segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A POBREZA ESTENDE A MÃO À CARITAS (Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)

«Não tenho qualquer recordação de beber leite na minha infância, ou de haver leite em casa. Em dias raros de festa religiosa, as freiras do Asilo podiam dar um copinho de leite feito a partir do leite em pó da Caritas. Não havia vacas na aldeia para produzir leite, pois todas as vacas eram usadas para o trabalho do campo e eram de raça mirandesa. Apenas se conhecia o leite de cabra, sobretudo consumido pelos pastores que tinham cabras ou para fazer algum, raro, queijo, a que também não tínhamos acesso.»
A propósito do queijo, Amadeu conta um episódio muito curioso em que esteve envolvida outra criança - Adília - que mais tarde casaria com o Abel, o irmão mais velho de Amadeu. Acontecia episodicamente a Caritas distribuir alguns alimentos pelos alunos considerados mais pobres da escola. A distribuição era feita pelo padre, que avaliava o grau de pobreza de cada um e, em conformidade, distribuía os mantimentos. «Não posso deixar de referir a vergonha que implicava o receber o estatuto de mais pobre, mas para mim a tudo isso se sobrepunha o sabor do queijo a que de outro modo não teria acesso.» De modo sistemático os alimentos da Caritas apenas iam para o Asilo, a Casa da Criança Mirandesa. Os alimentos distribuídos em pequena quantidade eram leite em pó, feijão, manteiga, queijo e farinha. «Certo dia também eu me desloquei para receber o que me dessem. Creio que ainda não andaria na escola ou andaria nos primeiros anos. Fiquei decepcionado, quando vim para casa apenas com algum feijão e creio que algum leite em pó. Mas os olhos ficaram-me no queijo e vim para casa a chorar, que eu queria queijo e exigia que a minha mãe lá voltasse comigo a exigir o dito queijo cor de laranja, mas a minha mãe tinha vergonha de ir lá pedir e eu ali fiquei pela rua a chorar, com as mulheres da rua a comentar que não estava certo e que tinham dado queijo a “fulano” e “cicrano” e que não mereciam, pois não eram mais pobres. E assim, o queijo tinha-se tornado uma espécie de fiel de balança do estatuto de pobre, já que o queijo era um bem escasso na aldeia. Quanto ao feijão que me tinham dado era colhido por nós na horta, havia sempre em casa e fazia parte da nossa alimentação diária. A certa altura da minha choradeira pelo queijo, a Adília Afonso, dois anos mais velha e hoje minha cunhada, disse: «Ah Amadeu bamos alháls dous a buscar l queiso.» Agarrou-me pela mão, e lá fomos ambos ao local da distribuição. Acompanhei-a calado e deixei que fosse ela a discutir com eles e a apresentar os argumentos. E conseguiu que ambos viéssemos para casa com o nosso bocado de queijo cor de laranja e nova dose de feijão, leite em pó e não me lembro que mais.
Sempre me impressionou aquela determinação da Adília, também ela uma criança, capaz de vencer a timidez e enfrentar aquela gente que distribuía alimentos em nome da Caritas. Ela teve o apoio de todas as mulheres da rua e até hoje esse feito me impressiona. A determinação da Adília, que possivelmente já não se lembra deste episódio, foi sempre uma lição para mim e em mim se gravou como uma das suas características de luta e de voluntarismo.»
Este episódio retrata bem a aldeia e o Portugal do tempo, humilhado e salazarento, pobre, mas sem verdadeira consciência de o ser, envergonhado, estendendo a mão à Caritas.


Publicado por Teresa Martins Marques - O Fio das Lembranças. Uma Biografia de Amadeu Ferreira

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