quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

AMADEU FERREIRA: UM LUXO NA MINHA VIDA! Palavras de ERNESTO RODRIGUES

Depoimento para a Biografia:

Padre, médico, professor: no discurso rural português, fazia-se diferença entre alma, corpo e espírito; entre vocação, enquanto chamamento do Alto, e profissão, arbitrada pelos homens. O mestre-escola nem sempre cursara, e bastava-se minimamente habilitado; médico ou físico podia ser um barbeiro sangrador, alguma discreta mezinheira. Já padre era um estado vinculado ao Além, exigindo, afora uma fé poderosa, doze anos penitentes, de indiferença às seduções do mundo e sacrificado estudo. Outros cursos venciam-se pela metade, ou nem isso. Um ministro coroado significava refrigério último para vidas cansadas, que a medicina não salvara. No seu lado festivo, uma voz bem colocada, retórica mesmo de trapos, o gesto paramentado, a centralidade de igreja ou alturas de branca ermida, tudo conduzia ao sonho de multiplicar tonsuras.
Na lotaria desse desejo, jogavam forte questões de logística, inseguranças, débil situação económica. Sem meios ou família para vigiar sete anos de externato, um seminário descansava pais ‒ alguns, em breve, emigrados ‒, e, com sorte, corroborando cura, sorria a isenção parcial ou total de despesas, não raro, cobertas por alma nobre ou beataria investindo no Juízo Final.
Faltava um ingrediente: vocação. Hoc opus, hic labor est, diria Virgílio. Agora é que eram elas. Para evitar jogo no feminino, vertíamos: aqui é que a porca torce o rabo. Lá viria vida de gemidos, pois não bastava ter acedido ao claustro: urgia dar mostras de devoção, mesmo em férias, submeter-se a regulamento impresso, juntar dois dedos de inteligência, mais necessária numa retroversão que na fácil aceitação da ortodoxia teológica. Fôssemos atentos: o chamamento viria do Alto; e, fidetecas ‒ seja, depósitos de fé, borbulhante ‒, ajudaríamos os nossos legítimos superiores na espinhosa tarefa de eleitores. Enfim, um tirocínio de doze anos culminava em escolhidos do Céu. Eis-nos marcados, ungidos, qual o mesmo Cristo. Alegrem-se os Céus e a Terra. A primeira missa era de consagração.
Estiveste quase lá, meu velho Amigo; ainda pregaste. Mas, agora, estou a ver-te na constrição, e construção, de um futuro por outrem decidido. Sim, somos seres moldáveis na baixa idade; a imagem da argila, que éramos, nas mãos de Deus, e à Sua semelhança, era um logro de maus ceramistas, afeiando sentimentos simples, como dar um beijo (aos pais, inclusive!), rir com gozo, seguir natureza afinal criada por Ele. Na proibição, queriam-nos de rédea curta, para melhor controlo. Palavras e coisas divergiam; o corpo místico desnaturava-se; e a caliça da fé desfazia-se dia após dia, enquanto desbotava a opressiva casa amarela.
O seminário devera ser ninho de afectos, mas condenara-se a inócuos tropos bíblicos. Como se pede abandono dos seus, se aos outros somos destinados? Quem cegamente se fecha numa causa, ou num sujeito (seja Deus), como pode abrir-se aos que o esperam? Neste passo, quando uma inteligência se questiona (pois se o mesmo Cristo interpelou Deus! Felizes os que a puseram de molho…), vai-se aos baldões. Perdem todos: indivíduo, instituição, comunidade. Interessa-nos aquele: farto em carências e subida inteligência, deslizavas, querido Amigo, num drama que dizem da fé, sendo drama de ser.
Vi-te, era eu adolescente, no salto de Filosofia para o curso de Teologia, entre o respeito de condiscípulos e alguns mestres, já noutra ala do edifício, sem camaratas. Cavava-se uma distância ‒ mas prestígio, dizia-me, era ter respirado ali Afonso Praça e seu jornal Cá p’ra nós, ou o vosso Radar. Fundei, então, jornais de parede; e quando, pela idade, me sentia desconsiderado, percebi que falsos mestres, sem pinga de bondade, não deixariam de ser maus, desinspirados eleitores, narcotizando o próprio Deus, cuja tutela evocavam. Com homens imperfeitos quanto eu, chamados embora, não seríamos escolhidos.
Tu, porém, meu ilustre Amigo, eras uma vocação ‒ algo mais forte do que ter vocação, uma vivência cristicamente sacrificial, e verbo, com a pequena diferença de acrescentares o que inexiste em inteligências medianas: olhar em volta e, porque não?, duvidar. Liam-na nos olhos e expulsavam-nos; ou, com manhas de eufemismo, convidavam a sair. Quando esse corpo-em-Cristo largou a sotaina ou, já mais avançado, despiu a fardeta, assumindo novos comportamentos, confessava seus enganos, e como se ortodoxizou por conveniências de seita; mas era tarde: sem pedidos de desculpa aos agora adultos, lesara definitivamente a Igreja.
A mesquinhez dos educadores é mais grave em alegados ministros de Deus, que dEle colhem inspiração; e, ao drama de ser, em espírito bem formado, junta-se o drama de viver com outros, por quem nos sentimos responsáveis ‒ ¬família, amigos, país, universo. A fé só existe enquanto corrente de humanidade; não é um assunto pessoal. Face à totalidade ‒ conceito perigoso, servindo às religiões, e às ideologias maiores do século XX com sua soma de desastres ‒, aproveitamos sucedâneos, seja partido, região, língua...
Falhada hipótese tão esperançosa, em que natureza, acidentes e conflitos esculpiram feições em barro contingente, a alternativa era assentar no precário durante quase duas décadas. Ser estudante-trabalhador e professor, com o intervalo ainda religioso de buscar um sentido na luta partidária, em que se replicava educador de classe. Muitos desses educadores informais velavam, afinal, por futuras mordomias.
Nos teus 40, encontrámo-nos frente à Faculdade de Direito, na Cidade Universitária: era uma nova vida, seguida da regulação do mercado e valores mobiliários. Não nos víramos na década de 80, por ausência minha no estrangeiro. Revimo-nos em 2002, na Quinta da Ribeirinha, Santarém. Já, aí, te lançaras na dignificação da língua-mãe, provendo-a, além do mais, de um corpus bibliográfico, seu tesouro maior. Na última década, só tenho conversas, almoços, viagens, tarefas em comum, a agradecer. No conchego amigo, compreendeste, meu doce vizinho, que há uma diferença entre ser generoso ‒ melhor, equitativo ‒ e ser pasto de arrivistas. Encheste, enfim, o copo de sentido, com que brindamos regularmente. És, Amadeu Ferreira, um luxo na minha vida.

Publicado por Teresa Martins Marques

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