Terá nascido por volta do ano de 1935 sentiu, de alguma forma, o impacto da II Grande Guerra?
Sentir, já não senti, recordo-me da fome que ainda havia pelas aldeias, a vinda de espanhóis que vinham procurar apoio à raia portuguesa, disso ainda me lembro.
Tuizelo foi o seu berço, pertence ao concelho de Vinhais, como foi a sua infância?
A minha infância foi igual à de todas as crianças dessa altura. Aos 6 anos fui para a escola primária, depois da escola brincávamos, havia muitas crianças que agora já não há. Na minha escola éramos 62 alunos e agora está prestes a fechar.
As brincadeiras eram muito diferentes das de hoje?
Eram com certeza, desde o esconde-esconde, à bilharda, à porca, o pião.
Fez os estudos primários na aldeia, quais são as boas lembranças que guarda desse tempo?
Boas lembranças são coisas quase esquecidas, no entanto, as boas recordações estão diluídas no tempo, quer a gente queira quer não. Vão-se apagando.
Guarda uma que o marcou. Quer falar-nos dela?
Quando estava na segunda classe mandaram-me ler um trecho qualquer, era “o pucarinho”. Eu sabia tudo de cor, li. A professora deu-me uma bofetada tão grande que atirou comigo ao chão. Dali por diante quase deixei de ler porque lia de cor, era difícil. Primeiro decorava e depois lia. Nunca mais me esqueço é da minha professora que ainda é viva, a dona Carlota. Foi minha professora até à segunda classe, a seguir foi uma outra professora chamada Elvira, que é uma senhora aqui de Bragança.
Depois veio da aldeia de Tuizelo para Bragança. Foi estudar para o Liceu Nacional, que por acaso fez 150 anos de existência há pouco tempo, foi sem dúvida uma mudança grande?
Foi diferente porque quer a gente queira quer não, das aldeias, nós vínhamos um pouco para ver como é que isto era. Ficámos numa casa onde nos trataram como família mas, seja como for, a gente tinha que estudar mais para aguentar os que cá estavam.
Em que aspectos sentiu maiores mudanças quando veio da aldeia que, era um meio pequenino, para Bragança que, apesar de ser uma cidade pequena, era bastante maior?
Na aldeia passava melhor o tempo do que em Bragança. Havia os amigos… foi fácil fazer amigos em Bragança e fiz muitos.
Como era ser estudante naqueles tempos?
Naqueles tempos ser estudante… olhe, primeiro, às vezes, não havia luz, quando vim para cá ainda só havia a central lá em baixo ao pé da casa do Francês, não havia energia eléctrica que viesse de barragens, aquilo não dava energia eléctrica todo o dia.
Era só numa parte do dia… mas, se calhar, em Tuizelo ainda não haveria?
Foi a primeira freguesia de Vinhais a ter energia eléctrica, a seguir à Moimenta.
Quando veio para Bragança já havia electricidade na sua aldeia?
Não havia, era a petróleo.
Então, as mudanças não foram assim tão grandes…
Na altura, talvez não fosse difícil porque elas no fim de contas eram mínimas. A Bragança dos meus nove anos pouco melhor era do que uma aldeia, passava um carro de vez em quando.
Seguiu-se a Faculdade de Medicina de Coimbra. Da pequena capital de distrito para a capital da universidade, a mais antiga do país. As diferenças já eram mais notórias?
Foram maiores mas, seja como for, vivi numa república durante sete anos, com dez colegas.
Desses tempos guarda mais recordações…
Sim. Havia peripécias todos os dias. Nós estudávamos responsavelmente mas, só para ver como era a vida de uma república nessa altura, sei que o meu pai me dava um conto de réis por mês, esse conto de réis dava-me para o mês inteiro e ainda me sobejava dinheiro. Depois, quando já era meio doutor passou a dar-me dois. Nunca fomos propriamente uns boémios. Coimbra é conhecida como uma cidade de boémios. Havia muita boémia mas nós não chegámos a esse ponto.
