sábado, 1 de outubro de 2011

Entrevista com Jorge Morais - Professor da ESE de Bragança

Vamos chamar a esta entrevista “À procura da Fotografia”. Nasceu em Samões, concelho de Vila Flor. Como foi a sua infância?

Foi uma infância assim um bocado mexida, um bocado de ambulante. Nasci em Samões, Concelho de Vila Flor de facto e, posteriormente, fui parar com os meus pais, que eram pessoas simples, para as barragens de Bemposta e depois Picote que ofereciam, talvez, uma via económica e de trabalho aceitável para a altura, e que era uma alternativa ao trabalho do campo. A região era bastante pobre, havia limitações e lá fui atrás dos meus pais com a trouxa às costas, muito pequeno. Essas experiências foram interessantes porque de certa maneira me abriram horizontes de luz nomeadamente a partir do contacto com novas paisagens… Samões é ali perto do Vale da Vilariça, junto a Vila Flor, e muito diferente de Miranda, da Meseta Ibérica, chamemos-lhe assim, com planuras diferentes das montanhas e na verdade foram experiências interessantes ir de um lado para o outro e posteriormente para Bragança, quando acabei a quarta classe em Samões que, era o destino daqueles que tinham a sorte de poderem continuar os seus estudos para além da primária, como era então designada e muita gente vinha das vilas de todo o distrito para Bragança… então, aos dez anos, também vim para aqui, a minha infância foi uma infância, sei lá… essa qualidade de andar de um lado para o outro também me deu uma vontade, uma curiosidade, creio que ainda persiste, de olhar para as coisas, de olhar para o mundo, para aquilo que me rodeia, para as populações etc., etc.

Estudou em Bragança, como já o referiu, na actual escola secundária Emídio Garcia. Que recordações guarda desses tempos?

Certamente, recordações de carinho, sendo que a juventude se classifica sempre como uma etapa muito importante no crescimento de uma pessoa e realmente eu passei a partir dos dez, onze anos… realmente passei todo o tempo no liceu embora começando nas antigas instalações ainda ao pé da Policia, na chamada “Secção”, foi aí o meu primeiro ano (actual 5º ano de escolaridade). Com essa tenra idade tinha que fazer um percurso enorme, ia do Loreto onde habitava com a minha mãe (estava, naquela altura, só com a minha mãe), ia e vinha lá acima quase junto a São Sebastião para ter aulas logo de manhã e regressava para almoçar e voltando à tarde, etc. e depois, claro, mudaram-nos para o actual, recém inaugurado, Centro Cultural Adriano Moreira, ali na praceta Camões, onde, depois de passado um ano ou dois, continuei os estudos e, posteriormente, tive a sorte também de inaugurar, digamos assim, de frequentar o denominado Liceu (a actual escola Emídio Garcia), justamente no ano em que abriu, em 1968 sendo que, pelo meio, certamente, aconteceram coisas interessantes… cito por exemplo, um facto curioso, especialmente para os jovens de hoje, por estranheza, que foi justamente o facto de, com a ida para o Liceu, lá em cima na Boavista, ter passado a haver turmas mistas, isto é, passarem a conviver rapazes e raparigas e isso para um jovem de quinze, dezasseis anos era uma alegria… era muito bom e entusiasmante, mesmo que às vezes os estudos andassem um bocado perturbados.

Havia naquela altura, em Bragança, uma grande consciência política no meio estudantil, ou nem por isso?

Havia, sobretudo a partir de 1970… havia juventude que tinha, talvez por não haver tantas distracções… a televisão não tinha o peso tutelado, o peso monopolizador que hoje tem e os jovens, as pessoas, interagiam mais, particularmente os jovens que conseguiam escapar e defraudar a vigilância que nesse tempo se fazia, nomeadamente, nas reuniões aos grupos de pessoas como é sabido: a história da PIDE, não deixava assim “ajuntamentos” de pessoas confraternizarem, conviverem, discutirem, mas para os jovens havia sempre maneira de trocarem opiniões e de facto isso aconteceu a partir de 1970. Talvez devido à conjuntura ou então por coincidências várias, havia jovens que se revelaram, em Bragança, pessoas de valor, jovens que na altura discutiam entre si, comungavam ideais de ordem política, falavam da existência, falavam de muitas coisas que devem ser consideradas também hoje e presentes às pessoas, ao homem, ao género humano… possivelmente alguns valores se perderam. Nessa altura, curiosamente, os jovens encarnavam esse sentido confiante e aguerrido e então havia discussão, havia troca de opiniões, havia escrita, havia arte, poesia, havia uma série de actividades.

