sábado, 27 de agosto de 2011

Entrevista com Nicolau Sernadela - "Tio João" da RBA

Nicolau, ou devemos chamá-lo “Tio João”?

Nicolau. Tio João é só o meu nome “artístico”, se é que posso falar assim.

Fizemos esta entrevista para que nos possa contar um pouco daquilo que foi a sua vida. Vamos chamar-lhe “À procura do fim da solidão”, Nicolau Sernadela, homem da rádio desde muito novo, líder de uma grande família radiofónica. Nasceu em Bragança e a não ser o período que passou no seminário de S. José em Vinhais, julgo saber que sempre viveu em Bragança, quais são as recordações que guarda da meninice da juventude?

Todas, porque a primeira, foi uma situação de minha vida que aconteceu quando tinha apenas dois anos e da qual me lembro dela todos os dias da minha vida. Foi marcante. Lembro-me de quase tudo a partir dos dois anos, lembro-me de tudo da minha vida, em especial, esta: estavam a construir a Caixa Geral de Depósitos, eu vivia ali ao lado, vivi durante vinte anos naquela casinha muito humilde, na Rua Nova numero 23, aquelas escadinhas em frente à Caixa. Tinha então dois aninhos de idade, ainda quase não sabia andar e caiu-me uma daquelas cantarias da construção, que me deu cabo de um pé, mais propriamente um dedo, fui hospitalizado, fui operado e etc… e lembro-me, todos os dias me lembro desse marco da minha vida, e não sei porque a partir daí, lembro-me de tudo. Até aos dois anos não me lembro de nada, a partir daí lembro-me de tudo como se fosse hoje; se calhar a pedra fez com que eu ficasse um homem cheio de pedra…

É uma pesada recordação!

Sem dúvida. Prejudicou-me muito e nós os portugueses temos sempre a mania, e com razão, às vezes, de dizer “podia ter sido bem pior” porque realmente era uma criança… as pedras ainda hoje existem…. Caixa Geral de Depósitos… eram pedras de cantaria e uma caiu-me no pé estive internado e a partir daí é que me lembro de tudo. Depois a minha meninice foi muito simples, muito humilde, eu recordo isso… estive vinte anos numa casa… embora a minha vida não tenha sido tão difícil como a de muita gente mas, eu vivi numa casinha muito humilde que nem casa de banho tinha, fui sempre habituado a balde e essas coisas. Para ir tomar banho tinha que ir a casa dos meus pais. Tive uma infância muito humilde mas espectacular, porque desde pequenininho - eu dantes era gordinho, era, inclusivamente, mais gordo, em proporção, do que sou hoje e desde pequenino tinha a mania de correr a Rua Nova, aquelas ruas, eu ainda me lembro, teria três, quatro anos, de jogar à bola ao pé dos correios, na rua Almirante Reis, incrível, impensável, lembro-me, ainda, de ter aquela coisa de tentar fazer rir os outros.
No seminário também fui conhecido por todos e hoje sabem quem sou. Lembram-se que eu já na altura tinha qualquer coisa… eu, no seminário, era considerado mágico porque tinha a filosofia da magia. Desde criança, toda a gente tinha a ver comigo, porque eu sempre fui animado, envergonhado sim, muito mas, quando tinha a estrada aberta fazia rir toda a gente.
Na quarta classe embirrei que queria ser padre, “namorei os meus pais”. Convém dizer que não vivi com os meus pais, porque a minha mãe, na altura era muito doente e esteve hospitalizada em vários hospitais e eu afiz-me aos meus avós e, para mim, o meu ídolo era o meu avô. Vi que havia chegado o momento, na quarta classe, de seguir outro rumo. Estava dividido entre os meus pais e os meus avós. Cheguei ao pé dos meus pais e pedi-lhes para ir para o seminário, e fui para o seminário.

E as recordações do seminário? Normalmente é um mundo que deixa marcas.

