, na região ou fora. A descoberta de nós próprios, nesta fase da idade, era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada, não prevendo as consequências. Nesta perspectiva, o regime político e a igreja, para evitar as deserções dos seminários, não reconheciam o ensino nestes com equivalências ao ensino oficial. Quem saísse do seminário tinha de recorrer aos exames de equivalência ao 2.º ou 5.º ou 7.º ano, para prosseguir os estudos. Muitos “suportaram” mais anos no seminário, para evitar um retrocesso nos anos de estudo, ou até nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí, na nossa íntima liberdade, fazia-se a construção de outros eus cívicos. Por isso, a partir de certa fase encontrar equivalências na Universidade Católica, em Braga. Como, faziam expulsões, diziam, por ausência de vocação.
Nesta perspectiva, temos de constatar que foram estas instituições de ensino que forjaram a mentalidade de muitos dos que detiveram o poder na nossa sociedade, na definição do poder vigente. Mas, também devemos reconhecer que foram os seminários, já numa abertura à sociedade, que proporcionaram aos jovens da época, um nível de desenvolvimento intelectual, social e económico, que de outra forma não adquiririam. Muitos dos que ocuparam, ou ocupam, altos cargos na estrutura sociopolítica e cultural do Estado, são consequência das potencialidades que os seminários lhe deram. Toda a região, como a nível nacional, beneficiou destas instituições e das oportunidades que deram no desenvolvimento cultural. Basta referir que a partir do início dos anos 70 e com o aparecimento dos Ciclos e Escolas Secundárias em várias vilas do distrito de Bragança, os seus professores foram, na maioria dos casos, ex-alunos dos seminários, que se formaram academicamente. O mesmo aconteceu com engenheiros, advogados, médicos, agricultores ou comerciantes.
Se a vida de aluno era difícil e rigorosa, onde a sineta, a «cabra», marcava o horário das actividades, foi esta forma de estar que criou na maioria dos estudantes o sentido metódico de trabalhar, que, na vida intelectual e profissional, muito foram rentabilizadas. Ainda hoje se fazem encontros anuais de ex-seminaristas, reconhecendo a grande influência que os seminários exerceram nas suas vidas. Foi ali, para o bem e para o mal, que os sonhos de um futuro se iniciaram.
Foi nestes ambientes sociais e culturais que toda a comunidade estudantil foi vivendo. Em Vinhais as vivências decorriam entre chicharros e garbanços, entre o berlinde e a pelota, as conversas debaixo dos cedros na quinta, se alternava com o estudo no salão colectivo, com o perfeito a vigiar, não fossem os mais irrequietos perturbar a pacatez servil de outros. Se durante o dia as aulas e as horas de estudo no salão comum eram as peças essenciais, de seguida as correrias entre os claustros marcavam o ritmo, para não falar da noite, onde o despir e vestir era entre os lençóis da cama (!), na camarata colectiva.
Havia os habilidosos, os desportistas, os refilões, os estudiosos, os calados, os «maus», os santinhos e os pasmados… O Amadeu entra nos estudiosos e talvez refilões. Mas, depois de uns anos de amadurecimento, foi desenvolvendo um espírito crítico da situação social e religiosa. Desde os primeiros anos que a sua capacidade intelectual, se manifestou em diversas actividades de aprendizagem e de carácter cultural. Se a maior parte dos alunos manifestava o gosto pelas actividades desportivas, parece-me que o Amadeu preferiu as actividades culturais, que se tornaram mais evidentes já no seminário de Bragança, a partir do 5.º ano.
O Concílio Vaticano II abre alguns horizontes na igreja. A criatividade, em oposição ao saber livresco, passou a ser valorizada. Apesar de as normas de orientação vivencial e mental serem ainda as do Concílio de Trento, já, na altura, o Amadeu respigava os ensinamentos de algumas encíclicas papais, de cariz social, nomeadamente a Rerum Novarum, a Populorom Progressio e, em especial, então em voga, na mentalidade de alguns professores, mais progressistas, a Constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II. A par destas ideias já, nesta altura, se seguiam algumas das teses da Teologia da Libertação, quer de Karl Rahner, quer de Hans Kung ou Shilibeekx, por um lado, ou do Bispo Hélder da Câmara ou Leonard Boff e outros, noutra perspectiva. Foi a partir daqui, parece-me, que o Amadeu iniciou a sua ligação aos livros e ideias da filosofia da Teologia da Morte de Deus e da Teologia Política de Metz. Talvez estas leituras o orientassem para a sua visão política mais tarde.
