"Mãe, conta-me uma história!" "Que história queres que te conte? Não vês que estou ocupada filha? Pede à avó."
"Mas, mãe, quero que sejas tu a contar-ma... as da avó são muito bonitas mas agora é a tua vez. Quero que me contes aquela do marinheiro que morreu no mar."
Ana pousou a caneta vermelha com que corrigia trabalhos dos alunos. Estendeu os braços para a filha e estreitou-a contra o peito. Fechou os olhos e uma fugaz lágrima rolou pelo rosto.
"Mãe, estás a chorar?" "Não meu amor, não estou a chorar. Estou a pensar no avô."
Pequena ainda, a criança apertou a mãe com força, toda quanta tinha. Fechou os olhos e ficou em silêncio. Durante breves momentos ninguém falou.
Na rua o latido de um cão, o bater de asas de uma andorinha, o ronronar de um gatinho... o motor de um carro despertou como se de trovão se tratasse.
O enlevo quebrou-se e a volta à realidade foi simples como uma lágrima que rola pelo rosto. "Posso contar-te outra, filha? Essa é muito triste." "Sim, mãe, a que tu quiseres..."
"Era uma vez..."
Abril começava frio como um qualquer fevereiro. Marta corria feliz pelo caminho empoeirado. Há muito que não chovia e nem parecia primavera. De vez em quando olhava para trás para ver se a mãe e a avó estavam muito longe. Parava, colhia uma pequena flor, saltitava por ali a tentar perceber se haveria um ninho, um sapo, uma rã... passou, no seu leve voo, uma leve borboleta azul. Uma abelha zumbiu-lhe perto do ouvido. Assustou-se, sacudiu o ar com a mão... "ai que me morde..."
Voltou a correr para junto delas e, instintivamente pegou na mão da mãe. "Então, o que foi que te aconteceu?"
Ana sorriu o seu cândido sorriso. Beijou a filha na testa com um ligeiro beijo e tudo voltou à normalidade de um frio dia de primavera.
A menina soltou-se da mão da mãe e correu atrás de um saltão, a rir. Um passarinho de asas azuis fugiu assustado, talvez, do ninho onde preparava a cama dos seus futuros filhos. Pousou no ramo florido de uma macieira num piu-piu desconsolado.
"Mãe, olha que lindo, mãe!"
Estava parada a olhar para a pequenina ave. A mãe e a avó alcançaram-na. Ana acocorou-se junto dela e as duas contemplavam a beleza da cena, onde, involuntariamente, participavam.
De repente, o passarinho voou e o encantamento quebrou-se. Sorriam as três. Estavam felizes e tranquilas. Não fora o frio e o vento que se fazia sentir, continuariam naquele belo jardim até ao fim do dia. Eram horas de voltar para casa. A menina podia constipar-se e a mãe andava meio adoentada.
Ana tinha essa melancolia romântica de quem não se sente plena de vida. Amava, de todo o coração, a sua pequena família. Tinha uma profissão que a realizava, algum desafogo financeiro, mas não se sentia completa. Tinha anseios que não confessava a ninguém. Sofrimentos a que sobrepunha muitas camadas de camuflagem.
A Páscoa aproximava-se a passos largos. Conservava nos ouvidos o repicar alegre dos sinos do ano passado. A casa da aldeia ficava mesmo em frente à igreja. Não se conseguia dormir, mas não imaginava outro lugar para estar, durante aquele período, que não fosse ali. A filha transpirava alegria e risos. A mãe, algo melancólica, esquecia por algum tempo, a trágica morte do marido.
Para Ana, tudo se resumia a esquecer, a não reviver, vezes sem conta, as emoções que a haviam transformado em quem era. A azáfama inerente à quadra cansava-lhe o corpo e desanuviava-lhe a mente. A limpeza da primavera, os folares, o pão, os doces, os assados, a família alargada que naqueles dias se lhes juntava, aliviava-lhe a dor.
"Mamã?" "Sim filha?" "Deixas-me fazer um folar?" "Para que queres tu fazer um folar, meu amor?" "Para comer, não é mãe? Para que pensas tu que serve o folar?"
Riu-se com a lógica linear da pequena e anuiu com a cabeça.
"Viva, vou fazer um folar!"
Marta saiu para a rua onde a esperavam as suas melhores amigas, Maria e Helena. "A minha mãe deixou, ela deixou!" Correram rua acima, a rir e a saltar, felizes como só as crianças conseguem ser.
Joana vem de dentro carregada de lençóis de linho para cobrir a massa. Era necessário ter tudo pronto para a madrugada seguinte quando fizessem os folares. Estava feliz. Era bom ver-lhe um sorriso no olhar tão triste. Desde a morte do marido nunca mais fora a mesma. Por não se ter encontrado o corpo, não havia sido possível fazer o luto. Haviam sido tempos difíceis aqueles, ponteados aqui e ali por pequenas alegrias, como a formatura da filha, o nascimento da neta que tanto amava.
Mas, a vida insistia em não se tornar fácil e, sem limar arestas, tinha sido madrasta. Fora-o quando o genro, a pessoa mais saudável do mundo, adoecera irremediavelmente, pouco antes do nascimento da primeira e única filha. Não sabia como Ana aguentara tanto sofrimento. A leucemia de Rodrigo levou-o no espaço de duas semanas. Marta nasceu prematura, após o funeral do pai.
Já lá iam seis anos e a menina era a alegria da casa e a razão de viver de Ana. Ela, também, não saberia viver sem a neta. Quando vinham passar a Páscoa à aldeia, era como se acontecesse uma catarse, um novo recomeço.
O facto de poder dormir na cama onde, há muitos anos, havia nascido, transportava-a para o ventre da sua mãe. Compartimentava o seu sofrimento, arrumava-o em gavetas bem fechadas e vivia.
"Mãe, por onde anda?" Perguntava Ana com um sorriso no rosto.
Era Páscoa. Era primavera. Tudo, apesar do frio, resplandecia, gritava vida. Era ali que ela queria estar nesse momento. Era ali que tudo, simplesmente, acontecia.
Cármen entrou com uma braçada de lenha para acender o lume. Atrás dela vinha Fernando com mais alguma. Eram marido e mulher e trabalhavam na casa há muitos anos, desde o casamento de Joana. Não tinham filhos "porque Deus não quis" e faziam parte da família.
Fim de tarde. Quarta-feira. Amanhã é um novo dia e o sol vai brilhar em todo o seu esplendor.
Maria Cepeda
Fico em silêncio...não encontro palavras...
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