O seminário, para mim, que não fiz tropa, foi uma tropa mais pesada, talvez, porque eu tinha apenas dez anos e, nessa altura, há vinte e cinco anos, era tempo completamente diferente. Nós, inclusivamente, estávamos aos quinze dias, aos meses que, não saíamos cá para fora e, tive a infelicidade, também, de apanhar um Reitor muito conservador. Recordo que um dia nevou e proibiram-nos redondamente de jogar à pelotada e depois fomos obrigados, todos, crianças de dez, doze anos na altura, em truzes, a jogar à pelotada, o primeiro ano contra segundo. Também sou do tempo dos retiros a pão e água de três dias, crianças de dez, doze anos, por isso é que a tropa… a minha ilusão do seminário terminou com esse Reitor.
No primeiro ano tive um Reitor que foi um espectáculo, eu não vou dizer nomes com certeza mas, aí mais me cativou, no segundo ano cortaram-me as pernas porque a lei do seminário mudou um pouco, tiraram-nos a pouca liberdade que tínhamos.
No segundo ano, com a falta de liberdade, vem outra etapa da minha vida. Embirrei que tinha de sair do seminário a meio do ano. Os meus pais não queriam, ninguém queria porque ia perder o ano… deu-me uma filosofia de vida espectacular: ai é! Então vou sair mesmo. Fiz-me doente, só que depois a doença complicou-se e apareceu mesmo. Já na altura, ainda bastante pequeno, tinha tido ataques epilépticos e, depois, porque queria estar doente não comia etc… voltaram os ataques epilépticos e ai tive que ser internado em vários hospitais. Estive no Hospital de S. João durante três ou quatro meses.

Mas conseguiu sair do seminário.

Exactamente. Era muito “coitadinho do menino”, “se calhar até é maluquinho por causa dos ataques”… e, como tinha muita medicação para tomar, saí do seminário e fui para o ciclo. Ali as coisas eram diferentes, estavam lá os meus pais… Costumo dizer que tinha perdido a veia de estudar. Sinto que talvez passasse o ano devido a ser quem nome quem era.
Fui para o sétimo. Não sei porquê, houve uma revolução muito grande no meu cérebro, nos meus neurónios e isso já o disse várias vezes e não me canso de o dizer, tive também na altura o melhor professor do mundo Adão Silva. Era meu professor de português e nas primeiras aulas que eu tive com ele, não sei porquê atirou-me com um giz à cabeça, estava distraído e, a partir daquele giz, passei, de medíocre a um aluno super bom. Tive, inclusivamente, até ao nono, décimo ano… dava-me ao luxo de fazer um teste de matemática em cinco minutos, de ser corrigido em dois e de estar cá fora ao oitavo minuto com a nota máxima. Fi-lo em físicas, químicas, matemáticas…
Há outra etapa da minha vida, no nono ano, em que fui aluno brilhante, tudo cinco, só que há uma pequena mágoa, havia um professor, não me envergonho de dizer porque ele sabe, é o Tojé Cepeda que me queria dar dois a educação física, porque eu realmente merecia dois, só que os professores: “então, já viste? tudo cinco, aqui um dois fica mal, dá lá um três ao rapaz. Mas ele ainda hoje me diz que merecia mesmo dois.
Nessa altura fiz o décimo ano, décimo primeiro e… houve uma senhora, professora de inglês, que embirrou comigo e reprovou-me a inglês. A partir daí é que começa a vida de disk jokey, a vida da noite, a vida estúpida talvez. Depois deixei de ser o menino gordinho para ser já uma pessoa a dar para o elegante, um jovem dos seus dezasseis anos a começar a ser curioso, eu comecei a ser disk jokey sem saber o que aquilo era. Nem sabia o que era um disco, eu nunca percebi de música, nunca na minha vida percebi de música. Eu não era disk jokey nem era nada. Estava ao pé do disk jokey das discotecas e, todas as noites junto do disk jokey, ensinou-me. Via como ele punha o disco e como fazia, assim e assado e, fui adquirindo a técnica, foi-se entranhando… na altura, quase dezoito anos, não se faziam disk jokeys de um momento para o outro, hoje também não.
Há acontecimentos que parecem nascer para nos ajudar. Abriu uma super discoteca na nossa região que não tinha disk jokey. Fui convidado para aquelas funções e a discoteca em questão trabalhou muito bem durante um ano. Agora está fechada, só abre em temporadas diferentes, o que é uma pena. Durante o tempo em que lá trabalhei, sai-me bem. Sem perceber absolutamente nada, fazia tudo ao contrário do que faz um disk jokey como hoje, na rádio, faço tudo ao contrário do que faz um locutor. Comecei também a falar para o povo, abria a pista falando, fazia concursos em troca de garrafas de whisky e concursos “bárbaros” para me trazerem portas de automóvel… no mês de Agosto, quando os imigrantes voltavam em força, todas as noites ia vestido de ninja ou de padre, ou disto ou daquilo.
Como disk jokey tentava dar espectáculo, não só para aqueles que dançavam, mas para aqueles que estavam lá e que não queriam dançar e estavam a olhar para mim, e lá punha os discos a rodar nos dedos… e depois aquela vida da noite em várias discotecas. Tive também uma experiência bonita em Benidorm.