Havia muita luta escondida…

Havia, havia, apesar da cidade ser pequena, apesar de serem muito menos jovens do que existem hoje, muito menos gente porque a cidade era pequena mas em termos de progresso cultural havia bastantes coisas, muita coisa não era publicada mas sabia-se dela, havia pessoas… lembro-me em 71 de um livro de Fernando Pacheco, um livro de poesia, que teve ilustração do fotógrafo e artista Luís Cangueiro, professor no Liceu, um livro de poesia que foi acalentado, que foi muito apoiado, acarinhado, curiosamente por um comerciante da nossa cidade, o Álvaro Vaz que era então o proprietário da papelaria “Rosa D’Ouro” no sítio onde existe hoje, na rua Abílio Bessa, uma loja de música e ele fez uma apresentação do livro, qualquer coisa de espantoso… com um evento luminoso, uma espécie de uma “vernissage” como acontece numa grande metrópole, com publicidade e tudo.

Uma actividade à frente do seu tempo…

Havia um acontecimento cultural, os jovens criavam… houve várias exposições e havia uma ilusão no ar, havia mais do que há hoje, esse tipo de vibração no ar, a partir dos jovens.

Depois disto tudo, em Bragança, seguiu-se a escola de Belas Artes no Porto, o seu segundo percurso que também foi similar ao da pintora Graça Morais, um dos grandes vultos da pintura portuguesa e mundial que, curiosamente, também é do concelho de Vila Flor. A mudança deve ter sido muito grande…

Sim, foi um pouco, abriu-me outros horizontes. Eu fiquei instalado em Gaia, onde residi em casa de uma velha senhora e com trabalhadores, com padeiros, lembro-me tinha vários… tinham horários muito engraçados. Eu ocupava o meu tempo nos estudos e trabalhos em artes plásticas e outras coisas. Durante o dia eu tinha que fazer muito pouco barulho porque era justamente o tempo de dormir dos padeiros de maneira que havia um acordo tácito… todos nos respeitávamos e, portanto, quando um trabalhava o outro dormia e vice-versa. Padeiros, empregados de balcão… A nível académico foi interessante, isso foi já depois do 25 de Abril, foi em 76 que eu fui para as Belas Artes, portanto houve ali um interregno porque, entretanto, tinha ido para a tropa em 74 no período pós 25 de Abril… foi engraçado também esse período … foram tempos muito especiais, muito curiosos, e a tropa acabei-a aqui, em Bragança.

Depois de acabar o curso universitário regressou logo às origens?

Sim, eu estive ali um certo tempo (as licenciaturas eram de cinco anos), o Porto abriu-me uma vontade… eu gostava do Porto, gostava das pessoas, gostava da cidade, achava uma cidade com uma luz muito própria, barroca mas muito sólida e eu gostava do Porto, fiz amigos, fiz amizades, fiz também boas relações com professores das próprias Belas Artes e pôs-se-me um dilema, ficar lá, seguir o percurso profissional, artístico ou regressar a Bragança onde eu tinha deixado muita coisa, tinha deixado parte de mim, parte do meu espírito, uma certa militância também anterior, nesse período juvenil de descoberta da cidade e do mundo, de fazer coisas no próprio “Mensageiro” que era um jornal muito interessante, um jornal nada parecido com uma coisa opaca, era bastante aberto, era um jornal bastante lido, por muita gente, não só a gente ligada à religião, à igreja, mas também gente muito culta que procurava e dava informação e explicação sobre muitas coisas e, portanto, eu estava comprometido, também, com a cidade. Afectivamente estava comprometido e portanto foi um apelo muito forte e de facto acabei por regressar. Acabei o meu curso, estive ali indeciso… tinha cá os meus pais, deslocaram-se de Samões onde eu tinha nascido para aqui e tinham cá a sua vida e eu como era, além disso, filho único, decidi fazer-lhes companhia.

A sua vida está ligada ao ensino. Sente-se realizado a nível profissional?