A renovação da mentalidade eclesial estava em andamento nos seminários, com alguns padres, mais progressistas, embora as normas tradicionais fossem maioritárias. Lembro-me de termos aulas de Ética e de Filosofia, onde já se falava das teses marxistas e existencialista, numa visão social da construção do mundo, onde o homem passava a ser o operário construtor. Já se falava do diálogo de culturas e transversalidade de religiões. Igualmente, nos finais da década de 60, os cânticos religiosos iniciaram uma nova musicalidade e mensagem – «os espirituais negros», o que implicava uma maior participação da comunidade religiosa.
Toda esta mentalidade renovadora inspirou o Amadeu para a construção de um pensamento mais virado para o social e as desigualdades sociais e económicas. Ele próprio sentiu estas desigualdades e carências económicas, tendo-se socorrido das bolsas de estudo, que ganhava por ser o melhor aluno. Está na memória de todos nós, para lá das aulas, o seu trabalho na revista, criada na época, de que foi director, O Radar, onde foi escrevendo os seus textos sobre a visão contextual que já despertava nele um sinal de revolta ou de contestatário. Até o jornal diocesano, Mensageiros de Bragança e o Novidades, voz da igreja, deixaram espaço para a expressão das suas ideias. Quando foi eleito presidente da Academia de S. Tomás de Aquino, o seu espírito cultural manifestou-se, mais profundamente, quer na representação teatral, quer na dinâmica literária. Já tinha uma perspectiva existencialista Kierkegaardiana, nos seus horizontes, com a sua ânsia de saber e busca de sentido para a sua existência, assim como uma visão humanista, que já fervilhava na Gaudium et Spes.
Pode afirmar-se que o Amadeu, pelo seu espírito inquieto, demonstrou nos anos de seminário, que continuaram ao longo da vida, uma ânsia de busca de novos sentidos para a vida, um sentido de equidade e justiça, e uma noção das desigualdades, levando-o, muitas vezes, a recusar o paradigma imposto pelo sistema educativo religioso. Contudo, nunca perdeu a sua identidade regional e a confiança no desenvolvimento dos valores ancestrais. Era como que uma ave na gaiola, na esperança de os ventos da liberdade o verem voar. Provavelmente, esta sua irrequietude mental, foi a razão de não ter terminado o 12.º ano, ponto de chegada de toda a caminhada eclesiástica. Esta sua aspiração, a um mundo novo, pode expressar-se no poema de Miguel Torga:
- Lhibardade, que stais ne l cielo…
Rezaba l padre nuosso que sabie,
Al pedir-te, houmildemente,
L pan de cada die.
Mas la bundade ounipotente
Nien me oubie.
- Lhibardade, que stais na tierra…
I la mie boç crecie
De eimoçon.
Mas un silenço triste anterraba
La fé que reçumaba
De l’ouracion.
Até que un die, corajosamente,
Mirei noutro sentido, i pude,
zlhumbrado,
Saborear, al fin,
L pan de la mie fame.
- Lhibardade, que stais na mi,
Santeficado seia l buosso nome.
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude,
deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Miguel Torga, in Diário XII
A viagem que já percorreu, não foi ponto de chegada, mas o ponto de partida, para novas aventuras, que muito tem contribuído para o desenvolvimento cultural da sua região de origem.
Mais uma vez, Miguel Torga pode ser a expressão da sua contínua actividade mental:
A Viagem:
«É o vento que me leva./ O vento lusitano./ É este sopro humano / Universal / Que enfuna a inquietação de Portugal./ É esta fúria de loucura mansa / Que tudo alcança / Sem alcançar./Que vai de céu em céu/ De mar em mar,/Até nunca chegar./ E esta tentação de me encontrar / Mais rico de amargura / Nas pausas da ventura / De me procurar...»
Miguel Torga, in Diário XII

Termino desejando ao Amadeu, o que F. Pessoa escreveu em Odes, (de Ricardo Reis):
«Segue o teu destino,/ Rega as tuas plantas,/ Ama as tuas rosas,/ O resto é sombra / De árvores alheias.»
Ou na traduçon de Fracisco Niebro:
«Sigue l tou çtino./Rega tues arbles,/Ama tues rosas,/ L restro ye selombra / D’arbles alhenas.»

Publicado por Teresa Martins Marques

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