(Dr. João Manuel Neto Jacob é um amigo de longa data. Ele e o Marcolino são amigos de infância, eu desde o tempo de namoro com o Marcolino. Foi um dos amigos que esteve connosco nos primeiros momentos conturbados da nossa vida. Foi ele que, quando o Marcolino teve o primeiro descolamento de retina, o levou ao médico (nessa altura ainda não estavamos casados). Enfim, é um amigo de todas as horas. Neste momento está de licença sabática para fazer o seu doutoramento.)
Olá Jacob! Bem-vindo amigo e obrigada por nos dares esta entrevista. Vamos começar, a exemplo do que normalmente fazemos a todos os entrevistados, por te pedir que nos fales da tua infância.
Foi uma infância tradicional, uma infância rural, na aldeia, de que guardo grandes recordações, sobretudo recordações de liberdade de actuação, de andar pelas ruas, pelos campos, pelos montes, mas, também, as recordações da escola, da ida à escola, recordações dos amigos, dos familiares, recordações das pessoas da aldeia com quem sempre tive óptimas relações e ainda hoje tenho. Portanto, é um pouco a nostalgia do tempo passado, do tempo que já foi.
Não queres destacar uma recordação daqueles tempos de traquinice?
Recordo-me imensas vezes de a minha mãe me ter ido buscar aos campos para eu ir almoçar; recordo-me uma vez que me foi encontrar em cima de uma figueira, por exemplo. Uma outra vez, no final do ano lectivo, fiquei doente durante quinze dias, com uma febre intestinal, porque um amigo meu mais velho do que eu agarrou comigo de manhã faltando à escola e fomos à caça com os cães dele. Apanhámos várias perdizes, só que eu já não as pude comer porque, entretanto, com a fome no regresso, e já com muito calor, comemos maças verdes e quentes, e eu fiquei com uma febre intestinal terrível, assunto para cama aí para duas ou três semanas.
Estudaste, como o Marcolino, em Bragança no Liceu Nacional, actual Escola Secundária Emídio Garcia, queres falar-nos desses tempos?
Guardo óptimas recordações, sobretudo a nível de colegas, de alguns professores, doutros menos, se calhar, uma pessoa também não pode gostar de tudo. Recordo sobretudo a vivência da cidade; acho que Bragança na altura era uma cidade pequena que tinha os limites muito próximos, mas uma pessoa viciava-se à cidade, apaixonava-se pela cidade e pelos amigos, e quando não estávamos, a vontade de retornar rapidamente, impunha-se.
Era viciante, a cidade, na altura?
Era viciante porque era pequena e toda a gente se conhecia, andávamos sempre entretidos a fazer coisas, em camaradagem, no café, se calhar a ganhar pequenos vícios porque na altura as alternativas ao vício também eram poucas. Era uma cidade de que se gostava, uma cidade sem conflitos, uma cidade que nos conhecia e conhecíamos... Agora somos átomos dispersos, parece que fizemos mal a alguém…
Talvez por ser pacata e a diferença, comparativamente com a tua aldeia, não ter sido assim tão grande… a mudança afectou-te de alguma forma?
Já me recordo pouco disso mas para mim deve ter sido algo traumatizante pois eu sempre vivi com a minha mãe, o meu pai emigrara tinha eu dois anos para França. A minha mãe ficou comigo e com a minha irmã; entretanto, a minha irmã já tinha vindo estudar para Bragança e eu mantive-me sozinho com a minha mãe, portanto fiquei muito ligado a ela. A minha mãe, digamos, veio depôr-me aqui aos 10 anos para eu ir frequentar o Liceu, e recordo que aqueles primeiros dias de Agosto foram uns dias muito chorosos. Digamos que depois da aclimatação, depois de novas amizades, isso desapareceu e a integração foi rápida, até porque a Bragança da altura era uma cidade com muitas características rurais, uma cidade bastante ruralizada. Havia algumas diferenças na fase inicial, na pronúncia de algumas palavras, na circulação viária, na maneira de se fazer amigos, mas pouco mais…
Entendo que onde sentiste maiores diferenças foi na forma de falar…
Sim, sentia-se sobretudo a nível do vocabulário, é um pouco como hoje o falar transmontano e o falar da linha do Estoril, Cascais, provavelmente um falar mais rural na aldeia e aqui um falar um pouco mais urbano.