Sinto-me realizado… a vida de ensino é uma vida exigente, é uma vida de uma certa devoção, de uma certa consciência, quase de missão. Para ela ser feita com um percurso correcto, para sermos úteis… neste sentido, se calhar, somos exigentes connosco próprios e a vida de hoje é muito exigente, os jovens, os currículos, as dinâmicas várias que a sociedade criou, cria, exigem muito de um professor. Um professor à medida que lecciona, e em que os anos vão passando, podem haver momentos em que se pode pensar que, se calhar, não está a haver uma correspondência entre o que os jovens querem, solicitam e aquilo que ele é capaz de dar. Nesse sentido, um professor hoje em dia, se calhar, terá dificuldade em sentir-se realizado.

Sempre esteve ligado à arte e fotografia regional. Tem milhares de fotografias de Bragança e sobre a cidade. Pode contar a sua história através dos registos fotográficos que tem. Porquê este interesse tão grande?

Como disse, desde a infância fui circulando por vários locais e locais muito diferentes. Pela curiosidade de que falei, que realmente me abriu interesses para outras coisas, para as pessoas, para as casas, para o céu, para a montanha para a paisagem… sendo que aqui a cidade era muito curiosa: era uma cidade muito pequenina que se desenvolvia em redor do castelo. O castelo era, é ainda hoje, omnipresente, apesar de estar, a meu ver, um pouquinho esquecido, um pouquinho subutilizado, mas sem dúvida que o castelo é uma figura tutelar, um símbolo que se impõe, naquele tempo ainda mais. E portanto a fotografia, a tradição, as brumas do tempo que emanavam do próprio castelo, estimulavam a minha aproximação… eu também gostava de ler, lia, e no convívio com outros jovens, também, preocupados com as coisas e com a cultura comecei a ter respeito pela etnografia, pelos usos, pelos costumes, por aquilo que podemos entender sobre o mundo à nossa volta e pela cidade em múltiplos aspectos. E, de facto, interessou-me sempre recolher visualmente, fotograficamente, registos dessas coisas e dessa evolução.

Criou também a imagem gráfica da Escola Superior de Educação de Bragança, no seu início que, sei que ainda se mantém. Dá-lhe prazer?

Eu, na ESBAP, fiz o curso de Design Gráfico, de criação que, de algum modo, aponta também para a criação de símbolos, de imagens de marca, de imagens de cooperativas, de empresas, etc. mas, também, me dá prazer, sem dúvida, porque é um acto criativo.
Fazer uma imagem que seja por um lado simples, que fique na retina, que seja agradável, harmoniosa e que exprima em termos de conteúdo aquilo a que se refere, neste caso uma escola de ensino, uma escola de educação, que tive a honra, tive o privilégio, tive também a sorte, digamos assim, de acompanhar desde o primeiro momento e foi bom, fiz imensos croquis, acabei por partir da imagem de um cubo… um cubo está associado ao brincar, fazer construções… o aspecto construtivo de uma criança que encaixa um brinquedo em cima de outro, uma caixa fazendo um puzzle. A partir daí desenvolvi, com recurso às letras iniciais da Escola Superior de Educação efectuando essa associação com um cubo e integrando essas iniciais.

Instalou a ludoteca infantil da Escola Superior de Educação de Bragança, com a particularidade de ser uma das primeiras do país em estabelecimentos de ensino superior. Quer comentar?

Ajudei a instalar e fui uma das pessoas que dinamizou essa instalação e que, logisticamente, trabalhou para isso. Digamos que o principal obreiro dessa ludoteca, que foi muito engraçado instalar em Bragança e que ainda existe e que, de facto, começou a funcionar ainda no primitivo edifício da ESEB, junto aos actuais bombeiros foi a Dr.ª Cecília Rodrigues, bem como o Dr. João Gomes, tendo contado com a adesão de pessoas da Gulbenkian que tiveram o ensejo de colaborar connosco.

Passou um biénio integrando a direcção do Clube de Bragança, onde, além de tudo, o trabalho desenvolvido em prol daquela casa criou os logótipos do clube de cinema, nos festivais de cinema ali realizados que estão muito bem conseguidos. Porque não explora mais essa faceta?  


Porque, digamos, assim como pessoa e como artista entre aspas, a minha vida é bastante diversificada. Eu, por exemplo, no período antes do 25 de Abril dirigi a “Tribuna dos Novos”, no “Mensageiro de Bragança”, cuja componente principal era justamente poesia e uma espécie de ensaio jornalístico sobre o que os jovens lobrigávamos à nossa frente e aquilo que desmascarávamos, digamos assim, num sentido quase de mostrar aos outros que ali havia coisas que não estavam bem e, portanto, senti-me atraído por muita coisa ao mesmo tempo: escrita, pintura, desenho… A fotografia apanhou-me, particularmente, a partir da frequência das Belas Artes onde acho que fui agarrado… também, no último ano aí, fui monitor da disciplina de fotografia. Divergindo bastante não abri um gabinete de design aqui na cidade, até porque a cidade também só progressivamente se tornou capaz de poder solicitar uma pequena empresa de design gráfico de publicidade etc. e, portanto, mantenho essa vocação de divergentes.

