quarta-feira, 5 de outubro de 2011

História nº 9

A filosofia é uma ciência muito antiga que nasceu com a morte do mito. Só que o mito não morreu completamente, já que o ser humano vai mitificando conforme pode o que para ele é inexplicável.
Não é da ciência filosófica que vou falar. Falarei, sim, da filosofia de vida das pessoas que encontramos na rua todos os dias e que, ao passarem por nós sorriem e se metem connosco.
Vou, mais uma vez, à minha remota infância, às minhas três ou quatro primaveras, cheias de vida e saúde, alegria e amor.
Sempre gostei de observar e, como não era, propriamente, um rapazinho de ficar quieto, depois de muitas habilidades, algumas já aqui contadas, outras que ficarão por contar, estava proibido pela minha mãe de sair, de me afastar de casa. Então, como último recurso, sentava-me à entrada da porta, com os pés no passeio, a olhar quem passava, tentando comportar-me corretamente para que a minha mãe me deixasse ir brincar depois.
Acabei por me habituar a, logo a seguir ao almoço, vir para ali e, todos os dias, desde que não chovesse, lá ficava eu.
Como a vida é uma sucessão de fatos repetitivos, de segunda a sexta,alguns minutos antes das duas da tarde, passava por ali, vinda da Rua do Paço, uma senhora que trabalhava nos Correios e, como tal, para lá se dirigia. Chamava-se Georgina Fernandes e,invariavelmente, metia-se comigo tendo sempre alguma coisa para me dizer:
- Olá, meu lindo, que estás a fazer aqui tão sozinho?
- Como te chamas, meu lindo?
- Quantos anos tens?
- Que lindo menino e tão simpático!
- Que amor de rapaz e tão sossegadinho aqui está!
- A tua mãe onde está?
- Queres ir trabalhar comigo para os Correios?
Era um nunca mais acabar de perguntas, a que eu, segundo dizem, nunca respondia. Ficava amuado pelo facto de aquela senhora simpática, mas muito curiosa, estar sempre a meter-se comigo e não me deixar observar omovimento da rua.
Enquanto falava, ia-me fazendo festas e carinhos. Passava-me a mão pela cabeça, pela cara e sorria encantada com a minha cara sisuda e aborrecida.
Vinha a segunda e lá vinha a D. Georgina, com um sorriso muito simpático e alegre a provocar a minha sisudez. O mesmo na terça, na quarta, na quinta, na sexta, enfim, durante dias e dias, semanas e semanas e eu... paciência de santo.
Mas chega um dia, a paciência acaba e vai desta, o educadinho rapaz desata a chamar nomes à senhora simpática, com aquela linguagem mimada dos três ou quatro anos:
- Que chata é esta mulher! Velha, feia, deixe-me sua chata! (Isto para não escrever aqui outras palavras mais vernáculas que, segundo dizem, larguei em catadupa!).
A senhora que, mais ou menos, esperava esta reação, não teve mais que desatar a rir como perdida, até lhe doer o estômago e, seguiu para os Correios.
Mais tarde, tendo encontrado a minha mãe, lá lhe contou a peripécia, cheia de prazer e sem poder conter o riso que, teimava em aflorar sempre que pensava em mim, com aquele ar muito zangado e sisudo, pequenino como eu era, a olhar para ela com os meus olhos grandes que, por efeito do arregalar, ainda pareciam maiores.
A minha mãe, por sua vez, contou o episódio em casa, à hora do jantar, quando todos nos reuníamos, pois a hora da refeição era sagrada e, toda a gente a rir a bandeiras despregadas. Não achava graça nenhuma pois,mesmo não entendendo muito bem o que se passava, sabia que era de mim que se estavam a rir.
Esta pequena história que, ao fim e ao cabo, nada tem de extraordinária, foi passando de boca em boca e, ainda hoje, a minha mãe a recorda.
D. Georgina Fernandes era uma pessoa muito divertida que, procurava tirar sempre, o melhor partido das pequenas coisas da vida.
É pena que as pessoas estejam cada vez mais sérias e preocupadas com as coisas "importantes" e não saibam apreciar um momentosimples e caricato, onde a maldade não entra e a espontaneidade impera.
Isto tudo serve para dizer que a filosofia é muito mais do que o estudo dos filósofos e das suas ideias. Filosofia pode ser levar a vida com alegria, tentando tirar dela o melhor partido.
Filosofar pode ser, também, usar de psicologia e não dar importância àquilo que não tem importância nenhuma.
Filosofia pode ser, ainda, construir e alimentar utopias e sonhos e seguir vivendo, mesmo que a vida não seja fácil nem risonha.
O menino que eu era, mesmo não se lembrando conscientemente deste pequeno episódio,de tanto o ouvir contar, entendeu que o melhor da vida é sorrir e pensar sempre que amanhã vai fazer sol, mesmo que esteja um triste dia de chuva. Só assim valem a pena todos os sacrifícios e trabalhos por que temos de passar. Só assim o amor ganha a sua verdadeira dimensão; a amizade, o seu verdadeiro valor; as pequenas vitórias, o seu breve sabor...
É esta a lição que retiro da filosofia desta senhora e que ela tão bem aplicou pela vida fora.
Somos todos diferentes na imensa diversidade que algo ou alguém terá criado. No entanto e, porque não é fácil aceitar as diferenças, admiramo-nos das formas de vida que não sejam como a nossa e até dizemos que os chineses ou os indianos são meio esquisitos, meio estranhos...

Marcolino Cepeda
(Retirado do livro "Pontes - segredando segredos", publicado em 2001, edição do autor)

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