Hoje fala-se muito na vida académica, das praxes que passam o limite de tudo. Na altura como era?
Na altura as praxes eram correctas, basta dizer que nós conhecíamos todos os estudantes que havia em Coimbra. Às 10 horas não havia um caloiro na rua, a não ser que andasse acompanhado com um doutor. Não havia bares, não havia nada. Era ordem dos doutores para os caloiros não saírem e a punição… Hoje há coisas nas praxes académicas que em Coimbra nunca existiram, havia umas unhadas, uns cortes de cabelo mais nada para além disso.
Para si o que é que deve ser a festa dos caloiros? Deve ser uma recepção para os enquadrar dentro daquilo que é o espírito académico?
Deveria ser. Infelizmente, nalgumas escolas, nalguns institutos, nalgumas universidades não é isso que se faz. Anda sempre a cerveja à frente de todas as actividades académicas o que eu acho mal, em Coimbra não era nada disso. Agora terá algumas semelhanças…
Foi obrigado a ir para a Guerra Colonial. Foi difícil?
Seria a única coisa que, se pudesse voltar atrás não faria. Não iria para a guerra.
Não ia? Porquê?
É difícil, não aprendi lá nada. Estive sempre no mato, mas sei que havia lá gente que vivia muito bem, os que estavam na cidade, eu nunca lá estive.
Guarda lembranças dolorosas desses 26 meses em Moçambique?
Sim, eu tentei esquecer durante muito tempo, agora já falo nisso.
Era doloroso ver com os próprios olhos?
Tudo destruído pelas zonas onde andei.
O que é que o incomodava mais nesses tempos da guerra?
Ver que não estávamos ali a fazer nada. Sentia que estávamos lá só para ver passar o tempo, mais nada.
Os 26 meses que ali passou, foram um tempo completamente perdido…
Se foi! Eu já era médico, já tinha feito medicina. Comecei a exercer e fui chamado para a guerra do ultramar.
Foi para a guerra como médico? Então passaram-lhe vários camaradas pelas mãos?
Sim. Felizmente não tive um único ferido de guerra. Devo ser dos poucos que se pode gabar disso apesar de ter estado sempre na zona de intervenção.
Foi dos primeiros especialistas em medicina interna a regressar para o mais próximo possível da sua terra. Foi o apelo das origens que o trouxe de volta, o tão falado saudosismo português?
Basicamente, foi por questões familiares. Tinha casado em Vinhais, os meus pais estavam em Tuizelo. De resto, podia ter ficado em Coimbra porque tinha uma clientela razoável, tinha lá consultório.
Comparativamente, o apetrechamento em termos de aparelhos e materiais em Coimbra e Bragança eram bastante diferentes na altura?
Eram bastante diferentes, seja como for, lá tinha conseguido fazer um bocado de medicina, creio que até tornar o hospital numa referência para a zona.
Foi feliz na sua profissão aqui em Bragança?
Fui, a família é que nem por isso.
“Não é fácil após tantos anos de profissão memorizar toda a actividade clínica, não é possível contabilizar o número de doentes que observei e tratei. É impossível contabilizar todos os actos médicos feitos, por mim, diariamente.” São palavras suas quer comentá-las?
É verdade, a gente chegava ao fim do dia sabia lá quantos doentes é que tinha visto, quantos actos médicos é que tinha feito, desde a observação até às biopsias ou estar ao pé de um doente durante horas.
É complicado quando aparece alguém com um problema mais grave?
Hoje já é mais fácil porque hoje há mais gente. Nessa altura era eu quem prestava socorro quando havia problemas na urgência.
Como é que se enfrenta uma situação por exemplo de uma pessoa que tem um problema grave de saúde e que o médico é o primeiro a saber?
Às vezes é complicado dizer à pessoa.
Como é que é?