Havia, em Bragança, consciência política no meio estudantil?
Eu diria que não estava muito divulgada essa consciência política. Eu só tomei consciência do fenómeno político penso que já, talvez, em 72/73. Nessa altura surgiram aqui algumas pessoas que, sem o realizar formalmente, nos fizeram questionar acerca dessas realidades. Recordo, pelo menos, uma ou duas pessoas já na altura ligadas ao Partido Comunista que nos alertavam para algumas situações e que faziam circular alguns panfletos, alguns livros na altura proibidos, algumas canções, alguns poetas, mas não era uma actividade organizada. Era mais aquele contacto na Praça da Sé, outras vezes no quarto com os amigos é que se falava dessas coisas.
Se a diferença entre Souto da Velha e Bragança, para ti, não foi nada de extraordinário, já não podes dizer o mesmo quando foste para a Faculdade de Letras de Lisboa. Notaste essa diferença?
Não, não notei porque eu também já tinha vivido bastante tempo em grandes cidades, já havia muitos anos que ia passar férias sempre a Paris, em 75 ainda vivi lá cerca de oito ou nove meses seguidos. Depois, quando vou para Lisboa tinha lá já amigos daqui de Bragança, alguns amigos meus tinham ido estudar para a faculdade em Lisboa e, portanto, ao chegar já me sentia perfeitamente integrado.
O que não aconteceu quando vieste da aldeia para Bragança, onde pouca gente conhecias. Tiveste de fazer amigos…
Exactamente. Isso é verdade, mas com essa idade, aos 10, 11 anos, criar amizades é coisa fácil…
Depois de acabar o curso universitário regressaste logo às origens?
Regressei sete ou oito meses mais tarde, depois de fazer um pequeno curso ligado à inventariação de colecções de museus e regressei às origens porque Bragança era o meu destino escolhido.
Voltaste por obrigação ou sentias falta da tua terra?
Não, não voltei por obrigação. Foi uma opção decretada pelo amor à terra. Recordo-me de, pelos menos dois professores, me dizerem que se eu me quisesse dedicar à investigação histórica da região, de facto, deveria ficar em Lisboa, porque era lá que estavam as principais fontes documentais organizadas. Mas eu, mesmo assim, decidi vir para Bragança -- acho que era inevitável. Para já aquele stress, aquele fervor, aquela movimentação de Lisboa sempre me incomodou; eu sempre tentara fugir às horas de ponta, organizava sempre a vida para circular em períodos mortos… E sempre esteve no meu horizonte regressar às origens, a Bragança. O El Dourado era aqui...
Esta é uma pergunta já muito batida mas vou fazê-la mesmo assim. Onde estavas no 25 de Abril de 1974?
Estava em Bragança; quando soube da notícia talvez na rua, mas de imediato fomos para o café “Progresso”, que já não existe, tentar saber mais alguma coisa. Estivemos grande parte da noite até saber mais pormenores vias rádio e televisão.
Quando, conscientemente, vocês assumiram que a revolução tinha acontecido, que estavam em liberdade, qual foi a sensação?
Das coisas que eu mais recordo de Bragança na altura, acho que foi logo dia 26 de Abril uma manifestação que se fez aparentemente de forma espontânea, em que as pessoas iam, de braço dado, da Praça da Sé para o antigo quartel, onde é hoje a Câmara Municipal. Recordo esse sentimento de fraternidade, de solidariedade, de liberdade, essa primeira manifestação que me marcou precisamente por esse espírito de liberdade, essa ideia de fraternidade e solidariedade que se revelou entre as pessoas.
Passou-se, realmente, do 8 para o 80… no dia anterior andavam as pessoas a tentar esconder as coisas e no dia seguinte deram-se asas à liberdade…
Aquilo foi uma explosão que se aguardava, de certa forma; foi uma panela que atingiu os limites e que explodiu, que extravasou. A alegria associada ao 25 de Abril é, também, uma coisa que recordo com muita clareza a nível dos sentimentos das pessoas. Acho que viver uma revolução é um privilégio; passam-se gerações e gerações sem acontecer uma revolução e, se calhar, ainda bem muitas vezes -- outras vezes ainda mal --, mas é um privilégio poder viver esse clima, sobretudo por essas explosões de afectos, de fraternidade, de solidariedade, amizade, alegria, transparência de actuação e de pensamento.