Julgo também saber que houve alguns factos engraçados ocorridos no Clube. Quer contar-nos algum?

Foi um período muito produtivo em termos de actividade cultural da própria direcção do Clube, onde o Marcolino Cepeda era a alma, o orientador o dinamizador, o coordenador, com muito valor e de vez em quando aconteciam coisas engraçadas, por exemplo: a uma dada altura, com a ideia de reavivarmos os, anteriormente, célebres bailes de Carnaval, que tinham sido muito conhecidos antes do 25 de Abril, quisemos compor o salão onde esses bailes eram levados a efeito, e nesse salão que era por cima do actual café “Chave d’Ouro”, as tábuas do soalho já eram muito antigas e com algumas deficiências, uma ou outra partida, levantada e coisas assim com umas imperfeições e decidimos… deitámos as mãos à algibeira do secretariado e da tesouraria a ver se havia algum dinheirito para poder remendar e compor esse sobrado, mas também, de algum modo, a situação pedia que nós fizéssemos obra e então lá fomos a uma determinada hora, princípio da noite, nós próprios, tentar arrancar as tábuas velhas. A dada altura, estando presentes o Marcolino e o Teófilo, estava eu a tentar arrancar uma tabuazita que, insistia em manter-se unida ao chão e eu, claro, fazendo alavanca, pus um pé fora do caibro que suportava esse soalho. A dada altura fiz mais força e o pé escorrega bruscamente para baixo e fura um outro forro de madeira que havia logo a seguir. Quase de imediato sentimos uma pessoa escada acima e a perguntar muito aflita: “O que é que aconteceu? ” Era o empregado do “Chave d’Ouro” a perguntar o que é que tinha acontecido porque estavam os clientes a tomar o seu café e viram uma perna, surrealisticamente, irromper do tecto do café e ficar a abanar, se calhar caindo alguma poeira nos pires, nas chávenas e na mesa… O homem ficou preocupado, é um bocado inimaginável que apareça uma perna assim! E foi um episódio bastante engraçado. Divertimo-nos um pouco, de vez em quando havia assim uns episódios muito engraçados.

Como já referiu, enquanto estudante, foi director das páginas de cultura e de arte do “Mensageiro de Bragança”, mais uma vez a arte e a cultura. Por amor ou por carolice?

Nessa altura era também por amor, eu amava ou supunha que amava umas garotas, que não me ligariam muito e, estas coisas de querer adquirir um estatuto de adulto, de integrado num nível de adulto… Nessa altura a coisa era mais complicada porque aos vinte anos era-se quase sempre adulto por questões como a tropa, a guerra do ultramar, era-se mesmo mais adulto do que se é hoje e de facto havia coisas que nos motivavam e uma delas era o sermos admirados pelas garotas. Era também por amor à terra. Comecei lentamente, foi um percurso lento, que ainda não acabou, se calhar é um processo, que ainda não acabou, de amor a esta terra onde digo que quase nasci.

Falemos da Primeira Exposição Nacional de Postais Antigos.

Essa foi uma aventura muito engraçada e muito árdua. Foi com o saudoso Dr. Vicente. Foi um homem cheio de febre de fazer algo realmente importante. Foi importante sem dúvida. Foi o primeiro encontro de amantes do postal e carta ilustrada antiga… consumada numa edição e exposição formidável a nível nacional. Foi um evento de nível nacional, e mesmo internacional, só que trabalhar com o Dr. Vicente era uma obra, ele querias as coisas perfeitas… um entusiasmo…. Ele conseguia contagiar os outros, mas depois exigia muito, ele exigia-nos muito. Foram milhares e milhares de postais que foram angariados de pessoas e instituições, postais antigos, desde o século XIX, o postal era uma coisa muito importante, com muitos deles interessantíssimos, sobre o ponto de vista estético e documental. Hoje, a televisão suplantou essas formas… mas o postal ilustrado era uma coisa muito importante….

Era a imagem, a importância da imagem.