Às vezes é necessário dizê-lo porque é a única maneira do doente se tratar, tudo depende da parte psicológica que o doente apresente. Há indivíduos que só quando a gente lhe põem a faca à frente é que aceitam a sua doença e também ao contrário há outros que não têm nada e querem estar doentes a toda a força. Quando chega um doente à nossa frente e lhe perguntamos: “- Então do que se queixa?” “- É de tudo.” Não pode ser de tudo. Definitivamente não é. Provavelmente ele até se sente mal de tudo mas normalmente não é a doença.
É mais psicológico?
Sim, sem dúvida. Ou carência, abandono, tristeza…
Desde que o conheço e já lá vão alguns anos, tem sido para mim um exemplo, um marco importante na sua profissão. É diferente ser médico hoje?
É diferente, hoje os meios à disposição dos médicos, a tecnologia, dão outra segurança que noutros tempos não tínhamos. Cabia-nos observar os doentes mas, não tínhamos meios de diagnóstico, as radiografias eram caras, os exames laboratoriais eram caros e tínhamos de facto de ter algum cuidado a observar os doentes.
Era o profissional, o ser humano só, perante o seu conhecimento, a sua sabedoria… hoje são as máquinas e as novas tecnologias que facilitam o trabalho?
Hoje, são as máquinas. Eu ainda continuo a fazer a medicina de antigamente se calhar, sei que tenho exames subsidiários à minha disposição que noutros tempos não tinha.
Prefere trabalhar mais como antigamente?
Não, prefiro trabalhar como agora mas usando métodos de antigamente.
Disse que “manter-me actualizado foi para mim um compromisso de vida, de médico”. Continua a pensar assim?
Sim, sempre. Ainda hoje é esta a minha filosofia. Espero não fazer muitas asneiras.
Em qualquer profissão esse dever deve ser o caminho a seguir, no entanto, a medicina lida com a vida das pessoas, é uma responsabilidade ainda maior, mais acrescida.
E temos de ter a coragem de dizer que quando não sabemos, não sabemos mesmo. Antigamente, quando prescrevíamos medicamentos, dizíamos: “Tome lá isto a ver se lhe faz bem”, hoje não. Hoje sabemos exactamente o que dar para tratar o que a pessoa tem.
Antigamente os cursos de medicina eram mais generalistas, ou seja, não havia tantas especialidades. Hoje em dia parece que há uma para cada parte do corpo. Acha bem que as coisas sejam desta forma?
Da maneira como funcionam, não concordo assim muito. Mas, de facto, essas especialidades existem e, muitas perdem-se a fazer coisas que não deviam. Temos de citar o exemplo duma entrevista a um doente, por exemplo, das doenças cardíacas, doenças pulmonares… o cardiologista e o pneumologista são actores importantes no estudo desses doentes, são aqueles que têm uma maior preparação para fazer exames e interpretá-los e dar orientações. No entanto, esses especialistas não existem em número suficiente e, portanto, quem devia fazer essas entrevistas deveriam ser os médicos de família.
Há falta de médicos no interior…
Estou convencido que a falta de médicos não é assim tanta porque noutros tempos havia muitos menos e, quer queiramos quer não, Bragança tem menos população do que tinha antigamente. A realidade é que no ano 2000 nasceram 1010 crianças e morreram 2750.
Concorda com a ideia de se tirar a maternidade das cidades de Bragança e de Chaves?
Não, acho que não deve tirar-se. Está mal dimensionada porque aqui ao longo do IP4 existem dois hospitais. Do meu ponto de vista chegava um, quando fizeram o hospital de Macedo houve diversas reuniões a ver se a gente concordava ou não. Na altura fui mal interpretado por ter dito “então façam um hospital aqui em Macedo como deve ser e vimos para cá todos, os de Bragança e os de Mirandela”. Assim havia médicos suficientes para poder ter um hospital com funcionalidade.
Seria um hospital central no distrito que acolheria tudo?
Sim, em que os médicos podiam estar em número suficiente para atender as necessidades de cada uma das pessoas. Ora, três urgências a funcionar, uma em Mirandela, uma em Macedo e outra em Bragança acho que não se justifica.