É como diz Zeca Afonso, o povo saiu à rua?
Sim.
Sempre estiveste ligado ao estudo da história e da antropologia, tendo publicado vários textos sobre esses dois temas. Como estudioso dedicaste grande parte da tua obra ao distrito de Bragança, porquê?
Porque são as origens, as nossas paixões; nós estudamos aquilo que amamos. Ninguém estuda aquilo que não gosta, a não ser que seja por uma obrigação formal. Mas, à partida, estuda-se aquilo de que se gosta, aquilo que se ama, e pronto. Trás-os-Montes é aquilo de que gostamos, o nosso berço e a nossa casa – mais do que estudar Trás-os-Montes, é estudarmo-nos...
O distrito precisava de estudiosos que se dedicassem a descobrir a sua/nossa essência?
Precisava e continua a precisar, a começar ainda pelo princípio, a publicação de fontes.
Sobretudo para proporcionar acessibilidade à documentação, disponibilizar informação facilmente através de livros, de CD-Rom’s, Net, etc., e disponibilizá-la o mais cedo possível a quem se queira dedicar a isso – mas, também, em outros formatos às crianças – até porque nós temos autores desde o século XVI, XVII e XVIII que são perfeitamente desconhecidos, e valeria a pena criar uma biblioteca sobre estes autores. Para não falar já de imensas fontes... O livro mais antigo que há escrito sobre a cidade de Bragança ainda hoje está em manuscrito, um livro escrito no início do século XVIII, de José Cardoso Borges. Penso que era dever de qualquer câmara digna desse nome tê-lo publicado já há muitas décadas atrás.
Falaste nos CD-Rom’s, na fase dos computadores… nesta época em que estamos seria importante pegar nessas obras todas, talvez nas obras do Abade de Baçal, e publicar tudo em CR-Rom?
As obras do Abade já estão em CD-Rom. O desejável era publicar toda a nossa documentação, sobretudo aquela que fosse considerada mais fundamental, porque nós não podemos fazer um estudo das nossas origens e da nossa terra sem informação de fácil acesso, pois, caso contrário, a própria investigação fica muito cara. É que, para se investigar determinados assuntos e se tiver de ir a Lisboa ou Porto… está a ver em quanto é que fica a diária nestas cidades?
As deslocações, os estudos?
Fundamentalmente as deslocações e as estadas. Havendo esse material disponível em suporte informático – penso até que já se deveria ter criado um instituto não sei ligado a quê, se ao ensino superior, se camarário, se estatal, mas deveria haver uma instituição especialmente vocacionada para isso…– tudo estaria mais facilitado, até porque hoje o domínio da aldeia global tende a uniformizar tudo, a uniformizar as culturas regionais também, e se nós não mostramos e afirmamos a nossa especificidade mais depressa somos uniformizados…
Mas seria de facto bom publicar toda essa obra num formato mais acessível a toda a gente?
Sim, isso é fundamental fazer-se porque, por exemplo, quem queira estudar a cidade de Bragança deveria contar já com todas as actas das decisões camarárias publicadas, sobretudo as que estão disponíveis do século XVIII, XIX e XX. Isso publicado em volume e em suporte informático, permitiria a pessoas da mais variadíssima índole e da mais variada formação começarem a analisar dentro dos vários enfoques, das várias perspectivas, essa informação.
E, mesmo, criar um site na Internet com detalhes do já publicado para quem quisesse consultar…
Sim, perfeitamente. Podia haver um site dedicado a esse tipo de documentação em que estavam lá essa informação não a mera informação do livro mas o próprio conteúdo do livro. Hoje isso é fácil e é barato disponibilizar isso.
Que importância tem a obra de Abade Baçal?