Nicolau, antes de tudo isso que nos contou, julgamos saber que desempenhou a função de presidente da Associação Nacional de Estudantes de Portugal. Terá isso a ver com o facto de ser um bom comunicador?

Isso, como tudo na minha vida, também foi um acidente. Na altura nem era o presidente da Associação de Estudantes da escola onde estava, aqui em Bragança. Fui escolhido para representar a nossa associação e era mais um onde estavam representadas todas as Associações de Estudantes do país. A mim só me tratavam por Bragança. Eu sabia aquelas anedotas todas e fui o indivíduo que mais entrou no goto daquelas pessoas. Esse projecto foi sol de pouca dura porque já havia também a Associação das Associações, mas ainda fomos a reuniões a Coimbra, umas duas ou três vezes, e eu entrei no goto daquela gente toda e fiz alguns amigos de quem fiquei com o contacto. Orgulho-me de ter feito amigos de todo o país, desde Loulé até ao Alentejo e por aí acima.
Já na altura me achavam divertido, porque sou gago, e actualmente ganho a minha vida a falar. Tenho vaidade no falar, e a minha gaguez parece que cativa as pessoas. Ao estar a falar com elas, quando patinava mais do que agora, as pessoas achavam graça e, se calhar, era isso que talvez fizesse com que elas se aproximassem mais de mim e me admirassem por ser tão divertido.

O programa “Tio João” é, sem dúvida, um fenómeno social, quase inexplicável. Fale-nos de como tudo começou.

Tudo começou, tenho que me repetir, por acidente e um bom acidente. Quando digo acidente, quero dizer por acaso, sem querer, não foi pensado, não foi idealizado. Como já referi, na altura eu era disk jokey em Macedo de Cavaleiros. Vinha para Bragança às três, quatro, cinco da manhã e alguém me disse que a rádio estava fechada até às oito. “Já que tu só vais às oito, nove da manhã para casa, pega lá a chave e entretém-te.” Pronto. Eu assim fiz. Nesse dia e o primeiro que entrei na RBA, na Rua do Loreto, já tinha luzes de rádio porque já tinha feito programas noutras rádios, não só em Bragança mas, também em Macedo, já sabia “bulir” como diz o povo, na mesa e alguém me disse então, o senhor Telmo Lopes disse-me: “vais lá para a rádio e fazes aquilo que tu queiras até às oito da manhã”. No primeiro dia agarrei nuns disquinhos de dança, aqueles maxis que se usavam antigamente. Eram as quatro da madrugada quando cheguei a Bragança, comecei por colocar esses disquinhos e chamei-lhe então “Os sonhos cor-de-rosa” porque pensei assim: a esta hora o pessoal que está a ouvir rádio são pessoas como eu que ainda não se deitaram, por isso tenho que lhes dar energia e punha aqueles discos de dança. Isso, o primeiro dia. No segundo dia cheguei às seis da manhã e pensei cá para os meus botões: agora tenho que mudar a folha ao livro, porque gora é diferente. O pessoal que vai ouvir a partir de agora, não é o pessoal que se vai deitar agora, como eu, mas sim o pessoal que está a acordar, e não sei porquê, não me perguntem porquê João e não António ou Manuel, porque foi João, àquela hora saiu João e eu abri o micro e disse: “eu sou o tio João e quero fazer uma grande família”. E foi, exactamente, assim e nesse mesmo dia tive quatro participações, comecei a angariar a família que hoje tenho. Fiz exactamente isso e apenas isso.