Depois como é que se atenderiam o resto dos utentes? Haveria internamentos nos centros de saúde? Seria essa a solução?
Não, o hospital teria que ser dimensionado para internar onde há meios para poder tratar os doentes. Os centros de saúde podem ser um “hospital de retaguarda”.
Para poderem ficar em observações mais perto de casa?
Sim, perto de casa. Psicologicamente, para o doente e para a sua família é importante. No entanto, o facto de termos tantos hospitais pequenos, com poucas valências, não é uma solução, nem para os utentes nem financeiramente.
Disse-nos que “A medicina interna há trinta anos não existia em Bragança. O Hospital Distrital de Bragança foi dos primeiros hospitais distritais a ter um especialista em medicina interna.” Presumo que não terá sido fácil modificar atitudes e rotinas. Quer falar-nos da sua experiência?
Não foi fácil mas, também, não houve intolerância de quem cá estava. Penso que as coisas foram-se fazendo lentamente e sem agressões.
Contribuiu para a mudança do exercício da medicina em Bragança e até certo ponto, marcou uma época transformando este hospital numa referência. Deve sentir-se orgulhoso com os resultados obtidos.
Sinto. Assumo-o sem falsas modéstias. Penso ter contribuído para a melhoria da saúde em Bragança.
De que sente mais orgulho no seu longo percurso?
Fazer a medicina de um modo diferente, humanizado, com os doentes estudados, saber aquilo que têm. Quando não sabia dizer pedia ajuda a outros colegas, procurar tratar os doentes o melhor possível. Em vez de queremos fazer tudo por nós, valermo-nos de outros especialistas. Será melhor assim para os doentes e até para o próprio hospital.
Concorda com as altas médias/notas que se exigem em Portugal para se entrar para um curso de medicina?
Não. Não quer dizer que não possam ser uns óptimos médicos teoricamente mas, o médico também tem que viver como toda a gente. As altas médias muitas vezes são de indivíduos que nunca fizeram outra coisa na vida senão estudar, a vida não é só estudar.
E que, se calhar, haverá pessoas que tiram médias mais baixas e que gostariam mesmo de dedicar a sua vida à medicina, que nutrem por ela uma verdadeira vocação…
As notas não são importantes. O que é verdadeiramente importante é a vocação, a vontade de se dedicar a uma causa. Claro que o dinheiro é importante. As pessoas têm de viver com qualidade mas, a qualidade de vida vê-se mais nas pequenas coisas e na consciência tranquila de fazer bem feito.
O que é que conta mais para si, a grande média de alguém que entra porque vai ser médico ou aquela pessoa que tem uma média baixa ou não tão alta e que sente uma vocação verdadeira e não pode entrar?
A média não interessa. Aqueles que não puderem entrar não saberemos nunca se eles seriam bons ou maus médicos.
Falo da força de vontade das pessoas, do querer ser, do querer ter, isso torna um profissional, melhor profissional?
Não. Todos nós queremos alguma coisa mas, a maneira como queremos ser é que, às vezes, não está correcta. O que a gente vê de atropelos… a luta pelas notas. Claro que parece que ainda não se podem comprar as notas mas se se pudessem comprar…
“Com o 25 de Abril veio o serviço médico à periferia”. Quer comentar esta sua frase?
O serviço médico à periferia foi das melhores coisas que apareceram para a mudança da saúde no distrito e a maneira de fazer medicina. Nesse grupo vieram médicos, alguns que regressaram à pátria, eram todos indivíduos já médicos mesmo, não eram estagiários, eram experientes. Uns teriam vindo da Suíça, outros de Paris, outros de Argel, etc.
Isso era bom porque eles já traziam a experiência.
Traziam e traziam força de vontade de trabalhar, de melhorar tudo. Havia de tudo.
Foi, portanto, um marco importante.
Foi. São indivíduos que estão todos bem situados na sua carreira académica. Grande parte deles são chefes de serviço dos hospitais centrais.
Acha possível dissociar o homem do médico?