A obra do Abade de Baçal é uma referência a nível nacional sobre o nosso distrito, sobretudo não tanto pela interpretação que ele faz da história, sobretudo da história local, mas sobretudo das fontes da informação que ele disponibiliza. Ele geriu quantidades astronómicas de informação. Hoje a informação que ele geriu manualmente é uma informação ainda difícil de gerir até a nível informático. Ele geriu isso manualmente, tinha processos próprios, adequou metodologias próprias para manipular essa informação, e constitui um manancial que poucos distritos do país se podem orgulhar de possuir.
Fala da história do distrito em relação a tudo?
De tudo, aborda tudo. Todo o tipo de informação está na obra do Abade. É uma obra global!
Está lá toda a cultura do distrito?
Genericamente, digamos que aquilo é um corpus da cultura do distrito de Bragança.
A reedição completa da obra do Abade Baçal foi um projecto de grande envergadura cultural, estás satisfeito por ter sido um dos mentores desse projecto?
Claro que estou. Era uma obrigação de qualquer nordestino, sobretudo de uma pessoa ligada a uma instituição que tem obrigações nesse domínio, de proceder a essa divulgação e a essa reedição, agora já com critérios científicos mais actualizados. Era e é fundamental disponibilizar essa informação a toda a gente, e penso sobretudo nas pessoas que andam aqui nas escolas, os estudantes, porque senão perdem as suas referências... Qualquer dia acontece que falar-lhes do Abade de Baçal, falar-lhes da cultura nordestina, isso nada lhes diz, não sabem nem imaginam o que isso seja. Conhecem a cultura globalista da WEB, mas não conhecem a especificidade da sua própria cultura local, a cultura onde eles nasceram…
Para isso seria bom fazerem-se concursos dedicados ao Abade de Baçal e à sua obra…
Nós já fizemos vários concursos, até na altura da reedição das Memórias também fizemos um concurso. Curiosamente, o maior número de concorrentes, sobretudo das escolas, foi até mais do sul. Digamos, que, o distrito aderiu, mas a maior adesão foi de facto do sul e, até, inclusivamente das ilhas.
Como é que está a distribuição da obra do Abade de Baçal?
Temos que pensar é já numa reedição, numa outra reimpressão porque, neste momento, já está praticamente esgotada.
Só existe a obra em português?
Sim.
Nunca pensaram no inglês, por exemplo, que é uma língua mais universal?
Penso que em termos científicos não tem muito interesse. Primeiro, geralmente os ingleses estudam a nossa história a nível nacional, não a nível local; estudam as sínteses sobre a nossa história nacional ou então especificidades, estou a pensar em investigadores que estudaram, por exemplo, os descobrimentos. Mas esses investigadores estrangeiros quando entram em núcleos muito específicos de investigação têm que dominar a língua.
Como director do Museu Abade de Baçal estás satisfeito com o trabalho desenvolvido à frente do mesmo?
Uma pessoa nunca pode estar satisfeita, e nunca pode estar plenamente satisfeita porque eu, pelo menos, tenho plena consciência que poderia fazer mais e melhor. Para se fazer muito melhor tinha que se ter mais pessoal, pessoal qualificado, pessoal técnico e mais dinheiro, dinheiro para execução de projectos. Se eu lhe disser que o orçamento do museu, já há muitos anos a esta parte, nunca chega ao final do ano, nunca chega para pagar as despesas normais de funcionamento; se eu lhe disser que, este ano, grande parte do orçamento ou já na sua quase totalidade, está esgotado, ou se não estiver esgotado estará dentro de um mês… Não é fácil uma pessoa produzir e divulgar actividades sem suporte financeiro.
Vive-se sempre um pouco à beira do precipício, em termos financeiros?
Faz-se uma gestão, digamos, micrométrica do tostão, do cêntimo neste caso. Fazemos muito trabalho que, à partida, deveria ser outras pessoas a fazer esse tipo de trabalho, mas, para poupar dinheiro… Depois, temos problemas, por exemplo, a nível da divulgação de actividades. Posso dizer que, no próximo domingo, vamos ter a inauguração de uma exposição de fotografia da região, mas não temos dinheiro para divulgação, não temos dinheiro para imprimir convites ou cartazes, por exemplo, quanto mais produzir desdobráveis ou catálogos.