Ainda se lembra da primeira pessoa que telefonou?

Exactamente, foi a famosa Helena Alves de Sanhoane. Foi a primeirinha. Estava a ouvir rádio, e achou estranho porque àquela hora não estava habituada a ouvir nada, ouviu-me a mim a dizer isso, ligou, apresentou-se… é a primeira, e nesse dia foram quatro, depois noutro dia foram mais cinco ou seis e foi assim sucessivamente. As pessoas começaram: Já ouvis-te um programa assim/assim? As pessoas começaram a comprar rádios, porque muita gente nem tinha rádio, as pessoas começaram inclusivamente a por telefone, porque não tinham telefone, a bola de neve foi aumentando, aumentando…

Também é o grande responsável por o programa ter servido como depositário da nossa música tradicional, da nossa cultura, da cultura de Trás-os-Montes. Reconhece este mérito?

Eu talvez reconheça esse mérito. Não sei aquilo que tenho, agora ao fim de quinze anos, se calhar, quem devia é que ainda não o fez. Eu, também é bom que as pessoas saibam, levo a tradição, a cultura e também o bom nome de minha cidade, Bragança, que divulgo dez, quinze, vinte vezes por dia, e pode haver pessoas que não gostem daquilo que vou dizer, sou a pessoa que mais publicita o nome da minha terra, porque, inclusivamente, milhares de pessoas que me ouvem nunca vieram a Bragança, muitos não sabem onde fica Bragança, mas ouvem que é o “tio João” de Bragança, Bragança, Bragança.
E no que diz respeito ao museu de gravação da família do “tio João”, como eu lhe chamo, também confesso, nunca o trabalhei, sou daquelas pessoas que têm armários e armários de cassetes, tenho inclusivamente a oportunidade de as trabalhar e ainda não as trabalhei. Tenho muitas entrevistas, tenho muitas visitas, porque quando comecei fazia digressões, cheguei a fazer semanas completas, diariamente. Houve uma altura em que o fiz durante dois ou três meses. Um dia era numa aldeia, outro dia era noutra… Fiz isso tudo e sem querer já lá vão vinte anos.

Inerente a esta grande “família”, nota-se uma grande solidariedade e uma grande união, todos os dias. Os ouvintes são mesmo uma grande “família” não é?

Sem dúvida. Isto foi assim: as pessoas, quando me começaram a ouvir, não me conheciam, não sabiam quem era o “Tio João”, porque só a partir da primeira festa, na Senhora da Hera, começaram a ver quem era o “Tio João”. Quando comecei as pessoas pensavam que o “Tio João” seria um indivíduo dos seus cinquenta, sessenta anos. Quando o conheceram, eu, na altura ainda solteirinho, bom rapaz, pesava sessenta e oito quilos, hoje peso quase mais quarenta mas, assim delgadinho, e tal e não sei que mais, cara de anjinho e não sei quê… foi aí que as pessoas começaram a ver que, realmente, eu tinha idade para ser neto de alguns e filho de outros e, afinal, não era o senhor da rádio muito distante…

Apesar de ser muito novo falava a língua deles.