O médico é o reflexo do homem. Antes de se ser médico, é-se pessoa, indivíduo… os valores que esse ser humano “contém” reflectem-se no tipo de medicina que pratica.
Nós, por mais que nunca nos sintamos doentes, devemos consultar um médico com alguma periodicidade para ir vendo como é que está o “motor”. Considera isso é importante?
Depende, eu não sou muito adepto disso. Acho que, as pessoas… não quer dizer que em determinada altura da vida, não devam ir ao médico para ver como é que estão. No seu dia-a-dia se se sentem doentes devem ir ao médico, não se sentindo doentes, não.
Vão lá perder tempo?
Perder tempo ou arranjar uma doença que nunca na vida sonharam. (Risos)
Foi sempre um porto de abrigo de muitos doentes, deve sentir-se orgulhoso deste seu percurso…
Sinto. Nunca fechei a porta a ninguém. Acontecia, muitas vezes, ser acordado durante a madrugada. Falava com a pessoa que telefonava, analisava a situação e, se fosse realmente grave, agia imediatamente, se via que podia esperar mais algum tempo, dava indicações que minorassem o sofrimento até de manhã e aí sim, recebia logo essa pessoa.
Faz mesmo aquilo que gosta, não é?
Sempre fiz o que gosto e continuo a fazer.
Foi durante muitos anos, o director de serviço do Hospital de Bragança, sente, com certeza, o prazer do dever cumprido?
Sim, porque trabalhei sempre mais ou menos bem. Completamente bem, não é possível com os meios que às vezes a gente tem mas, fiz o melhor possível.
Sentiu alguma vez a falta de algum aparelho no Hospital de Bragança?
Aparelhos, propriamente, não porque deram sempre aquilo que nós precisávamos, às vezes demoravam muito a chegar mas, disso não há queixa.
Às vezes, há sempre algo que aqui não se tem e que existe noutros hospitais…
Não, não é bem isso. Podia ter tido cá muita coisa, simplesmente, essas coisas, se não fossem usadas, eu não as queria. Não iam vir para estarem a ganhar pó e a ocupar espaços que faziam falta para outras utilizações.
O facto de ser director clínico do Hospital de Bragança foi o culminar de uma carreira dedicada à sua profissão. Foi uma boa experiência?
Foi até certo ponto, para fim de carreira não foi mau.
Não tinha isso como um objectivo a alcançar?
Não, nunca tive objectivos de ser propriamente um director clínico. Naquela altura os serviços de medicina estavam já com bastantes especialistas e achei que poderia ir para director clínico sem fazer falta à medicina. Ser director clínico é difícil também.
É preciso coordenar uma equipa multidisciplinar…
Sim e ter um feitio especial.
Foi sempre um médico muito humano agora há bastante mercenarismo, concorda?
Há bastante. Não concordo muito com isso, nunca fui escravo do dinheiro. Não é que não tenha que se ganhar algum mas os exageros acho que é o que estraga tudo.
Vamos agora falar de Trás-os-Montes. Sente-se transmontano de alma e coração?
Sou transmontano com alma e coração.
Até que ponto devemos defender a nossa nordestinidade?
Não digo como se diria noutros tempos, até como diria Salazar, “até ao último” mas, devemos defender com as nossas razões e com a nossa maneira de ser, com a nossa maneira de estar.
Em termos de acessibilidades e outras coisas estamos lá no fundo…
Pois estamos, infelizmente. As acessibilidades que há, ainda por cima, são más. Não quer dizer que eu goste de andar com muita pressa, ir daqui ao Porto, por exemplo. Acho que tinha mais prazer antigamente quando passava por essas terras todas que a gente ia conhecendo, almoçando aqui, jantando além. A gente deixou de conhecer as terras, agora só conhecemos o IP4, o que é uma pena.
É tudo muito mais acelerado?
Sim, é tudo muito mais rápido. Vivemos num mundo que anda sempre a voar.
Perdem-se tradições e conhecimentos com essas novas tecnologias e condições?