Falta o apoio institucional?
O Ministério da Cultura é o organismo de quem dependemos. Pelos vistos, há problemas financeiros a nível do Ministério da Cultura e isso reflecte-se não só no Museu Abade de Baçal mas, genericamente, em todos os museus dependentes da tutela do Estado.
Achas que o Estado olha pouco para a cultura?
Penso que quando há crises económicas é o primeiro ministério a sentir e a pagar a crise…
Acho que, neste domínio, se deveria investir no médio e no longo prazo; acho que não tem havido grandes leituras nem investimentos no médio e no longo prazo a nível político, melhor, a nível genérico do país. Nós andamos sempre de crise em crise, a gerir a crise diária…
Vendo essas dificuldades todas para quando o fim das obras de ampliação do museu?
As obras já deveriam estar completadas há muito tempo. Eu tenho esperança que comecem na primeira metade deste ano, mas não posso garantir que irão recomeçar e, em princípio, o prazo de execução das obras é de um ano apenas. Como já nos habituámos a que muitas vezes os trabalhos das inaugurações coincidam com determinados períodos políticos mais propícios, estou com a esperança de que neste caso também haja essa coincidência e que, por isso, possam avançar brevemente.
Faz falta esse espaço?
Faz. Faz falta sobretudo para exposições temporárias. Vão ser mais algumas salas da exposição permanente que vão ser abertas, mas o novo espaço das exposições temporárias é fundamental. Como hoje não temos espaço para exposições temporárias, temos de jogar ou gerir pequenos espaços ou, então, desmontamos a exposição permanente para montar outras exposições. Desmontamos uma sala ou uma determinada área para poder instalar lá essa nova exposição temporária. Nos museus, o problema de andar a montar e a desmontar a exposição permanente, faz acrescer sempre riscos às peças. Grande parte da degradação do acervo de um museu deriva disso, da demasiada manipulação que se faz desses materiais.
A casa do Abade de Baçal continua abandonada à sua própria sorte ou já se conseguiu encontrar uma solução para a sua recuperação?
Tanto quanto eu sei, a solução que está neste na mesa é uma solução que passa pelo entendimento entre os herdeiros da casa. Penso que eles estão a pensar restaurar/recuperar a casa, até porque as instituições do estado nunca pegaram nesse tema com unhas e dentes. Veremos…
Passava por quê? Por adquirir a casa aos herdeiros e o próprio estado entregar-se dela?
Em princípio teria que passar por isso, só que, pelos vistos, os herdeiros, pelo menos alguns dos herdeiros, entenderam que a valia da casa era muito superior ao entendimento que fizeram as câmaras e, portanto, nunca chegaram a um acordo a esse nível. Mas penso que, também, pode ser uma boa solução serem os herdeiros a restaurar o edifício, até porque a parte privada pode introduzir um dinamismo de gestão que, muitas vezes, é difícil de introduzir por uma instituição pública. Ali, de facto, acho que funcionaria muito bem um núcleo museológico ligado à figura do Abade e, depois, como a casa é muito grande, penso que poderia ser um bom investimento a sua utilização como turismo de habitação, com restaurante e parte residencial.
Uma espécie de residencial com museu e historial sobre a vida do Abade?
Exactamente. Porque se as nossas comunidades urbanas e rurais se não se agarram a determinados tipos de símbolos com mais-valias já firmadas, sejam elas patrimoniais, culturais, geográficas – o que forem –, para a sua própria sobrevivência, qualquer dia também desaparecem, fisicamente ou por substituição. Têm que ser estimuladas estes tipos de iniciativas por toda a região para as aldeias se manterem com população e com vitalidade e sustentação própria.
Na tua opinião, que cultura por cá se faz ou não se faz?