Com certeza, sem dúvida. Depois comecei a visitar muitas casas; o meu casamento também teve de ser um casamento diferente, achei-me na obrigação, digamos assim, porque sempre trabalhei, porque fui criado com alguém que me ensinou, sempre tentei viver em torna jeira. Quer dizer, se me fazem a mim, eu tenho que fazer aos outros; se eu visitei a casa de muita gente achei-me na obrigação, porque a minha casa estava em festa, de os convidar a eles. E por isso mesmo o meu casamento foi um casamento diferente, porque tinha muitos mais amigos, é claro que se fosse agora, a coisa era impossível. Na altura eu tinha o programa há cerca de um ano e meio e éramos muitos menos. Hoje seria impossível convidar toda a gente para o meu casamento.

Mesmo assim já havia muita gente a ouvir.

Sim, com certeza. Logo na primeira festa éramos muitos. Havia sempre aquelas más-línguas e habituei-me a ouvir dizer que, isto não é nada. Era sempre a expressão que eu ouvia.

Isso daqui uns dias acaba. Já lá vão …

Já lá vão quinze anos. (Neste momento, 2011, já passa de vinte). Vai fazer quinze anos dentro em breve, dentro de dias vai fazer quinze anos que eu, sem querer, criei a figura do “Tio João” e pronto, aí está.

Será que a solidão em que vivem as pessoas, principalmente os mais idosos é a explicação para o sucesso deste programa e todas as actividades ligadas a ele; os piquenicões, as excursões, todas essas coisas?

É tudo e é também a maneira como me dou. Dou e recebo mimo todos os dias, e depois as pessoas… comecei a falar nelas e com elas e as pessoas ouvem-me, vendo, quase, uma novela. É por isso que eu digo: o nosso programa é uma rádio-novela que retrata o dia-a-dia de pessoas simples e humildes. Hoje, por exemplo, uma senhora está a ser operada e é uma cirurgia muito complicada, toda a gente se preocupa com isso. E é uma família autêntica. E se um chora o outro chora, se um ri o outro ri.

Vivem as alegrias e tristezas de cada um.

Sem dúvida, fazemos mesmo família. Aproveitamo-nos das ondas de rádio para fazer mesmo família, porque se examinarmos bem aquilo que eu faço é tudo menos um programa de rádio, um programa de rádio é diferente. Sirvo-me da rádio para fazer uma família e quebrar a solidão às pessoas.

Não sei se partilha a nossa opinião. Costumamos dizer que, há muito boa gente que, ainda está viva porque ouve o “Tio João” e porque tem o “tio João” como companhia.

Eu, às vezes, tenho muito medo. Sou uma pessoa medricas, e é por isso que, se calhar, ainda estou aqui, porque tenho muito medo aos exageros que às vezes fazem à minha pessoa. Eu simplesmente sou mais um, eu simplesmente tenho o poder, digamos assim, de comandar através do micro, sou apenas mais um. Não gosto que me chamem herói, gosto é de dizer que tenho milhares de heróis comigo. Aquilo que aconteceu no “Piquenicão espanholão”, estarmos à temperatura máxima de zero graus em Alcanices, a nevar durante duas, três horas e milhares de pessoas ali. Eles são meus heróis! É exactamente isso, porque eu tenho sempre medo aos exageros que fazem também acerca destas coisas, mas sei e sinto e muita gente me disse e me vai dizendo que o meu programa os ajuda muito. Há pessoas que vivem mesmo sozinhas e se não ouvissem o nome delas na rádio, se o “Tio João” não as incentivasse… recordo que temos uma heroína na nossa família que é a tia Isabelinha dos Pereiros que já está numa cama sem se mexer há trinta e dois anos e há quinze que nos acompanha também, tudo bem tem o sofrimento dela, mas esquece-se da cruz pelo menos durante duas horinhas.

Isso é um poder muito grande, não é?

E é uma grande responsabilidade porque eu sei… e as pessoas… porque acordo com a alegria de saber que milhares de pessoas estão à espera que eu fale e isso é magnífico, isso é o meu maior salário, essa é a minha maior recompensa, essa é a minha maior fortuna, porque é a coisa mais forte.

Fale-nos um pouco do “Piquenicão de Alcanices”.