Havia milhares, havia edições com coisas muito curiosas, com temáticas desde a queda da república, episódios ligados à altura em que Afonso Costa caiu num comboio e partiu uma perna. Depois havia ilustradores que faziam a caricatura disso, impressos com processos típicos dessa altura e que são hoje plasticamente muito atractivos. Foi uma exposição formidável, uma das primeiras grandes coisas que se fizeram aqui em Bragança, sem dúvida, a nível visual, chamemos-lhe assim, exposição de grande gabarito e o Dr. Vicente foi incansável. Aconteceu após eu ter vindo do Porto o meu engajamento, chamemos-lhe assim, pela força e pelo virtuosismo do Dr. Vicente, eu e outros, o Dr. Neto Jacob, o próprio Dr. Luís Canotilho.

Um Bom grupo… Com Marcolino Cepeda tem levado a cabo uma estreita colaboração gráfica e artística nos cinco livros por ele publicados até então. De todos destaco o trabalho de “Tempo de silêncio”, onde as suas fotografias são verdadeiras obras de arte. Fale-nos delas.

Eu diria que obra de arte foi aquilo que foi retratado… as ilustrações desse livro acabam por ser poças de água geladas numa manhã de Fevereiro de 2001/2002 e que são típicas da nossa zona.

Parecem autênticas pedras mármore.

Sim, portanto, existe lá o fenómeno, criam-se ali umas bolhas de ar entre o gelo e a parte superior da água mais profunda e depois criam-se formas… parecem pessoas, parecem coisas, parecem letras, parecem animais… Há assim um certo antropomorfismo. Geralmente essa maneira, essa vontade de ver, de estar atento às coisas, de ter uma intuição também para as sentir, para as observar, e de lhe achar sentido, ou graça, ou interesse conduz-nos a que elas acabem por ser registadas, seja pictórica seja fotograficamente. A arte está lá. Eu acho que estas coisas são muito engraçadas, são muito curiosas, prenderam a minha atenção e eu mais não tive do que fazer uma selecção, procurar as mais satisfatórias, as mais estimulantes.

Fotografou várias figuras típicas da região. Fale-nos delas.

Fotografar pessoas, particularmente, hoje é muito difícil, simultaneamente consumimos muitas imagens todos os dias e simultaneamente somos reactivos a elas. Reactivos a deixar-nos fotografar. Isso é pena porque um património importante, um património para os vindouros acabará por não ser registado. Eu lembro-me de fotógrafos humanistas, do Robert Doisneau, do Cartier Bresson em França que são queridos, são amados, mesmo pelo povo, apesar de Doisneau já ter falecido, mas ainda o ano passado se fizeram grandes exposições de trabalhos seus. Ele fotografava pessoas, fotografava crianças, fotografava velhos, fotografava em variadíssimas situações, nos cafés e tabernas de Paris, no pós-guerra, etc. Hoje é bastante difícil fotografar pessoas, sobretudo, em contexto natural espontâneo, nas suas actividades, no seu trabalho, na diversão, etc.
Eu, portanto, percorri nesta cidade, um tempo relativamente longo. Tive, talvez, a habilidade de fotografar algumas coisas, e noutros tempos era mais fácil e tenho fotografias também de pessoas e algumas muito acarinhadas, muito queridas da cidade, pertença do imaginário de todos nós desta cidade. Tenho o Carlinhos da Sé, por exemplo, fotografado ali em frente ao actual BCP, ex café Cruzeiro e café Central. Fotografei o Germano, o cauteleiro ali de Babe, uma figura que foi combatente na primeira guerra mundial e ficou assim um pouco debilitado psicologicamente. Era muito calado. Foi uma guerra muito violenta, havia o gás, muitos morreram e ele sobreviveu, mas era uma figura muito interessante, as pessoas respeitavam-no. Tenho também fotografias de outras personagens desta cidade. Talvez um dia faça uma amostragem dessas pessoas e não só: os lugares que elas habitavam, enfim o contexto em que elas próprias existiam.
Sobre o Carlinhos da Sé, de facto, era um ser que era a nossa sombra. O Carlinhos da Sé era a sombra dos jovens na cumplicidade criativa, na cumplicidade também, se quisermos, militante do antes 25 de Abril, e ele andava sempre por ali com as mãozitas assim ao peito, com uma série de santinhos também e, portanto, com um trejeito muito próprio e uma fonética nasalada, uma fala muito particular que, alguns ainda hoje, sabem imitar bem e então eu, a dada altura, estava ele em frente ao café “Central” posteriormente café “Cruzeiro” e disse-lhe - Carlinhos deixas-me tirar uma fotografia?” Eu tinha a máquina que foi a primeira máquina com que fotografei aqui em Bragança e que foi aí que comecei a fazer umas coisitas para o “Mensageiro”,  “Tribuna dos Novos”,  justamente a coluna que eu, mais ou menos, geria juntamente com outros companheiros e ele deixou-me tirar a fotografia. O que é engraçado é que a fotografia não diz tudo, pode dizer coisas, pode dizer muita coisa, mas também há muita coisa que não diz, é uma imagem. Lembro-me que por essa altura aconteceu um episódio muito engraçado também ligado com o Carlinhos. Estava ele e alguns de nós, com particular realce para alguns mais gozões, talvez pretendendo que ele pudesse ter umas tiradas de linguagem, e o que é que faz um dos jovens? Começa a atirar uma moeda ao ar (era uma coroa, metade de um escudo), atirava a moeda ao ar e passeava-se em vai e vem frente ao Carlinhos. Este começa a interessar-se porque vê o dinheiro (naqueles tempos a coisa era complicada, uma coroa era dinheiro…) mas ao mesmo tempo, o assediado também reagia, virando a face simulando não ver a coroa, e lá o colega, sabendo perfeitamente que estava a atrair a atenção do Carlinhos, insistia: “Carlinhos cantas-nos uma cantiga?” (Ele, quando cantava exibia aquele tom de voz muito própria.) Nada, não cantava, mas o seu interesse era de facto manifesto. A dada altura chateou-se com esse vai e vem da coroa à frente dos seus olhos e disse assim dirigindo-se ao rapaz e ao grupo: “Canto, canto, dá-me cá a coroa!” E o rapaz deu-lhe a coroa e então ele jactou assim: “No alto daquela serra está uma rolinha a cantar com o bico cheio de merda para quem me mandou cantar”. Foi uma coisa engraçadíssima. Virou costas e foi-se.