Perdem mas, essa perda das tradições, estou convencido que se deve mais à desertificação que acontece em Trás-os-Montes.
Acha que alguma vez teremos um tratamento igual ao do resto do país?
Estou convencido de que nunca acontecerá. Mas, seja como for, a vida em Bragança é muito melhor do que viver no Porto.
Mais descansadinha?
Se eu estiver a morar, por exemplo, nas Antas para ir para o Hospital de Santo António, demoro mais tempo do que se morar em Vinhais e vier todos os dias para Bragança. Os transportes públicos que funcionam mal, os automóveis não há onde estacionar, o para e arranca… aquilo deve dar cabo do juízo à gente.
Além de dar cabo do juízo torna-se muito mais dispendioso.
Nós aqui, quem trabalha, ainda vai almoçar a casa, lá têm que almoçar nas cantinas ou no sítio de trabalho. Sai de manhã, às seis da manhã, regressa à noite, às 10 da noite.
Falemos, novamente das acessibilidades no interior do distrito. De Bragança a Vimioso temos uma estrada cheia de curvas mas, tem um tapete em boas condições. De Vimioso para Mogadouro temos outra estrada cheia de curvas com um tapete que “pelo amor de Deus”. Há muito trabalho a fazer a esse nível.
Sim, para levar o progresso a essas localidades. As estradas que existem passam por aldeias onde será importante que continuem a passar. As vias rápidas esquecem-se de quem está pelo caminho. Em Espanha, passei outro dia lá, se a gente quiser meter gasolina tem que sair da via rápida e ir meter gasolina nos sítios onde havia antigamente. Cá quase nem postos de gasolina há.
A auto-estrada será importante?
Passar o Marão ainda é um pesadelo.
A auto-estrada será uma via para trazer ou levar gente?
Estou convencido que tem que vir gente, nos grandes centros já se vive mal.
E relativamente aos turistas? Acha que facilitará a sua vinda?
O que é que nós podemos oferecer aos turistas a não ser o salpicão, o presunto, os rios ainda sem poluir, os montes por desbravar? Os ambientalistas também atrasam um bocado isto, ouvir dizer que há uma barragem para fazer aqui na Serra de Montesinho há não sei quantos anos e ninguém deixa.
E as próprias estradas também?
Não percebo como é que uma ligação daqui a Espanha possa prejudicar seja o que for, alguma minhoca, algum gato-montês que possa estar lá para a zona da Aveleda.
Os ambientalistas em Lisboa, por exemplo, opuseram-se à construção da Ponte Vasco da Gama e ela foi feita. Em Trás-os-Montes um ambientalista opõem-se à construção de uma estrada e pára ali.
Pois pára mas não devia.
Porquê acontecerá? Quais as diferenças?
Há um determinado número de estruturas que não vão estragar nada o ambiente, antes pelo contrário, vão trazer mais vida, onde houver água há vida. Quererem manter o Sabor selvagem, a selvajaria aqui já não devia existir. Nós também temos direito ao progresso.
Fala-se das comunidades urbanas. Qual é a sua opinião sobre a hipotética a separação da província de Trás-os-Montes e Alto Douro?
Acho mal. Acho que devia ser mantida como é, porque todos os indivíduos de Carrazeda, de Freixo, mesmo os de Alijó têm de ser transmontanos, não se sentem, propriamente, durienses. O Douro é uma via por onde passa água, só.
Há quem diga que Trás-os-Montes deveria apostar no turismo para se tornar maior por ser a única fonte de receita com que podemos contar. Concorda com isso?
Só o turismo não. Para chamarmos os turistas temos que lhe oferecer alguma coisa. O que é que lhe oferecemos? A gente chega lá em cima, a Montesinho, a Lama Grande, e vê-se que as casas estão todas destruídas. Este é um pequeno exemplo. Há património que podíamos ter conservado e potenciado e não o fizemos.
Diga-nos o que acha que faz mais falta a Trás-os-Montes.