Essa foi mais uma festa, foi a trigésima quinta festa, foi o “piquenicão espanholão”, foi o dia mais frio de toda a minha vida, foi também o mais quente de toda a minha vida, foi um dia que… de todas as festas que nós temos feito… é o seguinte o “piquenicão”, anualmente, é sempre em tempo quente, nos fins de Junho, e este ano seria também, só que houve uma ideia de fazermos um piqueniquinho em Alcanices. Estava previsto ser feito numa salinha, duzentos amigos, não sei quê, e o tio João e a tia Margarita hablaran na rádio que íamos fazer um piqueniquinho. Só que passada uma semana já havia 30 autocarros cheios, e nós, aí, não conseguimos alterar a data porque os autocarros já estavam fretados isto e aquilo. Tivemos que fazê-lo e tivemos a paga que foi o frio, o excesso de frio que houve mas, também o espectáculo de saber que entre os dois mil carros e quase um centena de autocarros, não houve acidentes, isso é magnífico. E saber, também, que as pessoas embora ao frio, estiveram quentes. O calor humano… assisti a um dos maiores espectáculos da minha vida, foi entrar naquele centro de camionagem desactivado com as salas todas vagas, com mais de quatro mil pessoas, entaladinhas a comerem merendas. Toda a gente a dar-me força: “Já viu? São bem tontecos, aqui com este frio”. E, realmente, a nevar, com milhares de pessoas ali! Por isso é que eu digo, foi o dia mais frio da minha vida mas, também foi o mais quente.

E os sustos que vai pregando às pessoas com as partidas do dia um de Abril, como a deste ultimo ano?

Na minha curta vida de trinta e cinco aninhos, talvez os dias mais fortes para o meu ego, tenham sido o dia do “piquenicão espanholão” e o dia 1 de Abril. Esses foram os dias que mais mexeram com o meu ego e que mais força me deram, mais vaidoso me tornaram; sabendo que realmente tenho o valor que tenho, para as pessoas que são, porque eu se calhar não terei valor nenhum, terei valor para aquelas pessoas. Há outras pessoas que não entendem o meu valor; nesse dia, tanto no Piquenicão com aquele frio, aquela gente toda, coisas que surgem sem querer. A festa em Espanha, falei… a rapaziada… dei a informação aos colegas…tive a feliz ideia de começar o noticiário das seis da manhã de uma forma espectacular, dando a informação que devido à realização do “piquenicão” em Espanha, sem autorização, o “tio João” podia ser preso e agora até está muito na moda; as pessoas com aquela psicose toda… mas ainda bem que a razão de ir preso era só essa, e aí é que eu vi que houve pessoas que sofreram bastante. O que vale é que era um sofrimento rápido. Tive situações de pessoas que se abraçaram a mim a chorar: calma, calma, é dia 1 de Abril. Quando as via aflitas…houve uma senhora aqui perto de Bragança que teve de cumprir duas ou três promessas, porque ela prometeu aos santinhos que se não me acontecesse nada… e houve pessoas que sofrem do coração e tiveram que meter uns comprimidinhos debaixo da língua e etc. Foi aquele sustinho de minutos. O espectáculo foi as pessoas desabafarem comigo ao longo dos dias na rádio e de me dizerem milhares de pessoas, no dia seguinte, dois de Abril às seis da manhã, ansiosas para ver se realmente estava  lá o “tio João” e eu aí aproveitei para os pôr à vontade e para dizer que realmente até ver ainda só sou preso dia 1 de Abril.

Considera-se, verdadeiramente, transmontano?

Muito transmontano. Inclusivamente, esta ideia surgiu também, do “tio” de tratar toda a minha gente por “tio” e “tia” que deriva um pouco da tradição que já o meu avô tinha, tio Manel, tio António, tio Francisco. E a linguagem que eu utilizo, as expressões, também, são transmontanas, além de ter um sonho de há quinze anos, de ser o “tio” João português, e de ter alguns afilhados que fizessem o “tio” João transmontano, douriense, algarvio e etc., para fazermos uma família do tamanho de Portugal. É um sonho que já lá vai há quinze anos e que ainda não concretizei. Logo no início da minha carreira, tive uma etapa também espectacular na minha vida que foi quando estive na rádio Alfa a fazer o programa em simultâneo e directo, para Portugal. Foi fantástico, no primeiro dia ter trezentos e tal telefonemas de pessoas da minha terra e do meu concelho a convidar-me para ir lá a casa. Porque sempre utilizei esta maneira também simples e humilde de fazer rádio.