Como diz o outro: toma lá que já aprendeste!

Assim, com aquele espírito e oportunidade, nós próprios ficamos, particularmente, admirados. Foi um bocadinho agressivo da parte dele mas quem o provocou com o dinheiro mereceu a resposta e ele tramou-o.

Fale-nos da sua colaboração para as comemorações dos Cento e Cinquenta Anos do Liceu de Bragança.

Limitei-me a ceder fotografias, particularmente, para a exposição, porque, como disse, tenho fotografias da evolução da cidade apanhando também os trinta anos da democracia. Relativo aos cento e cinquenta anos do Liceu tenho… usei ainda outros caminhos…. São propostas mais gráficas, jogando mais com a composição, jogando com uma perspectiva também humanista de registo de pessoas, de coisas, no seu enquadramento e linhas de força, de cor etc. mas que foge um bocado à minha vertente de registo, se quisermos, etnográfico. É uma proposta também plástica um pouquinho diferente.

A Bienal da Máscara é importante para a região? E o Museu da Máscara na vila?

Certamente. O Museu da Máscara poderá ser um local embrionário das actividades que se lhe relacionam. Dali partem iniciativas relacionadas com a máscara e com esses valores que aqui são muito importantes. Gostava que esse museu não fosse uma coisa muito tradicional, do tipo museu… queria que fosse antes uma coisa viva, um local… adaptado até, para crianças, dado que o seu conteúdo incute um certo receio, um certo medo etc. e, de facto, as máscaras humanizadas, vivas, com actividades relacionadas actuariam didáctica e existencialmente… na altura devida em Janeiro, Fevereiro…

Para finalizar pergunto-lhe que personalidade ou personalidades o marcaram ao longo da sua vida.

Nesses tempos, sem dúvida, músicos de uma certa militância e criatividade também mas, como realmente eu também tinha uma vertente ligada às artes escritas, à poesia nomeadamente, posso dizer que foi uma figura cuja obra me marcou bastante, o escritor Pablo Neruda. Por exemplo, estou-me a recordar, nesses tempos, li e vivi, (consumia vivencialmente de facto certo tipo de literatura), por exemplo os “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”. Era um livro de cabeceira sendo o seu autor uma figura com muita força humana, o tal que foi retratado no “Carteiro…”, no filme que todos mais ou menos conhecem. Mas tantas pessoas mais que, para nós, podem ter sido importantes em vários domínios; é difícil agora lembrar…

(Entrevista corrigida pelo entrevistado.)
(Esta conversa foi realizada em 2005.)

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