Isso é uma coisa muito complexa… Primeiro, teremos que definir logo a própria noção de cultura, mas entendendo isso como se entende genericamente, a maior parte da cultura a que nós temos assistido é uma cultura relativamente erudita ou que pretende ser relativamente erudita, a não ser algumas manifestações que agora têm vindo a ser valorizadas, como por exemplo quando se fez agora a bienal da máscara – em cujo projecto também estivemos envolvidos –, alguns desfiles mais ou menos folclóricos relativos a certo tipo de actividades tradicionais do linho e da lã. Mas, genericamente, a pouca cultura que se faz é uma cultura algo elitista: a maior parte das exposições que passam pelo Centro Cultural estão ligadas à pintura, por exemplo. Em termos de estruturação da nossa cultura rural não há nenhum projecto que eu conheça e isso vai tender a perder-se. As poucas coisas que têm surgido são pequenos núcleos museológicos rurais ligados às alfaias agrícolas que, em termos de características e em termos de museologia, têm pouco valor. O valor principal que têm está ligado, sobretudo, à vertente do ajuntar de algumas peças que eles vão expondo ao longo das paredes, mas muitas vezes, precisamente por isso, essas peças perdem-se mais rapidamente pela forma como estão ali expostas numa sala, penduradas numa parede, do que se estivessem nos locais de origem, porque essas peças nas mãos das pessoas que as manipularam toda a vida são bem tratadas, há uma ligação afectiva verdadeira, e a sua utilização, ainda que esporádica, impede, por exemplo, a sua infestação pelo caruncho. Na minha perspectiva, Bragança precisava de um museu de características rurais ligadas à nossa cultura tradicional. Para isso tinha que se perder muito tempo e algum dinheiro na investigação, na angariação de peças e depois fazer-se uma musealização condigna. O Museu Abade de Baçal é o museu tradicional, é um museu generalista e não justifica ele hoje estar a mudar de rumo e dedicar-se, em exclusividade, à etnologia local. Penso que a nível camarário não era uma coisa difícil de projectar e executar. Sobre este assunto, aquilo que eu penso é que se poderia apostar em modelo nucleado: e, em vez de termos um museu único sedeado na cidade, termos vários núcleos museológicos distribuídos pelas aldeias – mas em termos museográficos correctamente instalados, bem estruturados e desenhados. Nós não podemos ter a mesma visão para a região que Lisboa tem relativamente ao resto do país: não podemos estar a centralizar aqui na cidade de Bragança todos os meios e todos os bens culturais. Se nós queremos que as aldeias se mantenham com populações viáveis temos de entregar e dar a essas populações, meios para eles viverem condignamente e se sentirem bem e úteis à sociedade.
Para serem visitadas? Terem alguma coisa de que se orgulhem?
Exactamente.
Até que ponto devemos defender a nossa nordestinidade?
Nós devemo-la defender até aos limites, e os limites sabe Deus quais são. Sabemos que temos história, especificidades, património e cultura própria; se hoje se tende, em determinados domínios, para uma evidente homogeneização, nós temos que nos afirmar e marcar a diferença através da nossa especificidade cultural. E a nossa especificidade cultural é este ser-se trasmontano, é este saber, saber-fazer, este sentir próprio, este ver altaneiro de horizontes largos, a nossa herança genética que nos vem da história que fizemos, da antropologia vivida e estudada, do construído, do falado, do imaginado. Mas o próprio conceito é algo a reconstruir, a reencaminhar, a revalorizar perante a facilidade da venda e afirmação do global, do uniforme, do vazio igualitário… A riqueza do globo está na diversidade das gentes, das culturas, dos processos…
E as acessibilidades? Ou a falta delas?
As acessibilidades têm sempre no mínimo dois pontos de vista, depende de quem está nos extremos. Se calhar, uma pessoa no extremo do Porto a olhar para Bragança, vê a acessibilidade de uma forma diferente do que uma pessoa daqui de Bragança, no extremo de cá, a olhar para o Porto.