Vias de comunicação dignas disso. Se houver vias de comunicação os investidores aparecem, porque os terrenos serão mais baratos e a mão-de-obra também. Os técnicos necessários, também, existem já que temos o Instituto Politécnico que está a formar pessoas para trabalhar nas tecnologias de ponta.
Ficou triste com a saída do comboio? Acha que foi uma perda importante?
Eu ainda hoje gostava de viajar de comboio se pudesse. As coisas que mais recordo são as viagens que a gente fazia quando ia até Coimbra. Saíamos daqui às seis da manhã e chegávamos lá à noite mas, levávamos boa merenda.
Seria importante, por exemplo, que se aproveitassem essas linhas e que se criasse um comboio turístico com quartos, restaurantes?
Sim mas, para isso, precisam de arranjar estruturas a meio do caminho porque a viagem até ao Tua, é terrível. Lá também deveria haver estruturas boas para, eventualmente, os turistas poderem ficar se assim o entendessem.
Vinhais é um dos concelhos mais bonitos de Trás-os-Montes. A sua diversidade é uma riqueza de que ainda não conseguimos tirar partido. Será que o seu concelho está condenado à desertificação?
Está, se continuar assim. Há aldeias que já desapareceram, uma que só tem um habitante, um rapaz novo, é na zona das Palas.
Mas Vinhais é um concelho muito íngreme, muito rochoso…
É grande, tem água bastante, tem rios que o atravessam por todos os lados desde o Baceiro, Tuela, Rabaçal, etc.
Por onde passa o futuro do Nordeste Transmontano?
Boa pergunta, a resposta é que não sei se alguém a terá. Da maneira como isto está, vai tudo para o litoral.
Que caminhos é que devemos seguir?
Não sei, sinceramente, é difícil ver para onde isto vai. Somos transmontanos, estamos muito apegados a isto, há muita gente com responsabilidades que é transmontana mas que, a meu ver, poucos, fizeram alguma coisa por esta região, foram para Lisboa e esqueceram-se.
Muitos deles já tiveram força política e estiveram em cargos importantes e, se quisessem, poderiam ter feito mais. Porque é que acha que não fazem mais por isto?
Não sei. Mesmo no tempo do Salazar houve governos que eram quase todos compostos por transmontanos e, é o que se vê. Fizeram aqui o palácio da justiça, o palácio das velhas corporações mas, vias, estradas nada. Parou-se e as pessoas não vieram viver para cá, continuaram a viver lá.
Seria importante a avançar com a regionalização?
Acho que sim. Às vezes, em tom de graça, costumo dizer que o culpado disso já foi o Afonso Henriques, se calhar.
Foi condecorado pelo Ministro da Saúde, Correia de Campos, por serviços distintos com uma medalha de prata. Que peso teve para si essa medalha?
Peso propriamente não teve, eu nem consideraria que aquilo fosse uma medalha só para mim, acho que foi uma medalha para o serviço que eu dirigi durante muitos anos.
Mas honrou-o?
Com certeza que sim. Senti-me bem, não por mim mas, pelo serviço. Eu não atribuiria a medalha à minha pessoa. Mesmo assim, tive muito prazer em recebê-la.
Para terminar esta conversa que personalidade ou que personalidades o marcaram mais ao longo da sua vida?
Muitas. Dentro do campo da medicina foi o professor Vaz Serra que foi meu mestre. Além de ser uma pessoa extremamente correcta era uma pessoa que sabia muito de tudo, foi um óptimo mestre.
Quais são as boas recordações que guarda desses ensinamentos?
A maneira como ele nos tratava e aquilo que nos ensinava.
(Esta foi das entrevistas mais difíceis de realizar por causa da timidez e modéstia do Dr. Arnaldo. Ele tem imensas coisas para contar mas não quis, de forma nenhuma, enaltecer-se.
Foi difícil mas, gratificante. Esperamos que dê para conhecer um pedacinho deste homem notável, este João Semana dos tempos modernos.
Obrigada Sr. Doutor.)
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