As nossas aldeias estão a ficar desertas. O que é que se pode fazer para contornar esse problema?

Isso é, também, vontade minha, uma ideia minha, que por acaso já está a ser aproveitada em Espanha há muitos anos, era começarmos… e não custava nada… está-se a ver que nas aldeias da Lombada isso está a acontecer; aproveitar o turismo, começar a alugar essas casas aos senhores que têm muito dinheiro, que gostariam de fazer oito, quinze dias de férias, que já estão fartos de hotéis de luxo e de férias não sei onde e nas ilhas não sei quê, e na Espanha já se está a usar muito nessas localidades muito típicas. Já há casinhas de família, as pessoas pagam uma boa quantidade de dinheiro a uma família para os deixar viver à maneira deles durante oito dias. E é isso que em Portugal, e nós temos tantas aldeias, se devia fazer e vê-se muitas aldeias, em especial, as da Lombada onde cada aldeia tem o seu restaurante típico. O turismo aproveitado enriquecia as aldeias, tudo bem que não há gente porque a gente que há e vai nascendo tenta desenrascar-se noutros sítios. Ora, como nós sabemos, as nossas aldeias são bonitas, têm tradições, têm isto, têm aquilo, porque não fazer como os nossos amigos espanhóis, que fazem um turismo exemplar?         
O turismo, se fosse rentabilizado desta forma, se nós fizéssemos este tipo de turismo, para que as pessoas com posses pudessem desfrutar das nossas paisagens que, quer queiramos quer não, são as mais bonitas do mundo. O Douro é um exemplo único, mas existem outros igualmente lindos e prenhes de oportunidades.
Às vezes, as pessoas acusam-me de não fazer viagens dentro do nosso país, que só faço para fora, que nós temos coisas tão bonitas. Sem dúvida, mas o turismo dentro do meu país é muito mais caro também e, isso é que é mau porque nós, se nunca tivéssemos visto o nosso castelo diríamos: olha temos que vir aqui, isto tem um castelo tão bonito… é isso que eu penso. As aldeias ganhariam muito e o dinheiro atrai pessoas. É como a pescadinha de rabo na boca.
As escolas primárias fecharam, e as aldeias onde antes havia 500 habitantes existem agora 250, e cada vez menos. Se houvesse turismo, pelo menos com os poucos que estão lá, e com as visitas e dava-se dinamismo às localidades.

Devemos tirar partido das nossas tradições, diversidade das paisagens, e isso tudo?

Com certeza. Mas também não é só o turismo para os ricos, é também o turismo para todos.

Para finalizar. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

A pessoa que mais me marcou ao longo da minha vida foi o meu avô.

Uma figura bastante conhecida.

Sem dúvida. Era o famoso Rabel, era barbeiro de profissão e, sabem que eu comecei isto se calhar devido a ele. O meu avô tinha a mania de que conhecia toda a gente: “Então o senhor de onde é que é? Conheço lá fulano de tal.” E, agora, quando vou aos “piquenicões” e às festas e as pessoas me vêm cumprimentar: “Então você de onde é que é? E quem é?” Utilizo a mesma filosofia do meu avô que era uma pessoa conhecidíssima em Bragança.

Foi um prazer estar à conversa consigo.

Com certeza, teríamos muito mais pano para mangas. As pessoas que me conhecem sabem que, eu sou daqueles que engulo uma agulha microfónica e nunca mais me calo. É esta a minha missão porque toda a gente tem que saber que eu sou gago e ganho a minha vida a falar e sou pago à palavra.

Sem comentários:

Enviar um comentário