Nos inícios do século XX discutiu-se muito o problema das acessibilidades e o papel a desempenhar pelo caminho-de-ferro… e eram; só que a utilização que se vai fazer do caminho-de-ferro vai ser uma utilização preferencialmente para levar pessoas para fora em vez de trazer coisas para cá mais baratas, mais rápidas, trazer mais gente e proporcionar novos mercados para os nossos produtos. Orlando Ribeiro provou que um dos grandes factores de aceleração da desertificação de Trás-os-Montes através da emigração foi o aumento da acessibilidade através do comboio. O aumento da acessibilidade exponencia as possibilidades em múltiplas direcções ao evidenciar os nossos papéis como trabalhadores, como consumidores a todos os níveis. Faz-nos beneficiar das mundivivências dos mercados globais do trabalho e do consumo, eventualmente entendidos como benefícios, e faz-nos perder barreiras protectoras físicas, psicológicas e sociais. Estamos a ficar cada vez mais globais e cada vez menos locais: cabe-nos a nós – ou talvez não – gerir e desenhar algumas das variáveis deste processo, sendo certo que o desinteresse geral e a falta de lideranças políticas com visão de longo prazo só poderão contribuir para novas formas e modelos de ensimesmamento e de subserviência não desejada. De qualquer maneira, hoje as vias de comunicação rápidas são fundamentais…
No distrito não as há…
Sim, a nível de interior. Nós temos uma acessibilidade muito mais aberta, muito mais dinâmica e rápida com o exterior, tanto para Espanha como para o Porto, do que no interior do nosso próprio distrito, o que evidencia bem a lógica do sistema. Por isso, é fundamental criar seja um IP, enfim, redes viárias modernas e bem estruturadas que permitam velocidade de acesso acentuada a nível do interior de todo o distrito.
Se as comunidades urbanas fossem uma realidade, o que adviria da separação da província de Trás-os-Montes e Alto Douro?
Na minha perspectiva acho que são decisões políticas – desconhecendo-se ainda as consequências que poderão vir a trazer – que, à partida, não oferecem grandes garantias de funcionamento. Uma nova reestruturação da província de Trás-os-Montes desenhada no Terreiro do Paço com os centros de decisão onde? Com malha organizacional de que tipo? Com descentralização da decisão do Terreiro do Paço para onde? Eu, em termos práticos, não vejo qualquer utilidade neste momento a esse processo.
Convém salientar que Trás-os-Montes, e até mesmo o distrito de Bragança, é diverso, não é uno; nós não podemos falar num Trás-os-Montes uniforme; tanto de leste para oeste, como de norte para sul há diferenças específicas entre municípios. Bragança nunca sentiu, por exemplo, qualquer tipo de proximidade afectiva com Vila Real. Por exemplo, a Terra Fria é diferente da Terra Quente a nível produtivo… também não vejo que tipo de ligação é que se busca a nível, por exemplo, do eixo do Douro. Que ligação é que tem Bragança com o Baixo Douro, por exemplo? Não têm. São muitas variáveis a equacionar e a decisão política tem mais vontade de impor do que de ouvir… Sempre assim foi nestas bandas, é a história que no-lo ensina.
As próprias diferenças que há em Trás-os-Montes…
Sim. Então no Douro, por exemplo, é bem evidente ao longo dos tempos… E, muito recentemente, a produção vitivinícola do Alto Douro veio alterar mais uma vez esta paisagem…
Por onde passa o futuro do Nordeste Transmontano? Que caminhos vai seguir?
Passa pela capacidade de afirmação, ou não, das pessoas que estiverem cá com poder para decidir, para desenhar e gerir as variáveis que darão vida a esse futuro. Passa pelas pessoas e pelas lideranças locais e nacionais: passa pelo país e pelos líderes nacionais; passa pelos líderes políticos locais, suas virtudes ou estultícia; passa pelos organismos produtores de saber e cultura, passa pelas ideias e sonhos que formas capazes de imaginar e executar. É claro que tem de passar por descentralização, por entregarem-nos rédeas e meios para fazer caminhos e caminhar, e ideias para defender e explorar. Mas que não nos entreguem a novas formas de dominação, novas formas de servilismo, ainda que mais próximo o beneficiário…
Para terminar, que personalidade ou que personalidades te marcaram ao longo da tua vida?
Houve algumas personalidades que me marcaram ao longo da vida.
Alguém que te tenha marcado a nível pessoal, afectivo…
A minha mãe marcou-me, obviamente, a todos os níveis. Houve alguns professores que me marcaram, por exemplo, no bom e no mau sentido tanto no Liceu como na Faculdade… Estar a individualizar uma personalidade não se justifica.
(Entrevista corrigida pelo entrevistado)
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